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Para ler Cioran de modo produtivo

Cioran escreveu: “Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada” (Breviário da decomposição. Rio de Janeiro, Rocco, 2008, p. 15). E mais: “A loucura de pregar está tão enraizada em nós que emerge de profundidades desconhecidas ao instinto de conservação” (p. 17). E em seguida: “Cada um espera seu momento para propor algo: não importa o quê. Tem uma voz: isto basta. Pagamos caro não ser surdos nem mudos”(p. 17).

Quem lê tais frases deve saber passar da psicologia dos personagens citados para a metafísica, que é combatida por Cioran na conta de sua leitura de Nietzsche. A metafísica, no caso, é a metafísica da subjetividade, a ideia da existência de um ponto fixo, o sujeito, por trás das ações. Esse projeto filosófico de Nietzsche, de guerra à metafísica, tem continuidade em Cioran. Mas o problema é que filosofia é um assunto técnico, e se quem lê não está preparado pela confraria de filósofos para abordar tecnicamente a coisa, fica apenas na narrativa dos personagens e, daí em diante, põe os pés pelas mãos.

O erro mais comum, que noto inclusive em professores de filosofia, colunistas e palestrantes por aí, é adotar a ideia de pegar “o esquema”. Esse tipo de leitor entende que Cioran lhe deu a chave para tudo: se São Paulo prega o amor, então, na verdade essa mensagem dele é um dogma que só irá criar fanáticos e destruir o mundo. Tornando tal coisa realmente um esquema, o leitor despreparado dá mais um passo: entender os homens é fácil, se eles pregam com veemência algo, é porque desejam o contrário ou irão dar margem para o contrário. Eis então que esse leitor abobado sai por escrevendo um artigo após o outro, sempre utilizando tal chave. Funciona assim: uma Ong quer combater o desmatamento, então seus membros estão sendo muito enfáticos, e o que que querem mesmo é outra coisa, ou então outra coisa vai ocorrer – na verdade vão só piorar o planeta. Se um militante do movimento negro denuncia uma cena de racismo muito clara, a indignação dele não é de fato indignação, mas mera vingança, mera vontade de sangue e não de justiça. Se o trabalhador pede salário, na verdade deve ser um sindicalista, e este não quer salário, quer apenas ficar no cargo. E assim, esse leitor, tornado por ele mesmo em novo pensador, sabendo interpretar tudo por meio dessa chave de inversão, apresenta um texto único, semanalmente ou mais, para todo e qualquer acontecimento social. Transforma-se em produtor de filosofia social? Não! Transforma-se em relógio de repetição. Ele acredita que isso é colocar o mundo sob uma perspectiva trágica! No tragicismo, qualquer caminho leva ao mesmo fim. Ele se vangloria de estar finalmente “entendendo tudo”.

Como se poderia evitar o surgimento desse tipo de embotado mental?

Ora, bastaria que o texto de Cioran fosse lido no seu conjunto, por alguém que passou por uma boa confraria filosófica, uma boa escola. Eis um trecho de complemento, no qual Cioran diz: “Outrora tive um ‘eu’; agora sou apenas um objeto … Empanturro-me de todas as drogas da solidão; as do mundo foram fracas demais para me fazer esquecê-lo. Tendo matado o profeta em mim, com terei ainda um lugar entre os humanos?” (p.18).

Matar o profeta é abster-se de falar, de professar, de projetar, ou seja, deixar de acreditar que se tem um eu, que se é um eu (“outrora tive um ‘eu’”). Aí está a tese que Cioran entende querer realizar: escapar de falar como se pudesse ser um sujeito – o consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos – e, como sujeito, pairar como sustentáculo infinito dos objetos, como substrato deles, eterno. O sujeito como eu e este como ponto absoluto protagonizam a reconstrução da metafísica por meio da modernidade, a época em que o indivíduo se vê como sujeito. Para desconstruir essa metafísica, Nietzsche e, enfim, Cioran (que usa o significativo termo “decomposição”), combatem o eu não na sua pequenez, mas na sua histeria, na sua posição de Paulo, o homem que de tanto acreditar no seu eu se fez apóstolo maior que os outros apóstolos,  mesmo sendo eles que conviveram com Jesus e ele não. O ego de Paulo não cabia nele. Mas o fenômeno dessa psicologia é secundário para Cioran, pois Paulo só serve para mostrar que se há quem pegue o eu como o que pode ser tão decisivo, que acaba por fazer a vontade da metafísica moderna, a de encontrar um ponto absoluto no eu. Cioran não precisa dizer que é Descartes seu alvo, ou Kant, pois Nietzsche já o disse. Cioran prefere dizer que são todos: os filósofos, a própria filosofia.

Contra Descartes, Nietzsche tira a condição de decisão do eu: insiste em dizer que não é o eu que pensa, pois o pensamento nos vem. Não decidimos sequer pensar. Cioran pega pela segunda parte do “eu penso, eu sou”. Ele ridiculariza: “Não quero mais colaborar com a luz nem empregar o jargão da vida. Não tornarei a dizer: ‘Eu sou sem enrubescer. O despudor do alento, o escândalo da respiração estão ligados ao abuso de um verbo auxiliar…” (p. 125). O problema aqui é nítido: afirmar-se como quem afirma sua existência, o passo dado por Descartes, é um abuso provocado pelo assanhamento de um verbo auxiliar. Ele se propõe a enrubescer por, ao menos de vez em quando, dizer o que pode ser um abanar para a metafísica da subjetividade.

Assim, o que Cioran ensina não é uma lição de psicologia. Ou, ao menos não é uma lição de psicologia que mostra o esquema explicativo de tudo. É uma lição de uma psicologia que explica o surgimento do eu como o que prepara a fusão entre eu e sujeito, criando uma metafísica da subjetividade. Cioran tem mais coisas a dizer que isso que acabei de expor, e que Nietzsche já disse. Mas também tem que dizer isso, que Nietzsche já disse. Os ecos do anti-humanismo de Nietzsche passam por ele, em noites jamais dormidas e por meio de uma carreira universitária de eterno aluno.

A leitura inteligente de Nietzsche sabe que este não cria o tipo “fraco” para criticar pessoas fracas, mas para mostrar como esse tipo cria a ideia de liberdade de ação, base para a noção de sujeito (responsabilidade) e, portanto, meio caminho andado para a metafísica da subjetividade. A leitura inteligente de Cioran aposta não no tipo “fraco” para usar como instrumento crítico-demolidor, mas no tipo “fanático”, “profeta”, um eu que qualquer homem pode acreditar que existe, se se acredita centro do mundo – e para Cioran os homens, cada um, assim acredita. Há em Cioran um eco da crítica ao indivíduo feita por Erasmo de Roterdã, quando este escreveu, no grande Renascimento, que já chegava o dia em que o homem faria a loucura de elogiar a si mesmo.

Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo. Escrito em 2017



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