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1999-00: O conto de fadas do Calais Racing Union

No dia 7 de maio de 2000, 78.717 pessoas se aglomeraram no Stade de France, em Saint-Denis, subúrbio ao norte de Paris. Na data, o Nantes defendia a manutenção do título da Copa da França, alcançado na temporada anterior. Treinados por Raynald Denoueix e contando com atletas da qualidade do meia Eric Carrière, os Canários encontraram uma cena inusitada. Os presentes no famoso estádio francês superavam a população total de Calais, próxima ao Canal da Mancha. Em 1999, o Institut national de la statistique et des études économiques (INSEE) estimava um total de 77.317 habitantes. Dali, com um chamativo uniforme amarelo e vermelho, vinha o outro finalista, à época na quarta divisão: o Calais Racing Union.

Foto: So Foot/Arte: O Futebólogo


Uma história de poucas emoções


No Futebol, não são poucas as histórias que começam a partir de fusões, especialmente quando os envolvidos representam um mesmo lugar, sem alcançar sucesso. A trajetória do Calais RUFC é uma dessas. O futebol francês se profissionalizou em 1932, com a fundação de uma liga, a National. Naquele momento, o Racing Club de Calais, também fruto de uma união, tinha alguma relevância, chegando às fases mais agudas na Copa da França, ainda que longe das finais.

Apesar disso, em 1938, abandonaria o profissionalismo; a atividade se tornara insustentável do ponto de vista financeiro, tanto porque os custos aumentavam quanto porque outras equipes de praças maiores e mais ricas elevavam seus investimentos no esporte. Ademais, a Europa era o epicentro da Segunda Guerra Mundial. Não dava para competir. O clube não deixou de existir, mas aceitou que sua realidade só permitia acessar o obscuro mundo do amadorismo.

Por sobre os escombros da guerra — em que Calais foi submetida a um cerco por tropas alemãs e destruída durante a Batalha da França —, uma outra fusão originou o Union Sportive. Era o ano de 1947 e Bicoque e Nouvelle France deixavam de existir. A nova agremiação não triunfaria mais que o Racing. Também habitaria o amadorismo.


Os anos passavam e, apesar da localização estratégica e da vasta história, Calais não tinha um representante minimamente expressivo no futebol. 

Por isso, em 1974, concluiu-se que o melhor era combinar Racing Club de Calais e Union Sportive. Nascia o Racing Calais Union. O amarelo do primeiro se somava ao vermelho do segundo. A semelhança com o vizinho famoso da menor, mas esportivamente mais bem-sucedida, Lens era notória, com o clube inclusive sendo apelidado de Sang et Or

Não obstante os esforços, a região do Passo de Calais, que não era especialmente famosa por futebol, não passaria a sê-lo tão cedo.

O poder andava dividido


Costumeiramente inserida no contexto da elite do futebol europeu, a França é um dos países com menor concentração de poder nas mãos de poucos. Antes de o PSG ser negociado com a Qatar Sports Investments, a pulverização era ainda mais notória. Mesmo que equipes como Saint-Étienne, Olympique de Marseille, Monaco, Nantes, Bordeaux, Reims e Nice tenham vivido auges esplendorosos, eles costumavam terminar ao final de uma geração específica de atletas, ou com uma mudança de proprietário.

Os anos 1990 evidenciaram tal cenário, contundentemente. O decênio começou com sucesso polêmico dos marselheses, mas logo transitou entre PSG, Nantes, Auxerre, Monaco, Lens e Bordeaux. Sete campeões em 10 anos. Costumeiramente mais democrática do que a Ligue 1, a Coupe de France revelava cenário parecido, adicionando o Nice ao corpo de vencedores. A despeito disso, essa alternância se restringia às equipes da primeira divisão.

A repartição de poder existia, mas se resumia a um grupo limitado de equipes. Na década, somente duas de fora da elite alcançaram as finais copeiras. A saga mais impressionante até então era a do Nîmes. Em 1995-96, os Crocodilos andavam na terceira divisão, o que não foi empecilho para eliminar Saint-Étienne, Strasbourg e Montpellier, no caminho à decisão perdida para o Auxerre. Três temporadas depois, seria o Sedan a surpresa. Porém, o time da Ligue 2 não encontraria nenhum adversário da elite, antes da final diante do Nantes.


Muito longe dos pódios, em 1998-99, o Calais retornava ao Championnat de France, a quarta divisão nacional, amadora. A campanha seria decente, somando os mesmos pontos que o Reims no Grupo A e ficando muito próximo do acesso ao terceiro escalão. Entretanto, esse era o tom de sua vida, muito mais opaco do que seu uniforme sang et or. O tamanho das aspirações do clube condizia com a capacidade do Stade Julien-Denis, 2.100 lugares totais, 742 sentados.

