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Tristeza



Não quero deslocar o ar 
com minha passagem
Não vou pisar pesado
e nem bater a porta...
Almejo seguir com a vida
tão despercebida
quanto aqui cheguei.

Não quero respingar
quando cair na água,
com peso muito leve
e ali ficar prá sempre
sem causar nem onda
nem tremulação...

Quero mais que tudo
ser levada pela correnteza,
igual folha liberta
do galho seco onde estava presa.

Matar a sede
com as gotas que caem da goteira.

Ver a luz somente
através das frestas na madeira.

E só comer fruto ou semente
que não faça falta à ninguém...

Quero ficar esquecida naquele canto escuro
do qual ninguém se lembra
de tirar o pó...

Desaparecer como fumaça ao vento,
me dar por perdida em meus pensamentos
sem razão que baste prá me encontrar.

Quero carregar no peito
apenas a carne e o sangue
de que o pobre é feito.

Não quero ter sonhos
dos quais possa acordar...

Vou carregar comigo somente
a tristeza que não me abandona.

Só quero ser deixada em paz...

Quero apenas amar pela metade
Mentir
Com tamanha força e tanta vontade
Até crer que é verdade
Que eu não quero nada...

A tristeza.

Como temos medo dela...

Acho que se houvesse uma pílula que a gente pudesse carregar na bolsa e que pudéssemos tomar quando necessário prá mandar a tristeza embora - seria o remédio mais consumido no mundo inteiro.

Talvez grande parte dos alcoólatras e dos drogados busquem em seus vícios o remédio prás suas tristezas - não sei dizer, nunca bebi nem fumei, nunca experimentei nenhuma droga (a menos que café seja droga - o que, segundo meu marido, é...).

Jesus ficava triste - era humano também. Ficava bravo. Expulsou vendilhões que comercializavam dentro do templo, distribuindo chicotadas prá todo lado (imagina se fosse hoje em dia, pobre Jesus, iria chicotear noite e dia, mas não ia conseguir expulsar nem uma fração deles...).

Lembram como ele chorou quando soube que seu amigo Lázaro havia morrido? E olha que ele já sabia que ia trazê-lo de volta à vida - mas acho que Jesus chorava de ver os outros sofrerem, quem sabe...

Nas vésperas de ser preso prá ser crucificado ele também chorou - mostrando prá gente que, fortes ou fracos, todos nos tornamos pequenos diante da tristeza.

Humanos.

Em dezembro fomos viajar de carro prá conhecer Florianópolis - ideia do meu filho. Fez roteiro de todas as praias que deveríamos conhecer, todos os pontos turísticos. Levei várias caixas de remédios prá dor, relaxantes musculares, anti-inflamatórios, pois a última coisa que eu queria era atrapalhar as férias da família com os meus problemas.

Caminhei com eles em todas as praias (com minha bengalinha), entrei nas águas geladas (sempre de mãos dadas com alguém...), visitei fortes, subi escadarias, visitei as alturas dos mirantes - até fui elogiada por minha coragem por uma moça, que disse que muita gente de saúde não se arriscava a ir tão longe, que eu estava de parabéns!

Pois é: a gente tem que se esforçar prá não ser um fardo prá ninguém - especialmente para as pessoas que amamos.

Sejam as dores físicas ou morais. Analgésicos para umas, orações para as outras.

Mas às vezes: os analgésicos são fracos demais... Às vezes as orações não bastam...

Estávamos numa praia chamada "Praia Mole". Começou errado logo no início: meu marido estava procurando um lugar seguro prá deixar o carro, vimos uma placa na calçada indicando "Estacionamento" e entramos. Era uma casa grande na beira da tal praia, com um quintal enorme usado para estacionar carros. Estava em obras, pois na parte mais próxima da areia estava sendo construído um restaurante. Quem nos recebeu foi um homem que parecia ser o chefe dos pedreiros e foi logo nos dando um preço que era o dobro do que estava marcado na placa. 

Mal humorada eu disse pro meu marido que queria procurar outro estacionamento, que os outros não seriam malandros a ponto de cobrar o dobro de nós (porque eu percebi no rosto do homem que ele era meio pilantra, medindo a gente pelo carro, por sermos de São Paulo) mas fui voto vencido: todo mundo queria ficar por ali mesmo.

Fomos então arranjar um local tranquilo na areia prá montar o guarda-sol, estender as cadeiras. Praia lotada, homens marombados, mulheres plastificadas. Podem pesquisar: a "Praia Mole" é o ponto de encontro do pessoal que adora se cuidar e se exibir... A mim não incomodavam, até porquê, depois de uma certa idade, nós meio que nos tornamos invisíveis: apenas uma velha de maiô andando devagarinho pela areia.

