A proposta deste texto é destacar os pontos de convergência entre a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e o chamado Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC). De um lado, a Lei nº 12.305 de 2010¹, que estabelece a PNRS; de outro, a Lei nº 13.019/2014² – Lei das Parcerias, que integra o MROSC, novo marco político normativo que estabelece regras estruturantes para o regime de parcerias entre os poderes públicos e as OSCs no Brasil.
A PNRS é uma medida afirmativa. Estabelece os princípios e diretrizes gerais no manejo dos resíduos sólidos no Brasil³. Além disso, enfrenta a discriminação estrutural sofrida pelos/as catadores/as de materiais recicláveis em todo o País. Tem, como um dos seus princípios, o reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania (art. 6º, VIII).
Dentre os instrumentos previstos na Lei 12.305/10 para implementação da PNRS⁴ estão a coleta seletiva e os sistemas de logística reversa relacionadas à implementação da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos. Um dos objetivos da PNRS é “a integração dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos” (art. 7º)⁵.
A lei traz a exigência legal para a criação e o desenvolvimento de Cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis (art. 8º, III e IV). Além disso, o poder público poderá instituir medidas indutoras e linhas de financiamento para atender, prioritariamente, às iniciativas de implantação de infraestrutura física e aquisição de equipamentos para tais entidades (art. 42, III). O poder Público poderá ainda instituir normas com o objetivo de conceder incentivos fiscais, financeiros ou creditícios a projetos relacionados à responsabilidade pelo ciclo de vida dos produtos, prioritariamente em parceria com as OSCs (art. 44, II).
Exige-se ainda a elaboração de um Plano Nacional de Resíduos Sólidos, “mediante processo de mobilização e participação social” (art. 15, parágrafo único). Os planos devem conter a descrição de programas e ações para a participação dos grupos interessados, em especial das cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda (art. 19, IX).
Há inclusive um estímulo aos municípios, que contarão com prioridade no acesso a recursos da União destinados a empreendimentos e serviços relacionados à limpeza urbana e ao manejo de resíduos sólidos. Para tanto, devem implantar a coleta seletiva “com a participação de cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda” (art. 18, § 1º).
Para atender as exigências legais, a Administração Pública poderá estabelecer parcerias ou realizar a contratação das associações e cooperativas de catadores/as de materiais recicláveis. Parcerias e contratos não são iguais.
Segundo ensina Hely Lopes Meirelles, em seu livro clássico, há distinções entre contrato e parceria (parceria como espécie dos genéricos convênios). No contrato há sempre duas partes (podendo ter mais de dois signatários) uma que pretende o objeto do ajuste (a obra, o serviço, etc.), outra que pretende a contraprestação correspondente (o preço ou qualquer outra vantagem). Por sua vez, no convênio/parceria, não há partes, mas partícipes que têm as mesmas pretensões, a consecução de um objetivo comum, desejado por todos; aqui a posição jurídica dos signatários é uma só, idêntica, podendo haver apenas diversificação na cooperação de cada um, segundo suas possibilidades⁶.
Contratação
A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021⁷) possibilita que as cooperativas e associações participem de licitações e firmem contratos com a Administração Pública. Neste caso, as entidades irão prestar serviços a Administração Pública, mediante pagamento financeiro, da mesma forma que as empresas com fins lucrativos.
De acordo com a Lei nº 14.133/2021, é dispensável a licitação para contratação que tenha por objeto:
“Coleta, processamento e comercialização de resíduos sólidos urbanos recicláveis ou reutilizáveis, em áreas com sistema de coleta seletiva de lixo, realizados por associações ou cooperativas formadas exclusivamente de pessoas físicas de baixa renda reconhecidas pelo poder público como catadores de materiais recicláveis, com o uso de equipamentos compatíveis com as normas técnicas, ambientais e de saúde pública” (art. 75, IV, j).
