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Em 1969, a Académica deu aos estudantes palco para protestar

O Estado Novo tinha os dias contados. O mais longevo dos regimes antiliberais da direita europeia, nas palavras de Eric Hobsbawn, vislumbrava seu fim. Autoritário, conservador, nacionalista e reacionário, tendo em António de Oliveira Salazar o principal agente do atraso, o governo vivia seus últimos anos. Em 1969, parcelas da sociedade já se manifestavam pelo fim daquilo. A chegada da Académica à final da Taça de Portugal foi uma feliz coincidência. Vencer não significava necessariamente alcançar um placar positivo e levantar um troféu. Era muito mais do que isso.

Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Atraso e insatisfação


Em Heróis da História de Portugal Como Nunca Foram Contados, o jornalista Pedro Marta Santos relata que, desde o início dos anos 1960, era preciso desafiar duas ideias em Portugal: 1) a do “país mortal” e 2) a do “país do faz-de-conta”.

O primeiro surgira com a decisão portuguesa de defender a posse de seus territórios ultramarinos, “enquanto a maioria das potências imperiais já os tinha tornado autodeterminados e independentes”. Notadamente, a Guerra de Independência da Angola seria sangrenta e longa, indo de 1961 a 74. O segundo trabalhava no campo ideológico, tratando-se de “um país onde a glória maior do instinto humano, o beijo na boca, era um acto exibicionista, atentatório da moral [...] Um país onde a mulher precisava de autorização escrita do marido para viajar”.

Na corrida do desenvolvimento socioeconômico, Portugal ficava para trás. Muito atrás. Parecia condenado a acompanhar, imperturbável, o desenvolvimento de parte de seus vizinhos. Sem nenhum tipo de inveja ou incômodo. Se o país se encaminhasse para uma realidade amplamente rural, tanto melhor. As medidas típicas de governos despóticos se aplicavam ao contexto português. Censura, por exemplo, era regra.

Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Apesar disso, no final da década, uma mudança sensível ocorreria. Um acidente vascular cerebral obrigaria Salazar a se afastar do governo. Marcelo Caetano, o sucessor, já integrava o regime. Porém, pertencia à conhecida Ala Liberal do governo, notoriamente menos conservadora, nem tanto no âmbito dos direitos civis, mas ao menos no plano econômico. 

A partir do final de 1968, Portugal vivenciou um período de certa modernização e flexibilização dos instrumentos de controle e repressão.

O momento histórico ficaria conhecido como “Primavera Marcelista”. A ideia não era democratizar o país, ou permitir a independência das colônias, tão somente tirar a nação de anos de inércia e isolamento internacional. Exilados políticos puderam retornar ao país. Setores da sociedade interpretaram que era o momento de se manifestarem. Um caso notório foi o dos estudantes.

Os ventos de 1969 trariam uma crise. A insurgência partiria da Universidade de Coimbra, onde lideranças estudantis clamavam por mais direitos, reforma do sistema de ensino, e eleições democráticas e pluripartidaristas. Ainda que o esboço de uma crise já fosse vislumbrável, um episódio marcaria o início das perturbações acadêmicas.

A Crise dos Estudantes de 1969


Fundada em 1290, a Universidade de Coimbra é a mais antiga instituição de ensino superior de Portugal. Quase 700 anos após sua constituição, seria palco de um dos momentos mais emblemáticos de oposição ao Estado Novo. Era 17 de abril de 1969. Inaugurava-se o Departamento de Matemática. Presentes as principais autoridades nacionais, entre as quais o presidente da república (em Portugal limitado às funções de chefe de estado), Américo Tomás.

Os discursos de praxe foram ouvidos. No entanto, embora requerido expressa, formal e respeitosamente, o microfone não foi aberto ao presidente da Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra, Alberto Martins. A negativa, arbitrária como era o hábito, desencadeou uma resposta. A multidão presente, que exibia cartazes com dizeres como “ensino para todos”, vaiou as autoridades na saída. Fez, ela própria, outra inauguração, legitimada pela presença daqueles que efetivamente faziam jus à criação do citado departamento. A resposta à ousadia viria no mesmo dia, com a prisão de Martins.

“Pedi a palavra para falar, mas ele não me autorizou e acabou por abandonar à pressa o anfiteatro onde nos encontrávamos. Subi para uma das cadeiras e fiz, mesmo assim, o discurso para os estudantes que enchiam a sala e o exterior. Falei dos problemas da universidade, do ensino em Portugal e da necessidade da sua democratização”, recordaria Martins, ao Público.

Foto: Associação Académica de Coimbra/ Arte: O Futebólogo

O conflito se acirraria nos dias e meses que se seguiram. Convocados, os estudantes deliberariam sobre os passos seguintes a serem tomados no âmbito da universidade. Todavia, antes mesmo de qualquer medida ser levada a cabo, em 22 de abril, os principais dirigentes da instituição foram suspensos de suas atividades. Em ato contínuo, o corpo estudantil decretou luto acadêmico.

