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A TERNURA DE QUEM AMAMOS

“Lygia, eu estou péssima. Estou doentíssima, acho que vou morrer, venha me ver, pelo amor de Deus! Quero demais morrer segurando a mão da Lygia, porque sei que ela vai entender tudo na hora H. Ela vai dizer: ‘Hilda, fica calma e tal que é assim mesmo.’”

– Poeta Hilda Hilst em seus escritos sobre Lygia Fagundes Teles. Textos, cartas e depoimentos entre as duas escritoras foram publicados nos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, em 1999.

Elas foram grandes amigas durante mais de 50 anos. Conheceram-se no final da década de 40, quando Lygia foi homenageada numa festa na Casa Mappin, em São Paulo, promovida pela Academia Brasileira de Letras, ao receber o Prêmio Afonso Arinos pelo terceiro livro de contos, “O cacto vermelho”.

Hilda Hilst ainda não tão conhecida, mas já daquele jeito descolada chegou ziguezagueando entre as mesas, furou a fila de autoridades, passando na frente da angelical Cecília Meireles que usava um turbante negro tipo indiano, e era levada pelo braço por Lygia para a cabeceira da mesa de jantar.

– Sou Hilda Hilst, poeta. Vim saudá-la em nome da nossa Academia do Largo de São Francisco – apresentou-se, vestida com uma simplicidade que contrastava com o esplendor de sua beleza e firmeza.

A Academia a que ela se referiu foi um termo incorporado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a mais antiga instituição do gênero no Brasil, também conhecida por Faculdade de Direito do Largo São Francisco, por se localizar no logradouro que acolhe alguns marcos importantes da história paulistana, um dos principais conjuntos de arquitetura barroca da capital.

Vários escritores passaram e muitos movimentos culturais surgiram nessa faculdade. O abolicionista Castro Alves, o grande nome da segunda geração romântica Álvares de Azevedo, o Simbolismo na pessoa de Alphonsus Guimarães, José de Alencar como expressão do Romantismo, o modernista Oswald de Andrade, o precursor da literatura infantil Monteiro Lobato, e entre tantos, ela Lygia Fagundes Telles, ela Hilda Hilst. Era, portanto, importante que a agraciada com o Prêmio da Academia Brasileira de Letras fosse também saudada pela Academia do Largo de São Francisco. Isso ficou claro na atitude intempestiva e admirável de Hilda.

“Consegue se conter até certo ponto mas de repente, com os impulsos, abre as comportas e solta os cachorros”, como escreveu Lygia em seu livro de memórias “Durante aquele estranho chá”, 2002, no capítulo a ela dedicado, “Da amizade”, página 35. Naquela noite no Mappin Lygia encantou-se com “aquela jovem muito loura e fina, os grandes olhos verdes com uma expressão decidida. Quase arrogante”.

Em novembro daquele mesmo ano em que se conheceram Lygia leu um poema inédito de Hilda, “Canção do mundo”, e viu que estava diante de uma das mais jovens e talentosas da “novíssima geração que borbulha freneticamente em São Paulo.”. “Os homens de bem / me perguntaram / o que foi feito da vida. / Ela está parada / angustiadamente parada. / O que foi feito / da ternura de todos que amaram”, diz o trecho final do poema, publicado, por indicação e apresentação de Lygia, na Revista Branca, edição 9, o mais importante periódico cultural da época.

A repercussão do poema “com pena firme penetrando fundo para trazer à tona todo o seu luminoso mundo interior”, como dissertou Lygia, fez Hilda Hilst lançar seu livro de estreia, “Presságio”, no ano seguinte.

Muitos não entendiam como duas pessoas de temperamentos distintos se davam tão bem. Em comum manifestavam o prazer de criar vários cachorros, e passavam horas idealizando para a velhice um lugar onde pudessem montar uma espécie de comunidade alternativa com os amigos, e passarem dias rindo e tricotando histórias ao redor da lareira.

Para as diferenças Hilda não perdia tempo explicando, dizia que “a gente tem uma amizade, sei lá, pode ser até de outras vidas, embora sejamos muito diferentes. Aí, por exemplo, eu bebo muito, ela não bebe nada. Ela diz: ‘Eu vou beber um vinhozinho’. Mas eu já estou bebendo uma garrafa e vários uísques”, dizia, às gargalhadas. Os opostos se distraem.

No dia 2 de janeiro de 2004, ainda desfazendo as comemorações do Ano Novo, Hilda sofreu uma queda em casa, quebrou as duas pernas e foi internada num hospital em Campinas. Já sofria de deficiência crônica cardíaca e pulmonar, seu estado clínico complicou com as infecções e faleceu na madrugada de 4 fevereiro.

Um ano antes, por volta das 23h de um final de semana, como num presságio que não poderia segurar a mão de Lygia na hora H, ligou para amiga e disse: “Lygia, a alma é imortal”. “Eu sei, Hilda”, respondeu Lygia, sem se surpreender com o jeitão repentino dela. “Ela me mandou um beijo e desligou”, lembrou a escritora.

Tornamo-nos eternos no coração de quem nos ama.

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