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Posta-restante de Ossos


Solidão e silêncio. Transatlântico. Tripulação de angústias. Cura de obsessões. 
Cemitério: posta-restante de ossos – alguém para reclamá-los?

A Lua Cheia na superfície raiada do mármore compete com cintilações travertinas. 
Nas lápides, retratos em preto e branco assumem grandiloquência. Em pé sobre a mais tola das lajes, reconhecemos um italiano que atuou em La Dolce Vita e alguns eunucos de Sherazade. 
As aleias estendem-se sob as grandes asas de um anjo e adormecem.
O perfume das flores adensa-se sobre uma coroa de lótus.

Não deveríamos dar ouvidos, mas, sob uma lua assim, quando se nos acometem pensamentos na carne e nos ameaçam as articulações, sempre haverá um de nós a dizer:

“Hei de morrer em leito de brancos lençóis. Terei olheiras dignas e voz mansa, resignar-me-ei às palavras de um padre, sorrirei alentos para mulher e filhos. Se eu morrer assim, paciente e amável, quero ser sepultado em noite como esta, de brancura e luar. E chamem amigos de óculos escuros para dizer coisas boas de mim.
Mas se, ao contrário, minha morte se apresentar-se ávida e veloz, recolhida às pressas do baú de um velho sovina, castrando pecados que tenho por cometer, se for assim a minha morte, enterrem-me durante a tempestade, na noite sem lua e sem cor. Enterrem-me protegido pelo guarda-chuva de meus pais – porque eles virão. Enterrem-me anônimo como sempre fui”.

Duas crianças acompanhadas de perto pela mãe correm por entre os sepulcros.
A Menina, seguida pelo irmão, ajoelha-se sobre a laje, não por reverência, mas para ler o epitáfio. 
- Eu Sou Dos que não apo... apo...
- ...drecem - auxilia o irmão.
- Fui, por na... por na...
- ...tureza.
- Mais ho... homem...

Abreviemos a leitura: “Eu sou dos que não apodrecem. Fui, por natureza, mais homem do que fui carne. A carne que falta me faz, se homem continuarei a ser?” 

O irmão afasta-se para ler outro epitáfio, a menina assume posição propícia, ergue o sujo vestido e, solene, faz xixi. 
A mãe ajeita o vestido e o cabelo da menina, examina o nariz do menino, sorri para eles.
- Vamos pra casa, mamãe? – pergunta o menino.
- Sim, hora de dormir, querido.
Os três se aprumam e partem, Passos largos, ritmados, na obstinação de um pequeno exército.

Coturnos esfarrapados e gentis pisoteiam flores, cruzes e prantos ancestrais.
Nos primeiros passos, o ruído dos sapatos ecoa, perverte o silêncio. O coração é carrilhão antigo e resolve bater no ritmo que lhe convém. 
Mas em seguida, no psiu dos mortos, corações se calam e se aquietam os passos.

O silêncio volta à necrópole.
Sem som de passos para que a noite possa ser irreal e eterna.
Sem som de passos em respeito à realidade trajada de sonhos.
Sem som de passos sobre o descansar dos mortos.

E lá se vão as três criaturas noturnas. Bloco de querubins, ala de passistas invisíveis, ala atenta aos gestos mudos na plateia, ala testemunha do fogo fátuo que dança sobre as catacumbas.
E lá se vão as três criaturas noturnas no ritmo das coisas desconhecidas, espreitados pelo olho do não visível.

Alheios à pequena procissão, Arlequins celebram o folião solitário, exaltam aquele que há muito decidiu desfilar a própria alegoria.
Vivas! Aplausos! Odes àquele que rejeitou o óleo dos enfermos e compareceu ao encontro não marcado com a morte!
Loas ao que buscou a urna de seus restos bem antes da quarta-feira de cinzas!

O frágil exército dobra a esquina e segue o caminho de casa. A menina recolhe uma violeta ao acaso e a ajeita nos cabelos. O menino cumprimenta alguém em uma fotografia e sorri para a lua cheia.

Resta somente o curto percurso das velas, por entre despojos, preces e queixas, a última trilha das folhas secas.
Então, a um sinal acostumado da mãe, cessam passos e silêncio.
- Chegamos – ela anuncia.

Os meninos correm. A volta para casa. O reconhecimento. A serena segurança dos lares.
Sobre o pavimento, esticam um cobertor roto e ajoelham-se para um agradecimento.
Na prece compartilhada, pedem a todos os defuntos que não perturbem o sono dos vivos. 
Observados pela lua cheia, trocam beijos e boa-noite.
Depois, gratos e brandos, se deitam sob as asas de São Gabriel.



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