E devagarinho é pouco: de todas as praias em que fomos, a Praia Mole tem a pior areia que se possa imaginar: uma grossa camada de areia extremamente fofa na qual nossos pés afundam como se fosse um pudim - e que faz o ato de caminhar um exercício desumano prá alguém normal de uma certa idade (imagine alguém usando uma bengala... Aliás: a bengala morreu, pobrezinha. Não sei se foi a água do mar, as mãos cheias de protetor, a diversidade das areias - só sei que ela ficou colenta, um nojo. Chegava em casa e tinha que lavá-la e passar maisena, ela então ficava menos pegajosa, mas feia de doer... Pobrezinha, tão prestativa...).

Meus filhinhos, depois que a gente achou um cantinho prá se esparramar, foram dar voltas pela praia e lá ficamos eu e o Marildo (ele lendo, eu apreciando o mar e tomando um solzinho nos palmitos enormes que chamo de pernas). 

Sabem como são as praias: vendedores de churrasquinho de queijo, castanha de caju torrada, sorvete e Churros. Meu marido não gosta que a gente compre nada dos vendedores de praia - diz que não tem higiene e que tudo vem coberto de areia (eu não me importo, mas não me compram nada, bando de sovinas do caramba...).

Lá fico eu bebericando da água que eu mesma trouxe, sentindo o cheiro do queijinho derretido, a fome aparecendo (e eu discutindo mentalmente com o meu estômago, afinal de contas não haviam nem passado duas horas do meu café da manhã...) quando me passa pela frente um vendedor de churros - mais um, como qualquer outro... Mas não.

Eles vendiam os churros assim: uma assadeirinha de alumínio redonda. Uns 20 pedaços de canos de pvc (de construção, de fazer encanamento) serrados numa altura de uns 7 cm, um ao lado do outro dentro da assadeirinha - e dentro deles os churros, de pé, recheados de chocolate ou de doce de leite e cobertura de açúcar e canela ou granulado...

Tá, tá... Primeiro eu olhei porque queria o churro, mas aí reparei no braço do rapaz e seguindo o braço cheguei no próprio - talvez a idade do meu filho, mais baixo, pele curtida de sol, boné vermelho na cabeça, camiseta preta. Suado. Cansado de caminhar prá lá e prá cá naquela areia fofa. Parecendo tão triste.

Triste não. Eu reconheço desespero quando vejo. Depois de receber não das pessoas mais ou menos próximas de mim eu o vi caminhar um pouco, limpar o suor da testa, respirar fundo prá criar coragem e seguir na minha direção com a bandeja...

Antes dele chegar eu falei pro meu marido:

-"Quero churros. Me compra, por favor, quero churros"...

O rapaz chegou, ofereceu, meu marido agradeceu e ele foi embora, a tristeza personificada.

Meu marido nem percebeu - mal ergueu os olhos do livro. Me disse que outra hora me comprava churros limpinhos no shopping, que não ia comprar aquela porcaria prá eu comer e passar mal.

E eu - enquanto o rapaz não saiu do meu campo de visão - fiquei repetindo, implorando que queria churros, "churros daquele moço ali!", que ele precisava muito vender algum churro, já quase chorando...

Nessa hora nem percebi e meus filhos estavam voltando - e sabem ler a cara da velha muito bem. Vieram perguntando o que tinha acontecido, porque eu estava triste e eu falei:

-"É que o papai não quis me comprar churros de um rapaz que passou aqui, que tava muito triste, meu coração tá apertado por causa dele... Sabe quando a gente sente que alguém não está bem e tem que fazer alguma coisa prá ajudar? Eu queria comprar churros dele, talvez assim ele ficasse menos triste...".

E meu marido, achando que era só coisa imaginada por mim, ainda dizendo que os churros deviam até ser de ontem, cobertos de suor e de areia e eu dizendo "Eu queria comprar um montão de churros dele, daí podia até jogar no lixo depois, sem ele ver, mas pelo menos eu ia fazer alguma coisa..." (quando, na verdade, sem problema algum eu comeria algum churro, pois não tenho esses fricotes...).

Meu filho então, com aquela doçura que ele tem para comigo, me pegou na mão e disse:

"-Dentro da tua bolsa tá a minha carteira e dentro dela tem uns cento e vinte, cento e cinquenta reais - são todos teus, velhinha, prá comprar todos os churros que você quiser, todos os queijinhos que te der na telha comprar. Não precisa pedir, que o meu dinheiro é teu. Agora me descreve o rapaz que eu e as meninas vamos atrás dele comprar os teus churros...".

Levantamos todos, desmontamos o guarda sol, dividimos as cadeiras e saímos andando pela praia, caçando o vendedor de churros - pois eu queria estar junto, prá sentir que era mesmo minha imaginação todo aquele desespero que eu vi, me olhar depois no espelho e me chamar de boba, rir da minha própria cara...

Mas não o achamos mais. Talvez tenha voltado prá casa, talvez tenha ido prá outra praia. Estranho, pois eles trabalham circulando pelo mesmo lugar, prá lá e prá cá.

Nunca vou me esquecer dele e prá sempre vou me sentir um pouco culpada - sei lá pelo que eu tenho culpa, mas tenho.

Tem pessoas que nascem diabéticas. A vida inteira vão ter que lidar com a doença, com as restrições alimentares, com os remédios...

