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Memórias no porão do esquecimento

As coisas começaram a envelhecer, as ideias já não cabiam nos objetivos, tinha gente se tornando pó e enchendo as salas de poeira, livro velho carcomido, teia de aranha, pedaço de trapo. Era preciso dar um jeito, limpar a tralha, esconder o cheiro de mofo. Inventamos o porão. Lá foram morar as coisas sem valor, as ideias esquecidas, as memórias indesejáveis,  os medos inconfessáveis, a violência incontrolável, as paixões perturbadoras. Cada porão individual se comunica com os porões maiores que abrigam cidades inteiras, países, continentes e por fim toda a humanidade. Sabemos em segredo que eles existem, mas é melhor não tocar no assunto. Assim, continuamos. Vemos qualquer coisa de abstrato, uma sombra desse subsolo, mas é tão difícil organizar os pensamentos – sentimentos. Tanta coisa importante a ser feita: o trabalho, comer mais vegetais, praticar exercícios regulares, lavar a louça, ler os livros que jazem nas estantes, ou não lê-los e dormir, namorar, torcer pra um time, uma religião,uma ideologia e depois cuspir tudo nas mesas imóveis das faculdades, dos consultórios, dos escritórios, das igrejas e dos bares. Elas, as mesas, escutam em silêncio e não revidam quando esmurradas, são adoráveis. O problema são os arqueologistas. Um tipo sádico- masoquista maníaco que resolve de luvas ou com as mãos nuas e cruas desvendar os fósseis vivos que habitam o subsolo. Alguns vão sozinhos hipnotizados, desamparados, loucos, poetas, bêbados, profetas parecem que dizem qualquer coisa de verdade, mas é difícil decifrar, não temos tempo pra levar a sério o que não cabe na utilidade.  Às vezes esses arqueologistas acham quartos secretos partilhados por um grupo e quando voltam à superfície respiram aliviados, não se sentem culpados, não existe responsabilidade quando nos diluímos no corpo coletivo. Assim, não há problema em fazer se todo mundo faz. Em pensar assim ou assado se todo mundo pensa. E todo mundo pode caber num grupo bem pequeno, ficamos cegos às dessemelhanças quando partilhamos a diluição. O diferente vira inimigo a ser doutrinado, excluído e em última medida exterminado. Flutuando na irresponsabilidade individual o subsolo abre uma fresta por onde escorre a crueldade, a incompreensão, a intolerância. As três vêm dançando de mãos dadas numa ciranda pelos pacatos almoços de domingo, sapateiam na macarronada, pulam nas ruas, beijam o asfalto, fazem cócegas nos  pés dos motoristas, brincam com as crianças nos parquinhos, fazem festa nas escolas,rodopiam no céu de cabeças cansadas, cinzas, poluídas, elas não dormem, vagam pela noite adentro, pelos becos, chutam mendigos, agridem as putas, elaboram discursos e depois são eleitas, criam empresas, desenvolvem o país e ajudam nas estatísticas econômicas. Elas dançam até com as boas intenções. E depois quando vemos o corpo estendido no asfalto não sabemos de quem é a culpa, não há culpado, porque somos todos. O subsolo é nosso, obra humana universal. Lá também habitam o idílio, o herói, a paz perpétua e às vezes trazemos essas velhas ideias de volta e construimos templos, constituições, prédios inteiros de irmandade e fraternidade ou a minha casinha no meio do mato onde gatos e cachorros andam juntos. Respiramos aliviados, faxinamos o subsolo, achamos flores embaixo do pó, algumas ainda perfumam, imperfeitas ideias democráticas, quem sabe se regarmos elas podem crescer, quem sabe se lutarmos elas podem ganhar as cabeças, as ruas, os prédios, as leis, as mentes, mas pra isso precisamos de revolução, quem sabe armas, dominar o congresso, queimar alguns livros, proibir algumas músicas,exterminar os opositores e assim violentamente conquistar a democracia. Para depois perceber que a guerra pela paz, ou o totalitarismo pela democracia, ou a revolução para o apaziguamento ou a justiça pelas próprias mãos são tentativas desesperadas de conciliar os inconciliáveis moradores do subsolo. Seguimos angustiados, como é próprio dos últimos séculos, tentando ajeitar as gavetas e separando as emoções por cores, andando em círculos pelas salas, abrindo e fechando abas no navegador da internet, misturando na mesma tela aquele texto importante daquele filósofo de não sei onde, o facebook daquela menina que sumiu da sua vida, aquela receita de macarrão com frango, e o site de compras online. E assim, continuamos, na confusão externa retrato de nossa confusão interna, a guardar memórias no porão do esquecimento.

Texto: J. Scarpelli, Foto Perseu Azul

TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA CERBEROS NO SITE:  WWW.CERBEROS.COM.BR




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