Democrática, a Copa da França era sempre uma possibilidade, mas dificilmente se tornava uma atração. Em 1999-00, o Calais entrou na disputa na quarta fase. Depois de eliminar quatro times que estavam aquém de sua divisão, Campagne-lès-Hesdin, Saint-Nicolas-les-Arras, Marly-lès-Valenciennes e Béthun, na oitava fase, finalmente, enfrentou alguém do seu tamanho. O rival era o vizinho Dunkerque, massacrado: 4 a 0. Na fase de 32 avos de finais, as coisas começariam a se complicar.

A esperança das Copas


Ao manusear jornais e revistas, ou assistir à televisão, o apaixonado pelo futebol francês deve ter se surpreendido. Da tabela da Coupe de France surgia um time nada usual, com um escudo digno das mais elevadas artes do paint brush, no chamativo amarelo e vermelho. Aquela instância já era o mais longe que o Calais avançara em sua história futebolística. O adversário da vez era um peso pesado da região, ainda que estivesse na segunda divisão (da qual acenderia com título na temporada).

O Lille andava na Ligue 2 desde 1996-97, mas, ainda assim, esperava-se uma classificação impositiva perante os Sang et Or. Entre os comandados do famoso treinador Vahid Halilhodžić, estavam os zagueiros Pascal Cygan, que passaria anos no Arsenal, e Matthieu Delpierre, de sucesso no Stuttgart. Por outro lado, desde 1995, o Calais era treinado pelo até então incógnito espanhol Ladislas Lozano (que deixara seu país em razão do Franquismo); apostava em um elenco de professores, estivadores, jardineiros, eletricistas, escriturários, entre outros. Jogar em casa era uma pequena vantagem.

Foto: AFP/Philppe Huguen/Arte: O Futebólogo

Como esperado, o Lille saiu na frente ainda na etapa inicial, com Laurent Peyrelade. Os minutos foram passando, o primeiro tempo acabou e a etapa final transcorria. Até Cygan marcar. Contra. Aos 68 minutos, o placar exibia um inesperado 1 a 1. Implacavelmente, o tempo continuou seu curso. O período regulamentar se findou e a prorrogação deu as caras. Os pênaltis se encaminharam. E o Calais venceu: 7 a 6.

Na fase seguinte, a equipe deu sorte. O sorteio lhe opôs o modesto Langon-Castets, uma divisão inferior a ela própria. Sem dificuldades, os comandados de Lozano venceram: 3 a 0. Destaque para Mickaël Gérard, autor de um doblete. Embora pudesse se justificar em si mesmo, o sonho ultrapassava as fronteiras do futebol. Naquela altura, a cidade de Calais enfrentava um desemprego de 17% e um cenário de descrença absoluta em um futuro melhor, como pontuou a BBC. O futebol não garantiria trabalho às pessoas, mas podia atenuar a sensação de desesperança.


Avançando às oitavas de finais, o Calais voltava à condição de azarão. O rival da vez era o Cannes, aquele mesmo time que, menos de dez anos antes, apostava suas fichas no talento de Zinedine Zidane. Como o Lille, os Dragões estavam na segunda divisão. O raio cairia no mesmo lugar? Improvável, mas, ainda que não ignore a sabedoria dos números, o futebol não é um jogo de probabilidades. Os Sang et Or seguraram o adversário. O zero a zero persistiu. Outra vez, o tempo extra foi necessário.

Quando o Cannes saiu na frente, transcorridos 114 minutos, parecia claro o desfecho. Exceto pelo plano empreendido por Christophe Hogard, que empatou quase imediatamente. Na marca da cal, outra vez, o Calais foi superior: 4 a 1.

Sonhando até o fim


A prova cabal de que as coisas estavam ficando sérias se materializou com a necessidade de o azarão mudar de casa. Pelo regulamento, era necessário jogar em um estádio maior. Pela frente, o Calais tinha seu primeiro adversário de elite, o Strasbourg, do jovem Peguy Luyindula. Naqueles dias, o Stade Félix-Bollaert, em Lens, vivia cheio de graça, tendo o clube residente vencido a Ligue 1 em 1997-98, bem como a Coupe de La Ligue, no ano seguinte. 250 ônibus se deslocaram para acompanhar a partida.

Naquela casa que não era estranha às cores amarela e vermelha, Olivier Echouafni colocou os alsacianos em vantagem logo aos seis minutos da etapa inicial. Fim do sonho, certo? O outra vez irresignado, Hogard colocou toda a resiliência própria de sua atuação como assistente social ao serviço do Calais, empatando a contenda, antes do fim dos primeiros 45 minutos. Caberia, entretanto, ao lojista Jocelyn Merlen desempatar o jogo e classificar aquele projeto de Davi.