Uma greve foi iniciada, com as classes sendo dedicadas à discussão dos caminhos da universidade, não ao estudo propriamente dito. Apesar disso, o movimento não conseguia maior abrangência, diante da eficiência da censura, que impedia a divulgação de informações relativas àqueles fatos nos órgãos de imprensa. Não tardaria, entretanto, o encerramento da Universidade de Coimbra, em 6 de maio — na sequência sendo publicada uma carta, externando ao país e à comunidade internacional o que se passava na cidade universitária. Os exames foram suspensos.

Em 2 de junho, data em que deveriam se iniciar os tais exames, Coimbra acabaria tomada por forças policiais. Aglomerações e manifestações de toda ordem foram proibidas. Era a materalização dos vividos anos de chumbo. Diversas ameaças foram feitas aos estudantes aderentes ao embargo das provas, entre as quais a suspensão de bolsas de estudo, reprovação em massa e, no pior dos cenários, a obrigatoriedade de se juntar ao exército e rumar para as colônias, em meio aos conflitos de independência.

Porém, vinte dias mais tarde, um acaso oportunizaria aos estudantes conimbricenses a maior chance de se fazerem ouvir por toda a nação. Afinal, como referem diversos pesquisadores, entre os quais Alejandro de la Viuda-Serrano, da Universidad de Alcalá¹, o esporte é “uma ferramenta básica para a inculcação de princípios e ideias”, e a Académica estava na final da Taça de Portugal.


A saga da Académica


Poucos países convivem com um monopólio das forças esportivas tão evidente e irreversível quanto Portugal. Desde Lisboa, Benfica e Sporting emanam suas forças; ao norte, da cidade do Porto, é o clube homônimo que se opõe ao domínio capitalino. Não por acaso, os rivais costumam ser referidos como Trio de Ferro. Não foram muitas as vezes em que outras equipes soltaram o grito de campeão.

No Campeonato Português, apenas dois times conseguiram romper a hegemonia da tríade, Belenenses e Boavista — uma vez cada, com quase sessenta anos de intervalo entre uma e outra conquistas. Nas competições de mata-mata, como acontece na maior parte do mundo, as possibilidades de zebra aumentam; em uma eliminatória de um ou dois jogos, o surgimento de um azarão se mostra mais factível do que nos pontos corridos.

Foto: dr/Arte: O Futebólogo

Fazia 30 anos desde que a Académica vencera sua primeira, e até então única, Taça de Portugal. Em 1938-39, no Campo das Salésias, casa dos Belenenses e o estádio mais moderno do país na altura, a Briosa venceu o Benfica treinado pelo húngaro Lippo Hertzka, com passagem por Athletic Bilbao e Real Madrid — 4 a 3. Em cima deste sucesso, pouco haveria de ser construído. Realidade diversa seria encontrada na segunda metade dos anos 1960.

Já em 1966-67, provando o caráter democrático das copas, a Taça de Portugal opôs Académica e Vitória de Setúbal, na decisão. Já sediada no Estádio do Jamor, a principal casa do futebol português desde 1944, a partida terminaria na prorrogação, com o troféu acabando em mãos sadinas. Mas não foi só isso.


Contando em seus quadros com jogadores importantes, como os futuros ídolos benfiquistas Toni e Artur Jorge (ambos estudantes da Universidade de Coimbra na altura), além do selecionável lusitano Rui Rodrigues, a equipe conimbricense também terminaria o Campeonato Português com o vice. Apenas três pontos separaram a Académica do Benfica, numa temporada em que o astro Eusébio anotou portentosos 31 tentos.

“Foi uma final inédita com duas prorrogações! Se o Jacinto João não fizesse o gol [do 3 a 2 do Vitória], aquilo arrastava-se para outro dia. Outros tempos em que não havia cá pênaltis. Nesta final, os mais novos — eu pela Académica e o Vítor Baptista mais o Tomé pelo Vitória de Setúbal – saíram bem vistos. Foi o nosso passaporte para os grandes. Eu para o Benfica, como o Vítor e o Tomé para o Sporting. Eu, entretanto, acabara o sétimo ano, agora 12º, e estava a tirar Direito em Coimbra. Com a ida para o Benfica, transferi o curso para Lisboa, mas era inconciliável”, recordou Toni, ao Observador.

Era um bom momento para a Briosa. 

Duas temporadas depois, em 1969, como era previsto, a Académica entrou na Taça de Portugal na quarta fase, junto com os demais clubes da primeira divisão. Sem muitas dificuldades, eliminou o Farense, da terceirona, o Leões Santarém, do segundo escalão, e o Ferroviário Lourenço Marques, que disputava o Campeonato do Estado Ultramarino de Moçambique. Os confrontos começaram a ficar mais sérios nas quartas de finais.

O primeiro adversário da elite seria o Vitória de Guimarães. Depois de um triunfo minhoto na ida, 2 a 1, os conimbricenses golearam e avançaram às semis: 5 a 0. O adversário da vez era o tradicional Sporting. A Briosa não tomou conhecimento dos Leões, vencendo as duas partidas e somando um placar agregado de 3 a 1. Na disputa em Lisboa, a equipe acessou o gramado trajando um uniforme imaculadamente branco, mas com tarjas pretas nos braços, em sinal de luto. 

