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Os conflitos que implodiram a Holanda na Euro 1996

O ocaso do colonialismo condicionou, em grande medida, os rumos da segunda metade do século XX — seja pela consolidação de processos independentistas ou pelas consequências destes. Muita coisa mudou, rapidamente. Como pontua o sociólogo britânico-jamaicano Stuart Hall¹, as identidades se submeteram aos impactos da “compressão espaço-tempo”, especialmente diante de contínuos fluxos migratórios. Cada vez mais importante expressão cultural, o esporte evidenciaria essa realidade. Exemplificando, faz tempo, não existe futebol holandês sem a influência de imigrantes de suas antigas colônias. O Suriname se confirmou símbolo desse fenômeno, o que ficou claro na Euro 1996.

Foto: BD/Arte: O Futebólogo


Do Suriname para a Holanda


Oficialmente, o Suriname nasceu em 25 de novembro de 1975. A colonização pela Holanda vinha desde o século XVII, período em que o território dominado ficou conhecido como Guiana Holandesa. No entanto, o vínculo com os neerlandeses nunca cessou. Naquele momento, já se sabia que seria assim. Um dia após a proclamação formal da república, desde a capital Paramaribo, o noticiário internacional recebia a informação de que a antiga metrópole seguiria influenciando o destino da 12ª república sul-americana.

Condescendente em relação à posição neerlandesa, a Folha narrou que “a Holanda decidiu continuar ajudando o Suriname, com um auxílio anual calculado em 50 milhões de dólares”. Na data, enquanto os últimos 300 soldados dos Países Baixos retornavam à Europa, o primeiro-ministro Henck Arron declarava que “não só nossos recursos naturais, mas também nossa força humana e capital disponível, serão utilizados exclusivamente para o crescimento econômico da nação”. Não poderia estar mais errado.

Na altura, um intenso fluxo migratório já tomara conta do país. Milhares deixavam a América rumo aos Países Baixos. O que se acentuaria nos anos 1980, com o Golpe de Estado liderado por Dési Bouterse, e, posteriormente, com a Guerra Civil, iniciada em 86. Todavia, a realidade encontrada pelos imigrantes seria desafiadora.


“‘Nos anos 1970, pessoas surinamesas tinham um nome ruim na Holanda. Muitas pessoas que chegavam eram desapontadas por uma sociedade a que não estavam acostumadas. Elas não eram bem-sucedidas, então algumas se viraram para as drogas. Havia traficantes, cafetões e viciados em Zeedijk [rua no centro de Amsterdã]’”, relatou David Winner, em Brilliant Orange: The Neurotic Genius of Dutch Soccer, auxiliado pelo relato do jornalista Humberto Tan.

Apesar disso, o fato é que os surinameses estavam na Holanda. Formavam enclaves étnicos, levando pluralismo à cultura e à identidade nacional, desejada ou, muitas vezes, indesejadamente. Vivendo, trabalhando, consumindo, praticando esportes — claro, gerando filhos do Suriname, mas nativos da Holanda. Crianças como Ruud Gullit, filho de surinamês e holandesa, e também o amigo de infância de Frank Rijkaard, de semelhante berço.

Gullit e Rijkaard seriam alguns dos primeiros expoentes da influência sul-americana no futebol dos Países Baixos. No entanto, essa relação, cada vez mais permanente, expor-se-ia mais contundentemente na geração seguinte.

Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Do Ajax para a Oranje


Após o apogeu esportivo do início dos anos 1970, o Ajax puxou o freio de mão. Uma pequena colônia de holandeses seria formada em Barcelona. Primeiro com a ida do treinador Rinus Michels para a Catalunha; depois dos Johan, Cruyff e Neeskens. Embora mantivessem força doméstica, continuando a ganhar títulos holandeses, os Godenzonen começaram a se afastar dos pódios continentais.

A primeira retomada viria com a conquista da Recopa Europeia, em 1986-87. Reforjando o futebol que notabilizou o Ajax, o agora treinador Cruyff recuperava as melhores virtudes do clube amsterdamês. Para a missão, afirmou o goleiro Stanley Menzo, contou com a elegância de Aron Winter e apostou nas qualidades do polivalente Rijkaard. Se este nascera na capital neerlandesa, os primeiros vinham de Paramaribo. No campo de futebol, a união desses atletas com gente como Marco van Basten, Rob Witschge e Arnold Mühren se revelava excepcionalmente coesa.