Algumas pessoas nascem daltônicas - não existem óculos prá corrigir isso. Meu filho mesmo, meu doce Ike, confunde verde com vermelho, bege com cinza e com rosa... Minha Lola tinha que escrever o nome de cada cor nos lápis dele, senão ele pintava tudo errado na escola - naquele tempo ele nem contou prá mim, prá não me preocupar, ficou só entre ele e as irmãs...

Eu tenho olhos que enxergam a tristeza, a solidão e a dor.

Tem um grafite no meu bairro que diz assim: "Nós não vemos o que vemos, nós vemos o que somos. Só veem as belezas do mundo aqueles que tem beleza dentro de si." e eu acho isso muito verdadeiro. Podem reparar: as pessoas que enxergam maldade, perversão e sujeira em tudo geralmente é porque tem isso dentro delas mesmas. Quem mais é cheio de moralismos, quando a gente vai ver, tem o rabo preso, não é assim? 

Eu, seguindo essa linha de pensamento, sou muito triste, pois meus olhos sempre acham a tristeza onde ela se esconde. Se eu estiver andando de carro estou olhando dum lado pro outro e sempre encontro os cachorros abandonados, os mendigos se encolhendo nos cantos, as meninas tristes e sozinhas...

Mesmo assim sou uma pessoa feliz: se você vai na minha casa eu estou picando legumes ouvindo músicas como "Jump", do Van Hallen, ou estou costurando assistindo Irmão do Jorel na TV. Fazendo pratos e mais pratos gostosos prá minha família comer, todos satisfeitos...

Nas doze horas que levou a viagem de volta paramos num posto de gasolina onde havia duas cadelinhas sarnentas mendigando comida pros viajantes - e lá vou eu choramingar de novo. Volto do banheiro pro carro caçar dinheiro prá comprar comida prá elas e me avisam que "o papai já comprou e tá lá dando"... 

Vontade de adotar as duas, trazê-las prá São Paulo no colo, cobertas de sarna e de pulgas.

Tentar fazer deste mundo um lugar melhor, de pouquinho em pouquinho, mesmo com o coração pesado.

Dentro do meu coração eu pensei em como eu seria mais feliz se não enxergasse a vida como eu enxergo... Como seria bom andar no mundo de olhos e ouvidos fechados, prá não ver nem ouvir toda a tristeza que percebo através deles - e sabe o que aconteceu?

Peguei uma conjuntivite daquelas, mais de duas semanas com os olhos enevoados e leitosos, acordando com eles lacrados de pus seco, vermelhos e queimando.

Como se não me bastassem os ossos doendo...

Então, domingo passado, oito da noite - hora do evangelho no lar. Mesmo com os olhos ruins é minha tarefa ler dois capítulos na sequência - estou quase chegando no final de Lucas. Deixamos uma jarra de água na mesa e, ao final, dividimos os copos.

Bebi parte do meu e a outra parte lavei os olhos, pedindo perdão por reclamar dos olhos que tenho.

Amanheci com eles limpos - embora ainda enxerguem a vida da mesma maneira.

Mesmo se existisse a tal pílula que cura a tristeza eu não a tomaria. De que ia adiantar eu não sentir o que ainda existe no mundo? Enquanto eu for assim sempre vou poder tomar alguma iniciativa, fazer alguma coisa prá ajudar, mesmo que seja quase nada...

Minha avó me ensinou a rezar uma oração católica chamada "Salve Rainha", na qual se fala de um vale de lágrimas. Quando eu era pequena eu perguntei prá ela que vale era esse e ela me respondeu que era o mundo. Que aqui o que mais se faz é chorar...

Não sei. Acho que aqui é um vale de lágrimas e de risos, um caminho permeado de espinhos e de flores. Alguns de nós parecem ter uma armadura - parecem até não se ferirem nos espinhos. Às vezes dá até inveja... Enquanto isso, outros de nós parecem atravessar pelos espinhos carregando o coração nas mãos, um ferimento após o outro e seguem sem parar prá onde quer que estejam indo...

Aquele poema bobo do começo da postagem fui eu escrevi muito tempo atrás, quando a tristeza não queria sair de mim nem chorando - então eu a pus no papel.

Dá pra ver que não nasci pra poesia...

Aquela tristeza? Passou. Vieram outras e outras virão - pura matemática da vida.

Não quero jamais amar pela metade - quanta bobagem. Quero amar o triplo, cem vezes, mil vezes mais. Porque o amor é que é o remédio.

Na próxima postagem eu mostro um saco de dormir que fiz pro meu futuro netinho que vai nascer em março. A gravidez da minha enteada segue firme e forte, com a graça de Deus.

É assim que seguimos vivendo.

Ah, lixei e pintei minha bengala - ressuscitei ela, por assim dizer. Meu filho disse que ia me comprar outra, mas prá quê? Ficou linda. Se vocês virem uma velha na Penha atravessando devagar a rua com uma bengala azul, por favor, não atropelem. Sou eu.


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