Reprodução: A Capital

A final era uma realidade e, a exemplo do que ocorrera três décadas antes, do outro lado da eliminatória estava o Benfica.

Protestos no Jamor


No dia 22 de junho, outrora artífice da Académica, Toni estava do lado contrário. O que não quer dizer que se opusesse ao que se viu. As autoridades sabiam que a partida poderia superar os limites habituais de um jogo de futebol, razão pela qual ponderou adiá-la, mudar a sede… No fim das contas, não havia o que fazer, senão permitir seu acontecimento — o que não evitou a ausência de todas as autoridades portuguesas, que normalmente não apenas compareciam como se promoviam às custas do esporte.

Depois do ocorrido na partida contra o Sporting, também foi determinado que a Académica não poderia exibir nenhum sinal claro de luto, proibição brilhantemente driblada. “Curiosamente”, um dos destaques da equipe, Artur Jorge, foram compelido a se ausentar, em decorrência de serviço militar obrigatório.

Reprodução: A Capital
“Combinamos entrar a passo, de capa acadêmica aberta e caída, que era um sinal de luto. Antes, em outras partidas, tínhamos protestado de outras formas, como entrar em campo com um inédito equipamento branco, com uma braçadeira negra, ou com adesivos no emblema, mas estas atitudes foram proibidas”, recordou Manuel António, antigo atacante, também ao Público.

Em uma das maiores mobilizações da história do futebol lusitano, os torcedores da Briosa, em larga porção ligados à Universidade de Coimbra, deslocaram-se à capital, saudando seus ídolos na tradicional Estação de Santa Apolônia. Já no estádio, folhetins foram distribuídos, esclarecendo do que se tratavam as últimas insurgências ocorridas na instituição de ensino. No intervalo da partida, o tom das palavras de ordem subiria e as bandeiras tremulariam mais ativamente. Contudo, o ambiente era hostil, com cerco da Guarda Nacional Republicana e a presença ostensiva de agentes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado — inclusive à paisana.

Foto: dr/Arte: O Futebólogo

“É a grande manifestação contra o regime. Pela primeira vez, a final não foi transmitida em directo pela televisão. Na altura, o Alberto Martins, atual ministro da Justiça [2009-11], era a bandeira da revolta. O estádio, completamente cheio, serviu de manifestação de oposição ao regime. Lembra-te que estamos em 1969, a cinco anos de abril de 1974”, lembrou Toni.

O jogo foi apenas pretexto para a reação estudantil. Ainda assim, parecia que a festa seria completa, quando Manuel António abriu o placar para a Académica, aproveitando um lançamento longo, matando a bola no peito e fuzilando a meta defendida por José Henrique, já nos minutos finais. Porém, António Simões empataria após rebote em cobrança de falta, e, no tempo extra, Eusébio marcaria de cabeça. Era o 2 a 1 do título das Águias.


O início do fim


O esforço e a coragem dos estudantes não seria vão. Os protestos continuariam até setembro, com Marcelo Caetano mostrando toda a sua afeição pela repressão, com prisões e a inclusão compulsória de 49 ativistas no exército. Contudo, aproximadamente seis meses após a final, o ministro da educação, José Hermano Saraiva, seria substituído por José Veiga Simão, um nome que agradava bem mais as lideranças estudantis. 

Sob a nova gestão, seriam fundadas várias universidades, entre as quais a Universidade Nova de Lisboa e a Universidade do Minho. A final da Taça de Portugal de 1968-69 se afigurava, efetivamente, como o início do fim do Estado Novo.

“O futebol é uma arma política [...] Se não houvesse futebol, esta visibilidade que ajudamos a criar não existia. É engraçado que desta final não se fala do jogo”, refletiu Mário Campos, titular da Académica na decisão e estudante de Medicina à época, por ocasião dos 50 anos da Universidade Nova de Lisboa.


Passariam-se quase cinco anos até a Revolução dos Cravos apunhalar fatalmente o Estado Novo. A narrativa é conhecida. Em 25 de abril de 1974, às 00h20, a Rádio Renascença tocou a canção Grândula Vila Morena, de Zeca Afonso, sob as ordens do locutor Leite de Vasconcelos, moçambicano. A música, proibida por supostamente aludir ao comunismo, era a senha para a retomada. Já no dia seguinte começaria o governo de transição.

Como lembra à RTP António Simões, esportivamente algoz da Académica, mas simpático à causa dos estudantes: “Parece que aquele jogo foi o primeiro passo para perceber que o regime estava a ficar podre. Foi um privilégio, através do futebol, uma coisa que nós amamos, ter a oportunidade de contribuir para que dali nascesse algo importante”. 

O dia 22 de junho de 1969 foi mais um desses em que futebol e política andaram de mãos dadas.
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[1]  Viuda-Serrano, A. (2014). Fútbol e Identidad Europea. El deporte como generador de Identidad Supranacional. AGON International Journal of Sports Sciences, 4(1), pp. 19–35.



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