Aqui um parêntese: a norma também dispensa de licitação a contratação de associações de pessoas com deficiência, sem fins lucrativos⁸.
Na relação de prestação de serviços há emissão de Nota Fiscal pelo prestador, no caso, a cooperativa ou associação. Daí que as entidades precisam estar atentas para a cobrança do Imposto Sobre Serviços (ISS), de competência municipal: sempre se recomenda verificar os meios para solicitar o reconhecimento da isenção/imunidade⁹ deste tributo junto à municipalidade.
Parcerias
A Lei 13.019/2014 e sua regulamentação, que compõem o chamado MROSC, é um marco político e jurídico importante, que inaugura um momento estrutural na relação entre os poderes públicos e as OSCs no Brasil. Estabelece com clareza as regras e procedimentos do regime de parcerias, tais como: exigência de chamamento público obrigatório; documentação a ser apresentada pela OSC; exigência de ficha limpa, tanto para as organizações quanto para os seus dirigentes; regulamentação da atuação em rede para a execução de iniciativas agregadoras; melhor regulamentação quanto as despesas com as equipes contratadas para execução dos projetos, bem como as despesas administrativas derivadas; obrigatoriedade de relatório de acompanhamento e avaliação, com possibilidades de visitas in loco; e, prazos e regras para entrega e análise das prestações de contas.
As cooperativas e associações de Catadores/as de materiais recicláveis possuem natureza jurídica que as enquadra como OSCs, na definição do art. 2º da Lei nº 13.019/2014. Neste caso, tais entidades podem estabelecer parcerias com os poderes públicos para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho.
Os procedimentos para formalização e execução dos ajustes são estabelecidos no regime do MROSC¹⁰, mediante formalização do termos de parceria: Termos de Fomento e Termos de Colaboração, quando envolvem a transferência de recursos públicos; ou Acordos de Cooperação, quando não há aporte de recursos, em situações como a cessão de espaços ou galpões com estruturas dignas de trabalho, cessão de equipamentos, automóveis, etc.
Em resumo, a Política Nacional de Resíduos Sólidos ressalta a importância e estabelece a prioridade na parceria dos poderes públicos com as cooperativas e associações de catadores/as de materiais recicláveis. Por sua vez, o MROSC é quem traz os procedimentos e regras para a formalização e execução de tais parcerias.
Concluindo
A administração pública pode celebrar contratos ou parcerias com as cooperativas e associações de catadores/as de materiais recicláveis para que se realize a coleta seletiva nas cidades. Fazendo a opção por apenas uma delas, contratação ou parceria, ou exercendo ambas as modalidades, a Administração Pública deve assegurar o máximo de proteção ao trabalho e à dignidade humana das catadoras e catadores de materiais recicláveis e suas organizações, respeitando as normas nacionais e internacionais.
Acrescente-se ainda que os/as catadores/as de materiais recicláveis e suas organizações encontram-se amparados/as pelo Princípio do Protetor Recebedor (PNRS). Sendo assim, se pela Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.938/1981¹¹) o Poluidor Pagador paga pelo que polui, de outro lado, na Política Nacional de Resíduos Sólidos o protetor recebe pelo que protege. E protegendo o meio ambiente estão os/as catadores/as do Brasil e suas organizações mesmo antes de todas essas legislações.
É importante reconhecer a relevância pública e social do trabalho desenvolvido pelas organizações de catadores/as nas pequenas e grandes cidades do Brasil. Trabalho de modo precário, que se dá sem remuneração ou com remunerações muito aquém da sua importância. Existe uma dívida histórica do estado e da sociedade brasileiras para com esses/as trabalhadores/as que evitam, cotidianamente, que milhares de toneladas de resíduos vão parar nos rios e mares. Sem esse trabalho, os cenários de desastres ambientais e sociais poderiam ser muito maiores.
Atualizando o Tema: Abril de 2022 – Planares
No mês de abril de 2022, o Governo Federal instituiu o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), através do Decreto Federal nº 11.043, de 13/04/22¹². O documento tem validade em todo território nacional¹³ e indica o encerramento de todos os lixões no País até 2024.