“‘Os Jogadores surinameses casam com o estilo sul-americano e brasileiro mais despreocupado [...] se misturam facilmente ao futebol holandês. Eles compartilham a filosofia. A única diferença é que os jogadores holandeses tendem a pensar mais em termos de conceitos e soluções e são muito metódicos. O jogador surinamês joga mais porque gosta. Ele se diverte mais [...] quando você combina isso com a eficiência holandesa, é letal’”, argumenta o já citado Tan.

Foto: Ajax/Arte: O Futebólogo

Cruyff renovaria seu vínculo com o Barcelona e, ao fazê-lo, forçaria mudanças no comando técnico do clube. Leo Beenhakker retornaria com seu pragmatismo, mas seria outro nome a completar a tarefa de recolocar o Ajax no topo da Europa. Louis van Gaal não apenas conduziu a equipe ao título da Copa da Uefa de 1991-92. Com um estilo próprio, fiel à tradição ajacied, ainda que mais sistematizado que o modelo cruyffista, LvG reconduziu o Ajax ao panteão do futebol europeu.

Em 1994-95, venceu o Milan e conquistou a Liga dos Campeões. No ano seguinte, voltou à decisão europeia, perdendo para a Juventus. O time tinha as qualidades dos melhores escretes holandeses e introduzia uma espécie de “segunda geração” de holandeses de origem surinamesa realmente bem-sucedidos. Van Gaal teve o retorno de Rijkaard, mas lançou Michael Reiziger, Clarence Seedorf, Edgar Davids, Winston Bogarde e Patrick Kluivert. Rapidamente, todos receberam as primeiras convocações para defender a Oranje.


O Ajax imperava em solo europeu. Era lógica a utilização de sua base na seleção. Ainda que tivesse se consolidado como treinador no rival PSV Eindhoven, enquanto comandante da Laranja Mecânica, Guus Hiddink não fugiu desse fato. Efetivamente, apostou nos talentos lançados pelo gigante amsterdamês. A escolha se pagaria rapidamente.

As eliminatórias para a Euro 1996 dividiam os países europeus em oito grupos de quatro equipes. Os líderes se classificavam diretamente para a competição continental, destino similar alcançando os seis melhores segundos colocados. Os outros dois vice-líderes disputavam entre si a última vaga — considerando que o país-sede recebia a sua automaticamente. A Holanda lutou ponto a ponto com uma prodigiosa geração de tchecos, mas terminou um ponto atrás deles.

A Laranja precisaria superar a Irlanda em um playoff. O Green Army vivia um tempo de sonho. Comandado por Jack Charlton, disputara a Euro 1988 e os Mundiais de 1990 e 94. Porém, estava diante de um fim de ciclo. Em jogo único sediado na cidade de Liverpool, o ataque formado por John Aldridge e Tony Cascarino não arranhou a meta defendida por Edwin van der Sar — mais um expoente do Ajax. Na outra ponta do campo, Kluivert mostrou todo o seu potencial, marcando os gols da classificação holandesa: 2 a 0.


“De Kabel”: problemas escancarados


Sete dos 13 jogadores que enfrentaram a Irlanda em Anfield Road tinham origens no Suriname. Era impossível ignorar aquele grupo que apostava no futebol as chances de ascensão social. Sem ele, a Holanda não apenas era insuficiente como carecia de juventude, força, velocidade, graça e gols. O futebol nacional incorporara, na sua totalidade, os acréscimos trazidos pelos imigrantes das ex-colônias.

Em evidência após a classificação holandesa para a Euro, Seedorf, Davids e Kluivert foram entrevistados pelos jornalistas Frits Barend e Henk van Dorp, da rede televisiva NOS. Durante a conversa, Kluivert proferiria as seguintes palavras “We zijn gewoon kabel” — em interpretação livre, o goleador sustentou que o trio era como um “cabo”, explicando o vínculo próximo que nutriam. Esse fato parecia relegado ao esquecimento. Até o início da Euro 1996.

Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Além das crias do Ajax, Hiddink selecionou outros dois jogadores de origem surinamesa. Ídolo do Feyenoord, o ponta Gaston Taument foi chamado, assim como o defensor John Veldman, cria do PSV e que representava o Sparta Rotterdam. Eles totalizavam oito jogadores, entre os 22 selecionados. Apesar disso, o único escolhido que sugeria a necessidade de adaptação era Jordi Cruyff. Embora amsterdamês, crescera na Catalunha: “Terei de me acostumar com a maneira de trabalhar e também com o humor holandês, porque tenho uma maneira de pensar muito espanhola”, reportou o El País.

A panela de pressão começou a assobiar na estreia da Oranje. A equipe dividia o Grupo A com Escócia, Suíça e a anfitriã Inglaterra. Um empate sem gols diante de uma ordinária equipe escocesa acendeu o alerta. No Villa Park, em Birmingham, foram escalados Reiziger, Bogarde, Seedorf, Davids e Taument. A caça às bruxas começou rapidamente. E, subitamente, voltava-se a falar no kabel. Porém, a conotação era negativa e sugeria a existência de rachaduras no elenco.

No jogo seguinte, após sofrerem críticas públicas de Hiddink, que sugeriu que os jogadores deveriam usar mais a cabeça e confiar menos no coração, Davids foi substituído por Winter e Seedorf começou o jogo como líbero. Enquanto o primeiro entrou apenas nos minutos finais do jogo, a participação do segundo durou míseros 26. Amarelado, Clarence foi sacado sem mais nem menos, dirigindo-se frustrado e irritado ao banco. A Holanda venceu por 2 a 0, gols de Cruyff e Dennis Bergkamp, mas o cristal se rompera.


Após o jogo, o treinador não protegeria seus comandados. Seedorf adotaria o silêncio. Davids, não. “Ele [Guus Hiddink] deveria parar de lamber o saco dos jogadores brancos, para ver melhor o time”, falou a um jornalista alemão. O holandês Mark van den Heuvel gravou a resposta, transmitida à NOS. No dia seguinte, após reunião da qual participaram Danny Blind e Ronald De Boer, líderes do elenco e caucasianos, Davids foi cortado e não recebeu a chance de dar sua versão dos fatos.

Na reserva, Kluivert também estava irritado: “Não quero ser visto como um jogador juvenil, mas como um verdadeiro jogador de seleção”, reportou a revista When Saturday Comes.

O anticlímax era flagrante e contrastava com o ambiente externo. Se os ingleses já estavam empolgados com o evento que sediavam, abusando do lema Football’s Coming Home, a euforia seria total após o jogo diante dos holandeses. Com dois gols de Alan Shearer e outro double de Teddy Sheringham, os Three Lions massacraram a Holanda: 4 a 1. O gol de honra da Oranje coube a Kluivert, substituto de Peter Hoekstra, na etapa final.


As facetas de uma verdade questionável


Todos os atletas entrevistados no curso dos anos negaram a existência de uma divisão racial no seio da seleção holandesa. A negativa é categórica. Ainda assim, a hipótese se consolidou quando uma foto veio a público, exibida pelo Volkskrant. Ela retratava o elenco holandês durante um almoço. A separação entre brancos e negros era evidente, ainda que fosse vislumbrável a presença de Richard Witschge na mesa de Winter, Veldman, Taument, Kluivert e Bogarde.

A Holanda apenas avançou aos mata-matas no critério dos gols marcados. Tentando se concentrar em futebol, nas quartas de finais encontrou o que era o prelúdio da seleção francesa de 1998, um time estrelado por nomes como Lilian Thuram, Marcel Desailly, Youri Djorkaeff e Zinedine Zidane. A partida terminaria 0 a 0 e se encaminharia aos pênaltis. Para agravar o cenário, a Oranje perderia com um erro de Seedorf, que entrara na fase final da partida.