Contra um Bordeaux que apostava em Johan Micoud, Lilian Laslandes, Christophe Dugarry e Stéphane Ziani, estava claro que tudo tinha limites, inclusive a história de Cinderela vivida pelo Calais. Ou será que não? Os primeiros 90 minutos terminaram como começaram, sem gols. Na prorrogação, Cédric Jandau reiterou a indisposição com a derrota daquele intrépido grupo. Laslandes empatou para Golias, mas nada parecia capaz de abalar o espírito do pequeno time. Provavelmente cansados de cobrar pênaltis, Mathieu Millien e Gérard decidiram o jogo logo: 3 a 1.

A emoção foi tamanha que o técnico Lozano chegou a sofrer um pequeno ataque cardíaco que o condenou a passar uma trinca de dias hospitalizado. Nem o presidente da república, Jacques Chirac, ignorava aquilo — surpreendendo o comandante com uma ligação: “Você dá uma imagem muito gratificante da juventude francesa. Estamos com você”, teria dito, como contou o comandante à revista So Foot.


Naquele momento, toda a França que não torcida para o Nantes, o outro finalista, apoiava os nanicos do Canal da Mancha. Até mesmo jornais como o Le Parisien clamavam pelo Calais.

Um certo cheiro desagradável começou a pairar no ar desde o momento da distribuição de ingressos. O underdog não abria mão de metade da carga do Stade de France, palco da decisão. Porém, teve de se contentar com 19.300 entradas, das 80 mil totais. Já não havia dúvidas sobre o caráter da equipe, que saiu na frente quando a bola rolou. Após um tremendo bate e rebate na área dos Canários, Jérôme Dutitre deu a vantagem aos novos queridinhos da nação. Eram decorridos 34 minutos.

“Voltamos ao vestiário com uma vantagem de um gol, o que já era bastante excepcional para nós, já que era a primeira vez que liderávamos contra uma equipe profissional. Depois, no segundo tempo... Acho que sentimos fisicamente, não nos recuperamos muito bem”, comentou o capitão Réginald Becque, à So Foot.

Foto: So Foot/Arte: O Futebólogo

No princípio da segunda etapa, Antoine Sibierski se aproveitaria de uma falha de posicionamento da defesa do Calais, que bateu cabeça, para empatar. As emoções ficariam suspensas até os últimos momentos da partida. Então, um agarrão desesperado e polêmico gerou um pênalti discutível em favor do Nantes. E como se até Sibierski sentisse o peso da causa daqueles heróis do futebol amador, sua cobrança atingiu as mãos do goleiro Cédric Schille. Mas entrou. Era o minuto 90 e os Canários renovavam o título da Copa da França.


Campeão moral


“O senhor Chirac nos disse que existe um vencedor esportivo e um vencedor moral. Ele nos disse que Calais era o verdadeiro vencedor”, contou Lozano. Apesar da derrota no último minuto, a França se curvava àquele corajoso grupo de trabalhadores comuns que jogava bola. Nem tanto pelos resultados, mas pelo que significavam. Pela luta até o final e por carregar o orgulho de uma região muitas vezes abalada pelas mais duras circunstâncias.

Ao receber a taça, o goleiro Mickaël Landreau, capitão do Nantes, chamou seu contraparte, Becque, para, lado a lado, erguerem o troféu. Ambos eram vencedores. “É uma bela imagem, um belo símbolo e também um momento especial para mim”, comentou o líder sang et or.

Foto: Franck Dubray/Arte: O Futebólogo

Aquele momento epitomizava o sentimento de toda uma comunidade. “Os seis anos passados ​​no clube me influenciaram, mas também a mentalidade dos locais, sua maneira de lutar, ultrapassar seus limites, rejeitar as adversidades. Calais forja personagens, e fui muito feliz por morar lá”, relatou Lozano à citada entrevista para a So Foot. Calais não era mais apenas a cidade tomada pelos alemães na guerra, ou o lugar que vivia grave crise de falta de empregos. Também era a casa de um orgulhoso finalista da Copa da França.

O elenco vice-campeão não seria alçado ao estrelato. Tampouco o treinador, apesar de ter tido algum sucesso no Marrocos e no Catar. O clube também não iria longe. O profissionalismo seguiria à margem. Em 2005-06, o Calais até avançaria às quartas de finais da Copa, mas cairia novamente perante o Nantes. Em 2008, mudar-se-ia para uma nova casa e que tinha um nome sugestivo: Stade de l'Épopée.

Porém, nem as melhores memórias da virada do milênio evitaram a dissolução do Calais, em 2017. A vida, afinal, não é um conto de fadas, ainda que sonhar seja sempre permitido.



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