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Meu amigo,

Meu amigo, 

quase já não escrevo

passo o dia sentada em algum lugar

olhando florescer qualquer coisa que esteja

posta diante dos olhos


com isso já vi morrer uma pedra e um cachorro enforcar-se

numa nesga de sol


mas nada disso era uma palavra

dessas que coloco agora uma após a outra para que depois você as receba como um aviso de que ainda não morri de todo


não se parecia tampouco com uma palavra embora lembrasse vagamente naufrágio

a mulher que atravessou a rua velozmente

carregando como uma criança um girassol sem cabeça


e o que encontrei 

um dia após o outro 

não foi uma palavra


mas uma canoa em chamas não foi uma palavra mas um acidente doméstico

envolvendo um barco de brinquedo

e uma máquina de costura

não foi uma palavra


(embora em torno das coisas 

sempre se ajuntem palavras 

como cracas no casco 

de uma embarcação antiga)


às Vezes Sim me ocorre encontrar uma palavra

apenas quando a encontro 

ela se parece com um buraco

cheio de silêncio


às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra

enganchada numa lembrança

como uma lâmpada num bocal


um poema não é mais 

do que uma pedra que grita


risque por favor

esta palavra



Ana Martins Marques 


. . .


Para começar 2023 trouxe este poema absolutamente vertiginoso. 


Uma das minhas grandes descobertas na pandemia foi a poeta Ana Martins Marques! Seus poemas penetram na hipoderme, quase pertencessem ao meu corpo. Amo todos os seus livros, e este é o último que comprei  "Risque esta palavra".



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