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C. S. LEWIS – Por Que Lemos?


Cada um de nós, por natureza, vê todo o mundo a partir de um ponto de vista com uma perspectiva e uma seletividade peculiar a si Mesmo. E mesmo quando desenvolvemos fantasias desinteressadas, estas estão saturadas e limitadas pela nossa própria psicologia. Concordar nessa particularidade no nível sensorial — em outras palavras, não dar um desconto à perspectiva — seria loucura. Deveríamos então crer que a estrada de ferro se estreita à medida que a distância aumenta. Porém, queremos também fugir das ilusões de perspectiva em níveis mais elevados.

Não estamos contentes em sermos as mônadas de Leibniz [04].

Exigimos janelas. A literatura enquanto logos é uma série de janelas, ou

mesmo de portas. Uma das coisas que sentimos depois de ler uma grande obra é “eu saí”. Ou, a partir de outro ponto de vista, “eu entrei”, perfurei a concha de alguma outra mônada e descobri como é dentro dela. Por conseguinte, a boa leitura, ainda que em essência não seja uma atividade afetiva, moral ou intelectual, tem alguma coisa em comum com estas três possibilidades. No amor, nós escapamos do nosso próprio ser para entrar em outro. Na esfera moral, cada ato de justiça ou caridade envolve nos colocarmos no lugar da outra pessoa e, assim, transcender a nossa própria particularidade competitiva. Ao conseguirmos entender qualquer coisa, rejeitamos os fatos como são para nós e aceitamos os fatos como realmente são. O impulso primário de cada um é manter e engrandecer a si mesmo. O impulso secundário é sair do ser, corrigir seu provincianismo e curar sua solidão. Estamos fazendo isso no amor, na virtude, na busca pelo conhecimento e na recepção das artes. Obviamente esse processo pode ser descrito ou como um engrandecimento, ou como uma aniquilação temporária do ser. Mas isso é um antigo paradoxo: “quem perder a sua vida, salvá-la-á” [05].

Queremos ver com outros olhos, imaginar com

outras imaginações, sentir com outros corações, e

com os nossos próprios também.

Como consequência, nós temos satisfação em entrar nas crenças de outras pessoas (aquelas, digamos, de Lucrécio [06] ou de Lawrence [07]), ainda que pensemos que não são verdadeiras. E nas paixões deles, ainda que as julguemos depravadas, como, algumas vezes, as de Marlowe [08] ou Carlyle [09]. E também na imaginação deles, ainda que lhes falte completo realismo de conteúdo.

Isso não deve ser entendido como se eu estivesse mais uma vez fazendo da literatura de poder um departamento dentro da literatura de conhecimento — um departamento que existia para satisfazer nossa curiosidade racional a respeito da psicologia de outras pessoas. Isso é, não em absoluto, uma questão (naquele sentido) de conhecimento. É connaitre (“conhecer”), não savoir (“saber”); é erleben (“vivência”). Nós nos tornamos esses outros “eus”. Não apenas nem principalmente para ver como são, mas para ver o que eles veem; ocupar, por um momento, o assento deles no grande teatro, usar seus óculos e se livrar de quaisquer percepções, alegrias, terrores, maravilhas ou diversões que esses óculos revelem. Nessa altura é irrelevante se o estado de humor expresso em um poema era verdadeira e historicamente o estado de humor do próprio poeta ou um que ele também imaginou. O que importa é sua capacidade de nos fazer vivê-lo. Duvido se o Donne histórico deu mais que um refúgio brincalhão e dramático ao estado de humor expresso em A aparição. Duvido mais ainda se o Pope histórico, salvo enquanto escreveu, e mesmo assim mais que dramaticamente, sentiu o que expressou na passagem que começa com “Sim, estou orgulhoso” [10]. O que isso importa?

Tanto quanto consigo entender, esse é o valor ou benefício específico da literatura considerada como logos. Ela nos permite ter experiências que não são as nossas. Nem todas elas têm o mesmo valor, assim como as nossas próprias experiências também não têm. Algumas delas, conforme costumamos dizer, “interessam-nos” mais do que outras. As causas desse interesse são natural e extremamente variadas e diferem de uma pessoa para outra. Pode ser o típico (e aí dizemos “isso é verdade!”) ou o anormal (e aí dizemos “que estranho!”). Pode ser o belo, o terrível, o que causa espanto, o estimulante, o patético, o cômico ou o simplesmente picante. A literatura proporciona uma entrée para todas essas possibilidades. Aqueles dentre nós que têm sido verdadeiros leitores durante toda a vida raramente compreendem de maneira plena a enorme extensão do nosso ser da qual somos devedores aos escritores. Compreendemos isso mais quando conversamos com um amigo que é um leitor não literato. Pode ser uma pessoa cheia de bondade e bom senso, mas é alguém que vive em um mundo minúsculo. Nós nos sentiríamos sufocados nesse mundo. A pessoa que está contente em ser apenas ela mesma e, portanto, menos que um “eu”, está em uma prisão. Os meus olhos não são o bastante para mim. Eu vejo através dos olhos dos outros. A realidade, mesmo vista através dos olhos de muitos, não é o bastante. Eu verei o que outros inventaram. Mesmo os olhos de toda a humanidade não são suficientes. Lamento que os animais não possam escrever livros. Eu aprenderia com muita alegria qual é a imagem que as coisas têm para um rato ou para uma abelha. Mais alegre ainda

ficaria se percebesse o mundo olfativo carregado com todas as informações e emoções que este mundo tem para um cão.

A experiência literária cura a ferida da individualidade sem diminuir o seu privilégio. Há emoções de massa que curam a ferida, mas destroem o privilégio. Nossos seres isolados se fundem nelas, e afundamos em uma subindividualidade. Mas, ao ler a grande literatura, eu me torno mil homens e, mesmo assim, continuo a ser eu mesmo. Tal como o céu noturno no poema grego, eu vejo com uma miríade de olhos, mas ainda sou eu quem o vê. Na adoração, no amor, na ação moral e no conhecimento, eu transcendo a mim mesmo, e nunca sou mais eu mesmo do que quando faço isso.

Utilização livre desde que citando a fonte

Guedes, Ivan Pereira

Mestre em Ciências da Religião.

[email protected]

Outro Blog

http://historiologiaprotestante.blogspot.com.br/

Notas [cf. livro]

[04] Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), matemático e filósofo alemão. Formulou o conceito de mônada, que seria a essência irredutível do ser. Conforme Leibniz, a mônada está para a realidade metafísica assim como o átomo está para a realidade física. [N. T.]

[05] Referência a um dito de Jesus registrado em Mateus 16:25, Marcos 8:35 e Lucas 9:24. [N. T.] [06] Lucrécio (94? a. C.-55 a. C.), poeta e filósofo romano. [N. T.]

[07] D. H. Lawrence (1885-1930), poeta e romancista inglês. [N. T.]

[08] Christopher Marlowe (1564-1593), dramaturgo e poeta inglês, do período elizabetano. [N. T.

[09] Thomas Carlyle (1795-1881), historiador e escritor escocês da chamada Era Vitoriana. [N. T.] [10] Epílogo de Satires [Sátiras], dia, ii, 1. 208.

Referência Bibliográfica

LEWIS, C. S. Como cultivar uma vida de leitura. Tradução de Elissami Bauleo. 1.ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020.

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