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Hermenêutica: Síntese do Desenvolvimento Histórico

 


A hermenêutica bíblica é o método que se utiliza para a interpretação dos textos bíblicos. Ela preenche as lacunas entre os leitores atuais da Bíblia, seu público original (quem os leu pela primeira vez) e Deus como o autor final.

Todas as vezes que alguém lê um texto bíblico ou prepara uma pregação ou aula bíblica, ele consciente ou inconscientemente utiliza algum método hermenêutico, ou seja, interpreta para si mesmo ou para outros o que entende ser o sentido do texto.

Desta forma é possível afirmar que a hermenêutica é fundamental para o estudo correto das Escrituras. Portanto, fazer uso de uma hermenêutica correta faz toda diferença, pois um mesmo texto bíblico pode ser interpretado de múltiplas formas e oferecer conclusões completamente antagônicas. Sem métodos eficazes (e fiéis) de interpretação, ficamos reféns das imaginações férteis dos intérpretes. Um método correto e honesto de hermenêutica realmente importa e faz toda a diferença.  

Abaixo cito de forma muito (e coloca muito nisso) suscinto o desenvolvimento da hermenêutica ao longo da História Cristã.

Período Bíblico

Os próprios escritores bíblicos desenvolveram uma forma hermenêutica de interpretação dos registros e acontecimentos nos quais estavam envolvidos ou tomaram conhecimento. Em suas correspondências Paulo e Pedro fazem referências aos textos dos escritores veterotestamentários. Pedro se referiu a Isaías 40.7–8 em 1Pedro 1.24–25. Suas estratégias interpretativas têm impactado na hermenêutica futura na igreja.

"No Antigo Testamento, os últimos escritos, como os Salmos e os Profetas, reinterpretam a história de Israel apresentada na Torá, e o Novo Testamento continua a reinterpretar essa história contínua à luz da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo (uma abordagem que os estudiosos históricos redentores posteriores se apropriariam)" (PORTER, 2012).

Mesmo sem um consenso no que tange ao método utilizado por Jesus e posteriormente pelos escritores neotestamentários sobre qual tenha sido a metodologia deles, isto não é um mistério indecifrável, visto que eles estavam familiarizados com os métodos judaicos de interpretação de textos. O diferencial é que Jesus aplica o texto a si mesmo e os demais escritores aplicam em relação a ele.  Podemos citar a título de ilustração dois grandes exemplos em que o autor de Hebreus interpreta a pessoa e a obra de Cristo: Melquisedeque, rei-sacerdote de Salém (Gn 14.17ss.; Hebreus 7), e a obra do sacerdócio levítico como um todo (Hebreus 8-10).

Período da Patrística

Os chamados pais da igreja primitiva, líderes e pregadores subsequentes ao período apostólico, ainda que tenham formulado todo o arcabouço interpretativo teológico das Escrituras, que nortearam e impactaram sobre todos os períodos posteriores da igreja, não foram uniformes em sua hermenêutica. Duas escolas interpretativas dominaram a época.

A escola alexandrina era centrada em uma das cidades mais cultas do Império Romano, Alexandria, Egito, portanto, fortemente influenciada pela filosofia platônica que utilizava o método alegórico de interpretação. Construídos sobre uma visão de mundo que via o mundo físico como uma sombra do espiritual, os intérpretes alexandrinos viam a Bíblia apontando não para o sentido literal, mas para verdades espirituais (ou alegóricas) mais profundas.

Por sua vez, fazendo um contraponto, a escola de Antioquia focou sua abordagem na leitura literal do texto. A leitura espiritual do texto, acreditavam, deveria partir da leitura literal e nunca o contrário. A escola de Antioquia insistiu na realidade histórica da revelação bíblica. Eles não estavam dispostos a perdê-lo num mundo de símbolos e sombras. Se os alexandrinos utilizavam a perspectiva de Platão, os de Antioquia utilizava o arcabouço de Aristóteles. Ainda hoje estas duas escolas influencia os mais diversos intérpretes bíblicos.

Um pequeno exemplo da escola antioquiana é a de Teodoro de Mopsuéstia que faz uma distinção entre as profecias genuinamente messiânicas e aquelas que são inteiramente históricas. Também afirma que somente os Salmos 2, 8, 45 e 110 fazem de fato referências diretas ao Messias e podem ser aplicadas literalmente a Jesus Cristo. Ao menos dois manuais hermenêuticos foram produzidos dentro desta perspectiva -  “Instrução às Escrituras Divinas” de Adriano (425) onde ele conclui que há duas formas de textos nas Escrituras – profético e histórico – e cada um tem seu próprio propósito e para interpretá-los corretamente é preciso uma intepretação literal, e somente então procurar uma compreensão mais profunda e/ou espiritual.  

