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Bolsonaro como fruto do mundo mágico do capitalismo tardio

É difícil para o senso comum não qualificar o Bolsonaro como “louco” e, com isso, encerrar a questão. O senso comum é alimentado por aquilo que seria um senso comum superior, o acadêmico. A prática básica do senso comum, tanto o corriqueiro quanto o acadêmico, é a de dar por terminado o assunto ao encontrar um rótulo fácil.

Em um artigo na Folha de S. Paulo (09/06/2020), o psicanalista Luiz Meier reduz bolsonaro a um tipo psicológico infantil e birrento, que quer destruir tudo à sua volta. Ele conclui, então que haverá “golpe”! O biólogo Átila Iamarino, em linha semelhante, divulga em suas redes sociais um estudo americano de psicologia que diz que quem desafia o covid-19 sem máscara tem traços de “psicopatia, maquiavelismo e narcisismo”*. Átila identifica aí o presidente Bolsonaro, e aproveita para mostrar o perigo de uma pessoa assim na chefia de uma nação que deve combater a tal doença.

Infelizmente, isso ajuda pouco. Querem explicar o comportamento um tanto simplório de Bolsonaro por meio de narrativas simples. Ora, o simplório quase nunca se deixa apanhar pela teoria mais simples. Além disso, sabemos bem, é uma tendência da modernidade, que se transformou em vício acrítico, querer explicar tudo, no melhor a partir da figura do sujeito, no pior a partir da noção de mente, e então estabelecer reduções psicológicas que facilitam a vida de todos, pois funcionam como uma fim de conversa (pode-se piorar, claro, reduzindo a mente ao cérebro, e enfiar aí as variantes da pseudociência da família “neuro”).

Sair dessa prisão do psicologismo não é fácil. Ainda mais no caso de Bolsonaro, que é ele próprio um personagem caricaturesco. Um imã para perfis psicológicos.

Todavia, se damos um passo para traz, tomando Bolsonaro em perspectiva mais ampla, logo percebemos que ele não se explica pelos rótulos da psicologia. Ele vem no bojo de um movimento maior, que envolve os negacionismos e antiintelectulismos de vários matizes, associados ao guarda chuva ideológico de um neofascismo subjetivo e de um neoliberalismo que, embora em crise como doutrina econômica, está vigente como diretriz moral e comportamental de nossa época.

Mas por qual razão há negacionismos? Por que temos gente que não se preocupa mais com evidências científicas, que não percebe princípios lógicos de contradição, e que despreza explicações causais e racionais? Por que há os que vão da negação do Holocausto às doutrinas do terraplanismo? Por que há os que querem curar os males do covid-19 com cloroquina e até com alho? Por que Bolsonaro está nessa vibe?

Há na modernidade não um pensamento mágico que se expande de modo solto. Há, sim, uma prática da mágica. A modernidade é uma época em que a vida dos homens é regrada pela mágica. Quando isso se institui no cotidiano, então o modo de pensar mágico passa a não causar nenhum estranhamento. A prática mágica a que me refiro foi anunciada anos antes do capitalismo impô-la ao mundo. Nos anos de 1500 um dos sucessos da literatura foi o conto Fortunatus. O herói que emprestou nome ao conto é um aventureiro que possui uma bolsa com quarenta moedas. Ao gastar essas quarenta moedas ele abre a bolsa e encontra mais quarenta moedas, sucessivamente. Esse conto anunciou o mundo mágico nosso, atual, que nos proporciona vivermos segundo essas peripécias do dinheiro.

O capitalismo industrial e produtivo funciona na base do mercado de produtos. Neste tipo de capitalismo as fábricas são financiadas pelos bancos, mas o capital é acumulado por conta do mercado de produtos. No capitalismo financeiro, que é aquele no qual estamos inseridos, as fábricas são secundarizadas. O capital encontra nova forma de crescer mais rápido e de modo muito mais amplo e intensivo. Trata-se da criação de um mercado diferente, o mercado financeiro. Neste, a mercadoria não é consumida. Ela é emprestada. O dinheiro é emprestado, é transformado em crédito, gera credores e devedores, e se multiplica por meio do pagamento de seu preço. O preço do dinheiro é o juros. Você deposita um dinheiro no banco, trata-se de um ativo financeiro. Cem reais, por exemplo. O banco tem, então, por exemplo, a capacidade de emprestar para outro, ou para você mesmo, cobrando juros, um ativo que é o dobro, por exemplo, duzentos reais. O dinheiro gera o dinheiro. Eis a mágica!

Marx viu o fetiche da mercadoria. A mercadoria que sai de nossas mãos e, uma vez no mercado, se impõe sobre nós e nos controla. O fetiche do dinheiro ele também estudou. Trata-se dessa mágica em que o dinheiro produz dinheiro sem precisar do intermediário chamado mercadoria. Ora, a primeira mágica do dinheiro é ele ser o equivalente universal. Ele iguala vacas a camisas etc. A segunda mágica é ele se reproduzir sozinho. Sendo que não conseguimos pensar nisso de modo crítico, e estamos enredados na sociedade de mercado em que sem o dinheiro capitalista tudo se desmorona. Essa vida envolvida em fetiches nos faz pessoas que se acostumam com o que é mágico. Estamos imersos no abracadabra. A tecnologia, que é fruto do capitalismo, e que usamos sem sabermos seus princípios, também contribui para isso. Aliás, ela é reflexo do dinheiro capitalista. Um mundo assim, não poderia criar senão outra coisa que pessoas propensas a tornar Eram os deuses astronautas um best seller, e a criar negacionismos de todo tipo. Tudo que está envolvido em relações causais e racionais postas pela filosofia e pela ciência tende a fugir do que é o costumeiro, que é a mágica.

Quisemos com o Iluminismo sair das trevas. Weber chegou até a qualificar a modernidade como a época do “desencantamento do mundo”. Mas o capitalismo nos envolveu em novas trevas práticas, e tendemos a pensar, hoje, que tudo é válido. Bolsonaro é fruto desse tempo. Ele passou desapercebido fazendo o que faz durante trinta anos, como deputado. Agora, na presidência, o deputado caricaturesco torna-se o “presidente louco”. Mas há milhares de pessoas pensando igual a ele, inclusive seus críticos, que também estão imersos no vagalhão capitalista do abracadabra. Os que o reduzem à psicologia, em certo sentido, também estão comprando mágica. Querem simplificar as coisas, como ele! Então, se fornecemos uma narrativa mais sofisticada, como esta que fizemos agora, devedora dos clássicos da filosofia política, em especial de Marx, há um claro refugo inicial por parte de muitas pessoas.

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo.

*Nesse caso específico, maquiavelismo e narcisismo estão reduzidos a comportamentos psicológicos.



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