O Plano apresenta dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS-RS): em 2018, 94,12% dos municípios com mais de 1 milhão de habitantes declararam a ocorrência do serviço de coleta seletiva de resíduos sólidos domiciliares, que inclui a participação de associações ou cooperativas de catadores/as; por sua vez, dentre os municípios com menos de 30 mil habitantes, apenas 31,5% declararam possuir iniciativas nesse sentido.
Dentre os objetivos da PNRS está a integração dos catadores nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos (art. 7º, inciso XII). Os planos municipais de gestão integrada de resíduos sólidos devem conter programas e ações para a participação dos grupos interessados, em especial, das cooperativas ou outras formas de associação de catadores/as de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda (art. 19, inciso XI).
Dados do SNIS-RS do ano-base 2018, apontam que o pagamento pelos serviços prestados na coleta seletiva para organizações de catadores/as é uma realidade ainda incipiente no Brasil. A quantidade de municípios que pagam por tais serviços se concentra no Sudeste (79) e Sul (62), tem-se ainda na região Norte (3), Centro-Oeste (11) e Nordeste (14). Cita ainda como exemplo o Estado de Minas Gerais, que por meio do programa Bolsa Reciclagem realiza a concessão de incentivo financeiro a associações e cooperativas de catadores/as.
De acordo com o SNIS-RS, as organizações de catadores, em parceria com órgãos governamentais, são responsáveis por cerca de 30% da massa de resíduos coletada seletivamente no Brasil.
Em 2017, o número de catadores vinculados a entidades associativas somava quase 29 mil trabalhadores, distribuídos em 1.152 organizações. A região Sudeste contava com o maior quantitativo de municípios que declararam a existência de organizações de catadores/as em seus territórios (376), seguida da região Sul (262). A região Norte possui o menor número de municípios (31). Por outro lado, há aqueles que trabalham de forma dispersa nos municípios, em 2017, dos 3.556 municípios que declararam tal informação, 2.442 afirmaram existirem catadores de materiais recicláveis atuando de forma dispersa, embora o SNIS-RS não traga informações relativas ao número exato de catadores que atuam independente das entidades.
Para o Plano, a relação dos sistemas de logística reversa com as cooperativas e associações de catadores/as tende a se profissionalizar, transformando as unidades operadas por catadores em centros relevantes na coleta e recebimento de resíduos pós-consumo relacionados aos sistemas.
O plano traz como Meta nº 5 – Promover a inclusão social e emancipação econômica de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis. O Indicador global 5 é o percentual dos municípios com presença de catadores com contrato formalizado de prestação de serviços de manejo de materiais recicláveis por cooperativas e associações de catadores/as. Foi projetada a meta de 95% de formalização de contratos com cooperativas e associações de catadores, para os municípios que utilizam esse serviço, até 2040.
Dentre as suas diretrizes, o item 4.3.3. trata da “Promoção da inclusão social, emancipação econômica e geração de renda”, e traz duas diretrizes:
– Diretriz 3A – Qualificar, fortalecer e formalizar a prestação de serviços por associações e cooperativas de catadores. Tem como Estratégias:
Estratégia 25: Incentivar os municípios a manterem cadastro atualizado no SNIS de catadores de materiais recicláveis organizados em cooperativas e associações;
Estratégia 26: Realizar ações voltadas à emancipação econômica e geração de renda para catadores;
Estratégia 27: Incentivar a capacitação para a formalização de associações e cooperativas de catadores com vistas à sua emancipação econômica;
Estratégia 28: Estimular a articulação em rede das cooperativas e associações de catadores;
Estratégia 29: Incentivar modelos de contratação de cooperativas e associações de catadores de materiais recicláveis;
Estratégia 30: Desenvolver, em parceria com organizações dedicadas ao empreendedorismo, competitividade e desenvolvimento econômico, ações de capacitação em gestão de negócios, com o objetivo de incentivar a formalização, profissionalizar e melhorar a gestão das associações e cooperativas de catadores.