Período Medieval

Há pouco na interpretação medieval que seja surpreendentemente novo. No que se refere à hermenêutica, a Idade Média é um período de transição, onde as antigas tradições patrísticas foram preservadas e utilizadas. Muito utilizada inicialmente foi a forma de “Catena”,[1] onde uma cadeia de interpretações era reunida a partir dos comentários produzidos pelos Pais, onde um intérprete autorizado era seguido e extratos de outros intérpretes eram adicionados. O objetivo era preservar a tradição exegética. Um exemplo é Catena do evangelho Mateus onde Tomás de Aquino reúne textos patrísticos referentes ao Evangelho de Mateus ( 57 autores gregos e 22 latinos).

Um expoente deste período é Agostinho através de seu livro “Sobre o Ensino Cristão (ou Sobre a Doutrina Cristã)” cujo subtítulo era (Manual de exegese e formação cristã), publicado no final do século 4 e início do século 5 d.C. tornou-se o referencial hermenêutico para o período medieval. Suas regras interpretativas ainda são consideras apropriadas na hermenêutica bíblica no século 21. Por exemplo, ele escreveu que os alunos da Bíblia deveriam: “Interpretar textos obscuros à luz de textos claros; Aplicar o conhecimento secular à interpretação bíblica quando possível; Determinar os sentidos literal e figurativo da passagem”.

Período da Reforma

A hermenêutica tornou-se um eixo fundamental na exposição bíblica dos reformadores, alguns até entendem que a verdadeira reforma foi hermenêutica, mais do que eclesiástica ou social, como defende Bernard Ramm: “Embora os historiadores admitam que o Ocidente estava maduro para a Reforma devido a várias forças em ação na cultura europeia, houve, no entanto, uma Reforma hermenêutica que precedeu a Reforma eclesiástica” (1970, p. 51-52).

          A hermenêutica reformada era indutiva e orientada para a fé, uma vez que a razão não tem o monopólio na interpretação bíblica, que é a marca distintiva de todas as demais literaturas. Os reformadores não renunciaram ao “poder iluminador do Espírito Santo” em todo o processo interpretativo das Escrituras.

          Para os reformadores a Bíblia não era um dos pilares da fé cristã, mas o único fundamento que a mantinha em pé, pois a igreja não se constituía no arbítrio das Escrituras, mas as Escrituras se constituem no juiz da igreja. As palavras de Lutero, quando de sua defesa, são incisivas: “Nenhum cristão pode ser forçado a reconhecer qualquer outra autoridade além da sagrada escritura, que é exclusivamente investida de autoridade divina”. Suas palavras se constituem em uma das maiores rupturas dos sistemas teológicos anteriores. Vai muito além de combater indulgências, mas vai no cerne da questão – as Escrituras e somente as Escrituras tem autoridade, todas as demais são derivativas e qualquer que não estiver em plena conciliação com as Escrituras devem ser rejeitadas completamente.

          Após seu rompimento definitivo da Igreja Romana, ele deixa de fazer uso da alegorização para interpretação bíblica e passa a insistir na necessidade de se encontrar “um sentido simples e sólido” para interpretação e exposição da pregação. Para isso, há uma necessidade de uma compreensão histórica contextual do escritor bíblico, como desta no seu prefácio do comentário a Isaías, para se encontrar o sentido primário do texto.

          Mas esta interpretação histórica e gramatical não se constitui em um fim em si, mas um meio para a compreensão de Cristo que demarca todas as literaturas bíblicas, pois Cristo é o ponto central convergente de toda a Bíblia.  

          João Calvino, em sua Institutas da Religião Cristã, expõe sua tese de exegese, rejeitando o uso da alegorização na formulação doutrinaria dogmática, declarando que todo crente tem autoridade para interpretar as escrituras, quando estão em plena harmonia com sua origem divina, como se estivessem ouvindo palavras pronunciadas pelo próprio Deus. A Bíblia possui um padrão ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, pois nela e através dela o próprio Deus fala ao coração humano. A Bíblia se autentica.

Sinteticamente ao menos quatro princípios reformados se contrapunham à hermenêutica católica romana:

O foco das Escrituras estava em Cristo, não na igreja nem no homem.

O propósito final da Bíblia era a salvação, não o conhecimento.

A base para a doutrina e prática cristã era somente a Bíblia.

A autoridade para interpretar a Bíblia estava no indivíduo.[2]

Período Pós-Reforma

O racionalismo academicista foi se apossando da hermenêutica bíblica e como um Jack Estripador foi desmembrando-a por completo, no transcorrer dos séculos 17 e seguintes.

Em seu livro do início do século 18, Jean-Alphonse Turretin ilustrou algumas dessas abordagens racionalistas relacionados à exegese e interpretação bíblicas:[3]

Deve-se interpretar as Escrituras como qualquer outro livro.

Os intérpretes devem dar atenção às palavras e expressões da Bíblia.

