Get Even More Visitors To Your Blog, Upgrade To A Business Listing >>

Óscar

"Tanto ou mais que as pessoas, os lugares vivem e morrem. Com uma diferença: mesmo se já mortos, os lugares retêm a vida que os animou."

Fernando Namora




Lugares da infância onde 
sem palavras e sem memória 
alguém, talvez eu, brincou 
já lá não estão nem lá estou.

António Pina






"Óscar, ó Óscar" gritava a ti' Elisa da sua casinha térrea, mesmo em frente ao Chafariz da Memória. "Ó Óscar!! É preciso dar de comer á criação, homem de Deus!"

O Felgueiras, hábil barbeiro, perito em carecadas e cortes à tigela  que se tinha estabelecido em Belém há muitos anos, sorria encostado ao batente da barbearia vazia, enquanto soprava languidamente novelos de um fumo esbranquiçado, que se soltavam da beata gasta do cigarro que enrolara minutos antes. Era isto todos os dias. O Óscar desaparecia e a mulher dele gritava que lhe acudisse mais à criação.

Era um casal castiço. O ti'Óscar, careca, bonacheirão mas seco de carnes e a ti'Elisa, uma negra roliça e de peito farto que o obrigava a andar a nove com os muitos afazeres quotidianos da sua vida de reformados.

A minha tia Adelaide parava sempre junto à janela aberta para dois dedos de conversa e eu aproveitava para ir molhar o bico na bica do chafariz.

A casa do ti'Óscar e da ti'Elisa ficava encravada entre a porta da D. Maria Alpalhão, a senhoria,  senhora baixinha e sem idade aparente durante mais de 30 anos , dona da maior parte das casinhas da Memória  , a janela da D. Alda, esposa do Sr. Severo e mãe da Miss Belém da época e o Torrado, mercearias finas e taberna, ponto de encontro de fim de tarde de quase todos os homens das redondezas para o seu copito de três ou para a proverbial suecada.
 Todos os Sábados de manhã,  munida com um pequeno frasco e cinco tostões, ia eu até ao Torrado comprar brilhantina para o meu pai e trazia o troco em pevides.

Naturalmente que o ti'Óscar se perdia mais pelo Torrado do que em tricas com o mulherio, por isso não era de todo difícil de encontrar. Quem o queria ver bem, era ouvir-lhe as várias anedotas de um repertório que metia num chinelo muito humorista de standup. Era uma barrigada de riso - e eu ria, por contágio claro, porque com sete anos pouco ou nada entendia do conteúdo.

A ti'Elisa era a beijadora oficial de todos os bebés nascidos ali... para dar sorte, dizia ela sempre a sorrir, com uns pequenos óculos encarrapitados no nariz. Tinha sempre um afago e um rebuçado para mim.

Quase em frente ao Óscar da ti'Elisa, ficava a porta tripla do "pitrolino", de quem nunca soube o nome... "Sr. Pitrolino, a minha mãe quer um litro de lixívia "- dizia eu de braço esticado, a segurar uma garrafa vazia de Camilo Alves com uma cápsula de plástico...

Logo ao lado, ficavam as escadas de pedra da Vizinha Custódia, onde eu, a Susana, a Bandeira e a Luisinha da Menina Joaquina, brincávamos ás casinhas e às escolas, com papeis, carretos de madeira de carros de linhas vazios, trapinhos dos restos da costura, latas velhas, paus e pedrinhas. Tantas vezes já o sol se recolhera e nós lá, felizes e despreocupadas, porque a maldade ainda não se tinha tornado mesmo má, mesmo apesar de eu ser, como dizia o ti' Óscar, a "Filha do Veneno"... a Mãe foi e sempre será nos anais da Memória a miúda mais endiabrada que se conheceu, o terror de toda a rapaziada*...  enfim, um "autentico veneno"...






                                                        


* Leia-se RAPAZES.












This post first appeared on A Contar Vindo Do CÄ—u, please read the originial post: here

Share the post

Óscar

×

Subscribe to A Contar Vindo Do CÄ—u

Get updates delivered right to your inbox!

Thank you for your subscription

×