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"Os Irmãos Karamazov" - Fiódor Dostoiévski

“Eu sempre gostei de becos, de recantos desertos e escuros, atrás da praça – lá estão as aventuras, as surpresas, lá estão as pepitas no lodo.” - Mítia Karamázov em conversa com o irmão, Aliócha (Pág. 164)

Terminei ontem a leitura da "Os Irmãos Karamazov", de Fiódor Dostoiévski. Confesso que assimilar as 1000 páginas do romance (999 para ser exato) exigiu um mergulho profundo e apaixonado, uma imersão voluntária na alma russa do século 19, cujas histórias individuais são tão atuais, tão presentes em nosso cotidiano. Cobiça e desapego, ciúme e compaixão, ódio e amor, alegria e tristeza, fé e descrença, liberdade e escravidão. Não somos feitos disso tudo ainda hoje? Não somos todos almas karamazovianas?
Esperei bastante antes de me debruçar sobre a obra que, para muitos, está entre os mais importantes clássicos da literatura universal. Aguardei a aclamada tradução da Editora 34, feita por Paulo Bezerra diretamente do russo. As traduções anteriores, baseadas no francês, eram incompletas. A tradução de Bezerra baseia-se em uma edição crítica da obra de Dostoievski realizada por um time de filólogos russos nos anos 70 – buscava-se, então, corrigir os cortes realizados pelas censuras czarista e stalinista. É, de acordo com o posfácio do tradutor, "a única efetivamente integral em língua portuguesa".

Bezerra também buscou respeitar o estilo "às vezes meio tosco" do original. Dostoievski não era propriamente um cultor da palavra exata. "A coisa mais feia deste mundo é a realidade. Se um escritor deseja retratá-la com justiça, é preciso dominar uma forma literária que a copie - não é permitido dispensar a feiura”, disse certa vez. Seu estilo era duro, porque ele via cruamente a aspereza do universo à sua volta.
No entanto, poucos o superam na criação de personagens que vivem no extremo da condição humana – humilhados, atormentados, torturados pela própria personalidade mesquinha.

É o caso da família Karamázov. O pai, Fiódor, bêbado e bufão, conseguiu acumular alguma fortuna graças ao matrimônio com mulheres de melhor extração social. Teve três filhos: Dmitri (ou Mítia), Ivan e Alieksiêi (ou Aliócha. Negligente, abandonou-os à própria sorte para serem educados por criados.
Violento e lascivo, Dmitri saiu ao pai – e disputa com ele os favores de Grúchenka, jovem mulher de má fama. Aliócha é um místico. Vive em um mosteiro ortodoxo, onde segue as orientações do caridoso monge Zossima. Ivan é o mais filosófico e especulativo, um livre-pensador que parece ironizar todos os sistemas religiosos ou filosóficos: flerta com o ateísmo, mas discute teologia de igual para igual com Aliócha.

“Sabei que não há nada mais elevado, nem mais forte, nem mais saudável, nem doravante mais útil para a vida que uma boa lembrança, sobretudo aquela trazida ainda na infância, da casa paterna. Muitos vos falam de vossa educação, mas uma lembrança maravilhosa, sagrada, conservada desde a infância, pode ser a melhor educação. Se o homem traz consigo muitas destas lembranças para sua vida, está salvo pelo resto da existência.” - Aliócha palestrando para as crianças (Pág. 996)

É Ivan é a figura mais marcante da obra, apesar da miríade de personagens repletos de verdade e força. O capítulo mais conhecido e celebrado do romance, "O grande inquisidor", deve-se a ele. Trata-se de um poema (ou, antes, do enredo de um poema que ele deseja escrever, já que não está em versos), no qual Jesus retorna à Terra, em Sevilha, no século XVI, e acaba preso pela Inquisição espanhola.
“E o homem realmente inventou Deus. E os estranho, o surpreendente não seria o fato de Deus realmente existir; o que, porém, surpreende é que essa ideia – a ideia da necessidade de Deus – possa ter subido à cabeça de um animal tão selvagem e perverso como o homem...” - Ivan Karamázov (Pág. 323)

Quando Fiódor, o patriarca dos Karamázov, é assassinado e Dmitri surge como o principal suspeito, questões morais ganham uma premência incontornável, que muito atormentarão Ivan, seus irmãos e a todos que nos cercam. É em torno desta disputa que a trama se desenvolve, uma tempestade de virtudes e falhas de caráter, um vendaval de humanidade no que ela tem de mais sublime e torpe.
“De fato, às vezes se fala da crueldade ‘bestial’ do homem, mas isso é terrivelmente injusto e ofensivo para com os animais: a fera nunca pode ser tão cruel como o homem, tão artisticamente, tão esteticamente cruel. / Acho que se o diabo não existe e, portanto, o homem o criou então o criou à sua imagem e semelhança.” - Ivan Karamázov (Pág. 329 e 330)

Ler “Os irmãos Karamázov” foi, também, um exercício de sensibilidade. A cada página me lembrava de um querido amigo que nos deixou há algumas semanas, Luiz Capssa Lima, o Cacho, apaixonado por literatura, especialmente a literatura russa, que tanto me incentivou a experimentar a tradução de Paulo Bezerra.
Pensei muito no amigo, especialmente nas últimas páginas e nos trechos finais em que Aliócha conversa com as crianças no sepultamento de Iliúchetchka.

“E ainda que venhamos a nos dedicar aos mais importantes assuntos, a conquistar honrarias, ou a cair na maior desgraça – apesar de tudo nunca esqueçais como certa vez nos sentimos bem aqui, todos comungando, unidos por aquele sentimento tão bom e bonito, que durante aquele momento de nosso amor pelo infeliz menino nos fez, talvez, melhores do que em realidade somos.” - (Pág. 996)


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