– Diretriz 3B – Aumentar a participação de cooperativas e associações de catadores no manejo de resíduos sólidos urbanos. Tem como Estratégias:
Estratégia 31: Incentivar a formalização de cooperativas e associações de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis;
Estratégia 32: Fomentar a realização de projetos, instalação e operação de unidades de triagem com participação de associações e cooperativas de catadores;
Estratégia 33: Incentivar a celebração de contrato entre as associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis e os municípios e indústrias de reciclagem.
Já no item 4.10, que trata das “Diretrizes e estratégias para gestão de resíduos agrossilvopastoris” (RASP), a Diretriz 1B – Aumentar a reciclagem e valorização dos RASP, tem como uma de suas estratégias: capacitar extensionistas rurais, associações e cooperativas de agricultores para implantação de unidades de compostagem e unidades de digestão anaeróbia de resíduos orgânicos (Estratégia nº 6).
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Maria do Rosário de Oliveira Carneiro – Advogada Popular integrante da Rede Nacional de Advogadas/os Populares (RENAP) e Mestra em Direito (Novos Direitos, Novos Sujeitos)
Lucas Seara – Advogado e consultor, Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (Escola de Administração/UFBA), membro da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/BA, Diretor do OSC LEGAL Instituto
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1. Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010 – Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências.
2. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014 – Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999.
3. Sobre o tema, recomenda-se a leitura do texto Orientação Jurídica às Associações e Cooperativas de Catadores(as) de Materiais Recicláveis Acerca do Dever Legal do Executivo Municipal Inseri-los na Política Municipal de Resíduos Sólidos a Partir da Lei 13.019 de 2014, disponível em: http://mariadorosariocarneiro.blogspot.com/2017/08/orientacao-juridica-as-associacoes-e_9.html
4. Relevante destacar que a Política de Coleta Seletiva também encontra respaldo legal na Lei de Diretrizes Nacionais de Saneamento Básico (LDNSB, Lei nº 11.445/2007). O artigo 7º dessa lei federal define a coleta e a triagem para fins de reuso ou reciclagem como serviços públicos. Com isso, não implantar a política de coleta seletiva (assegurando a continuidade e a remuneração justa e digna das organizações de catadores) é uma omissão administrativa que demanda responsabilização.
5. Considera o trabalho dos/as catadores/as com a reciclagem uma real possibilidade de efetivar o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil que é a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (CF/88, art. 3º, III).
6. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros,
7. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 – Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
8. A Lei nº 14.133/2021, art. 75, XIV, dispensa licitação também para contratação de associação de pessoas com deficiência, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgão ou entidade da Administração Pública, para a prestação de serviços, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado e os serviços contratados sejam prestados exclusivamente por pessoas com deficiência.
9. Sobre o tema, sugere-se o texto Tributação das OSCs, imunidades e isenções: que bicho é esse?, do OSC Legal Instituto, disponível em www.osclegal.org.br
10. Aqui não se aplica o regime licitatório da Lei nº 14.133/2021, muito menos da antiga Lei nº 8.666/1999, conforme entendimento estabelecido no artigo Nova lei de licitações não se aplica a parcerias com organizações da sociedade civil, de LOPES, Laís de Figueirêdo; CALIXTO, Clarice; CARRIJO, Cesar Dutra. Disponível em: https://sbsa.com.br/nova-lei-de-licitacoes-nao-se-aplica-a-parcerias-com-organizacoes-da-sociedade-civil/
11. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 – Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências.
12. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-11.043-de-13-de-abril-de-2022-393566799
13. Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/noticias/governo-federal-acaba-com-a-espera-de-mais-de-10-anos-e-publica-decreto-do-plano-nacional-de-residuos-solidos