Mais tarde, reportagem do Guardian confirmaria a existência de problemas, mas de outra ordem. Ouvido, o atacante Youri Mulder esclareceria: “Os jovens jogadores do Ajax recebiam menos, mas isso era normal. Eles eram Seedorf, Davids, Kluivert e Reiziger, mas não acho que o motivo foi a cor [...] Eu estava no mesmo quarto que Patrick [Kluivert] e nunca tive essa sensação”.

De acordo com o ex-jogador do Schalke 04, no almoço da polêmica foto, entre outras opções, seria servida comida surinamesa, que só interessava aos jogadores de tal origem. Por isso, juntavam-se em uma mesma mesa. Além disso, declarou que Hiddink, que aparece aparentemente brigando com o fotógrafo, tentava evitar a propagação de uma mentira. Reiziger sugere que não era apenas isso: “Formamos um grupo separado. Conversamos com facilidade, porque pensamos da mesma maneira, temos a mesma cultura e fazemos as mesmas piadas”.

A questão dos salários teria fundo. No Ajax, os vencimentos se dividiam em três categorias, a dos craques, dos jogadores medianos e a dos atletas vindos de fora e das categorias de base. Os jovens se encaixariam na terceira hipótese, mas, com relevantes serviços prestados ao clube, entendiam que mereciam bem mais. O incômodo aumentava porque o diálogo entre diretores e atletas era intermediado por aqueles que já recebiam montantes maiores, Blind e os irmãos De Boer.

Foto: NOS/Arte: O Futebólogo

A aludida revista WSC chegou a expor que, enquanto Blind e os De Boer recebiam cerca de £200 mil mensais, Davids ganhava £40 mil, Seedorf, já na Sampdoria naquela altura, e Kluivert £32 mil, e Reiziger £26 mil.

No entanto, Hiddink tratou de acalmar a tormenta. “Foi ainda pior depois do torneio – a imprensa e as pessoas na Holanda culparam os jogadores pelos problemas fora do campo. Mas o estranho foi que dois meses depois começamos uma nova campanha. Hiddink reuniu todo o elenco e disse: ‘OK, o que aconteceu na Euro 96, tudo, vamos esquecer e focar na classificação para a Copa do Mundo’. Dois anos depois, com quase o mesmo elenco, fizemos um torneio fantástico na França”, revelou Arthur Numan, então defensor do PSV Eindhoven.

De fato, a Holanda deu a volta por cima, chegando às semifinais da Copa do Mundo de 1998. Após uma passagem melancólica pelo Milan, Davids recuperaria a boa forma na Juventus e seria reintegrado por Hiddink, aderindo ao código de conduta imposto pelo treinador. A situação teria sido intermediada pelo auxiliar técnico Hans Jorritsma.

Em sua biografia, Seedorf confirmaria a existência de problemas no elenco de 1996, mas “nunca relacionados à cor da pele”. Implicaria, ainda, que uma das questões era que Hiddink só ouvia os jogadores experientes. No Ajax, a situação seria diferente, com a sugestão de que ele e os demais negros do elenco recebiam menos apoio social e financeiro do clube. 

Por sua vez, Bogarde indicaria a existência de um profundo racismo institucional no clube, que contava com a silenciosa conivência de Blind e dos De Boer. Mais tarde, confirmar-se-ia que os jogadores de fato recebiam menos, com as pouco esclarecedoras justificativas apontando para a menor experiência.

Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

O que é a verdade deste caso? Impossível afirmar peremptoriamente. Com a percepção que têm da realidade, os envolvidos indicaram versões relativamente distintas, embora algum consenso seja verificado: havia problemas. A busca da verdade é um problema fundamental nos mais diversos campos. Ela pode variar — e ser, até mesmo, contraditória em um confronto de interpretações. Quase nunca se chega à integridade de uma dada realidade. O ocorrido na Holanda em 1996 somente refletiu essa lógica.

Mais uma vez, a Oranje entrou em um campeonato com chances de título, como o Ajax provara. Perdeu-se em si mesma. Porém, ficou sublinhado que a melhor expressão do futebol neerlandês compreende a soma das qualidades de todos aqueles que possuem o passaporte holandês, não importando sua origem.
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[1] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12ª edição. São Paulo, 2019: Lamparina.


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