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Uma cena

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Ela pediu um cappuccino expresso e se sentou em uma mesa vazia na rua, a fim de sentir um pouco do sol esquentar a sua pele clara. O café ficava no centro da cidade, mas não era muito frequentado, apesar do ambiente acolhedor e do cheiro de prédio histórico que as paredes na volta exalavam. Não tirou os óculos escuros que cobriam pouco menos da metade de seu rosto, escondendo seus olhos escuros e um pouco de suas olheiras, cultivadas pacientemente por um cansaço frequente e por uma insônia que insistia em lhe fazer companhia por boa parte da noite. Apenas ajeitou o cabelo, de forma que pudesse tirar um pouco da franja de frente dos olhos – e isso era tudo o que precisava, já que tinha cabelos curtos. Abriu a bolsa e tirou um volume de “Razão e Sensibilidade” – Jane Austen costumava fazer companhia a ela, em muitos momentos, mas fazia tempo que elas não tinham mais o seu momento juntas. Decidira retomar a leitura algum tempo atrás, mas sempre dava um jeito de adiar, até aquela tarde. Um café e um livro era tudo o que ela precisava naquela época sombria.

O cheiro de livro novo já não estava mais ali – pelo contrário, ela podia ver algumas páginas já sujas e a lombada ligeiramente estragada de tanto andar dentro da bolsa, esquecida, como um batom velho ou uma conta de luz vencida. Mas ainda eram as mesmas palavras carinhosas escritas pela tia Jane. O garçom muito bem vestido trouxe seu café e ali ela ficou por algum tempo, visitando as amigas inglesas e saboreando o café misturado com palavras antigas.

Sua leitura foi interrompida de maneira suave, como uma folha que cai da árvore quase em cima do colo, por um homem bonito que lhe pedia licença. Perguntou ele se poderia sentar-se à mesa com ela, já que os outros poucos lugares estavam todos ocupados. Como que recém acordando de um sono profundo, ela olhou à sua volta e percebeu que não havia mais lugares disponíveis e resolveu aceitar o pedido do homem, dividindo sua mesa com ele.

Ele fez o seu pedido ao garçom, uma xícara de café com leite e um pão de queijo, e voltou rapidamente seu olhar para a bela moça que lia compenetrada a história que Jane lhe contava. Por alguns instantes ele quis interrompê-la novamente, perguntar seu nome e se a leitura lhe agradava, mas ora, era evidente que sim, já que ela mal notara a sua companhia ali do lado. Ligeiramente constrangido por não saber o que fazer, ele pediu o jornal do dia ao senhor da outra mesa, que já não o lia mais e lhe entregou o caderno de esportes e de política, os únicos que ainda restaram na montagem do jornal ali. O homem pôs-se a ler, mas não conseguia manter a concentração. Estava claramente incomodado por não saber o que fazer com aquela mulher tão interessante ali ao lado dele. Voltava os olhos para o jornal, lia 3 linhas, tomava um gole do café com leite, e voltava a olhá-la, ali, tão distraída com a leitura, com o sol iluminando seus ombros e criando uma sombra insinuante sobre seu colo. Aquela cena toda era abruptamente interrompida pelo volume de “Razão e Sensibilidade”, segurado com os braços quase num ângulo de noventa graus, cobrindo justamente a parte mais interessante do seu decote. Uma brisa soprava levemente na direção da mulher, limpando seu cabelo do rosto e afastando bem devagar as partes da sua camisa azul, mostrando uma polegada a mais de seu colo. E ela nem percebia como sua leitura e seu café insinuavam muito mais do que ela pensava que poderia.

“Desculpe lhe interromper” disse ele, não aguentando mais aquele incômodo dentro dele, como se alguém tivesse cutucando seu estômago e desviando toda a sua atenção com isso, “mas qual é o seu nome? Não acho justo dividirmos a mesma mesa no café da tarde e nem sabermos como nos chamamos”. Esboçando um primeiro sorriso, levemente sem jeito e retirando os óculos escuros, ela diz: “É Clara. E o seu?”. “É Ivan. Muito prazer!”, ele diz, retribuindo o sorriso dela. Ele continua puxando assunto, mesmo com receio de que possa estar sendo extremamente inconveniente ao interromper a sua leitura. No entanto, ela se mostrou aberta à conversa, mesmo que por um bom tempo mantivesse o livro aberto na mesma posição que estava quando ele sentou ali. Era bom finalmente poder conversar com alguém de verdade, sair um pouco dos diálogos dos livros que lia, sempre muito bons, mas sempre todos finalizados. Não era tudo, finalmente, uma história fechada; não havia número de páginas, nem índice, nem mesmo o nome do autor. Poderia ser apenas mais um conto, ou uma novela, ou até mesmo uma poesia. Ela não sabia, e essa era toda a graça de poder conversar com alguém, assim, depois de tanto tempo, depois de tanto tempo sozinha.

E fazia tanto tempo que ela se sentia sozinha. 


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