O objetivo da exegese bíblica é compreender o propósito do autor no seu contexto.

O intérprete deve usar a razão para entender a Bíblia.

Os intérpretes bíblicos devem entender os autores originais do texto em seus próprios termos contextuais.

Período Moderno

A partir de 1800 até os dias atuais a chamada hermenêutica moderna, particularmente entre os diversos ramos protestantes, de forma genérica pode ser dividida entre uma proposta de uma hermenêutica conservadora (ou mesmo fundamentalista) e liberais.

Um exemplo desta fase é "Escola de Princeton" que nasce no Seminário Teológico de Princeton e, mais tarde, do Seminário Teológico de Westminster, um esforço em um retorno ao calvinismo e às raízes reformadoras do protestantismo. A base é fundamentada na filosofia escocesa do senso comum. Para eles a autoridade bíblica é decorrente do fato de que a indução empírica é a fonte primária da verdade pois as pessoas possuem absolutos morais. Desta forma o estudioso das Escrituras é semelhante um mineiro em busca constante de pepitas preciosas.

O fundamentalismo surge no início do século 20 trazendo em seu bojo uma abordagem literal e dispensacional para interpretar as Escrituras, onde a História humana é dividida em sete períodos (ou dispensações), desta forma toda interpretação bíblica fica subordinada aos respectivos períodos históricos.

A teologia liberal clássica vai surgir no final do século 19 e início do século 20 em um esforço, não amigável, de harmonizar (na verdade subordinar) a Bíblia com novos avanços científicos. Desta forma toda e quaisquer registros bíblicos sobrenaturais devem ser comprovados pelas ciências.

Ricardo Gouveia sintetiza bem esta forma de pensar:

“A razão deveria julgar o que é aceitável, ou não, que se creia sobre Deus, e substituindo a revelação e a tradição, tornou-se o novo árbitro da verdade. O homem se viu capaz de entender a ordem fundamental do universo, e os Princípios newtonianos simbolizaram essa nova era. As leis da natureza tornaram-se inteligíveis, e o homem se viu capaz de dominar e transformar o mundo. O ideal científico determinou que apenas os aspectos mensuráveis da vida e do cosmos deviam ser tratados como reais. Não apenas as ciências naturais, mas também a política, a ética, a metafísica e a teologia teriam que se submeter à rigidez dos cânones científicos.” (GOUVEIA; 1996, p.60-61).

Desta forma toda cosmovisão e interpretação bíblica é afetada e dá origem a uma nova reinterpretação das Escrituras, surgindo um novo paradigma hermenêutico de estudos teológicos: o Método Histórico-Crítico. As Escrituras não é mais considerada como Revelação-Inspiração divina, mas somente como um livro de origem humana, e que deveria ser examinado como qualquer outro, admitindo erros, falhas, imprecisões, inverdades, mentiras piedosas, pseudonímia e mitos nas páginas do AT e do NT.

Utilização livre desde que citando a fonte
Guedes, Ivan Pereira
Mestre em Ciências da Religião.
Outro Blog
http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

 

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As Primeiras Escolas de Interpretação - Escola de Alexandria

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Referências Bibliográficas

AGOSTINHO. A doutrina cristã – Manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002. (Coleção Patrística, n. 17).

FARRAR, Frederic. History of interpretation. New York: Dutton, 1886

FEE, Gordon D. & Douglas Stuart. Entendes o que lês? Traduzido por Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2002.

GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Arte moderna e a morte de uma cultura: quão

pós-moderno é o pós-modernismo? em Fides Reformata 1/2 (1996). MAackinnon J., Calvin and the Reformation. Longmans, Green and Co. New York, 1936.

PORTER, Stanley E. and STOVELL, Beth M. Biblical hermeneutics: five views: Biblical hermeneutics: five views. InterVarsity Press, 2012.

RAMM, Bernard. Protestant biblical interpretation – a textbook of hetics. Baker Book House. Grand Rapids, Michigan, 1970. [Third Revised Edition].

SIFOLELI, Israel. Manual de Hermenêutica bíblica. São Paulo, Fonte Editorial, 2016.

TURRETIN, Jean-Alphonse. De Sacrae Scripturae Interpretandae Methodo Tractatus.


[1] Uma catena (do latim catena, uma corrente) é uma forma de comentário bíblico, versículo por versículo, composta inteiramente de trechos de comentaristas bíblicos anteriores, cada um introduzido com o nome do autor, e com pequenos ajustes de palavras para permitir que o todo forme um comentário contínuo.

[2] Infelizmente os Evangélicos foram abandonando um a um destes princípios, substituindo por outros completamente nocivos à genuína interpretação bíblica e por consequência da própria essência da fé cristã.

[3] TURRETIN, Jean-Alphonse. De Sacrae Scripturae Interpretandae Methodo Tractatus.



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