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A REFORMA DA SEGURANÇA PÚBLICA

Por Gerhard Erich Boehme

Infelizmente a sociedade não sabe qual é o papel de cada uma das polícias existentes no Brasil, até mesmo porque existem sobreposições que seriam inaceitáveis em países organizados.

Aproveito para alertar sobre as distorções existentes neste setor, que são as principais causas do baixo desempenho policial ou melhor da gestão da segurança pública. Esperamos que com a reforma do Judiciário estas venham a ser corrigidas. Neste “momento”, em que se discute a Reforma do Judiciário, infelizmente vejo que será mais uma “reforma” que não atingirá aos interesses da sociedade.

A dicussão sobre a Reforma apenas está abordando a questão do controle ou não sobre o judiciário, o que é importante (veja o Artigo do Professor Miguel Reale Jr. Apresentado a Época desta semana: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT670321-1666-2,00.html), mas deve contemplar toda uma reestruturação do judiciário, incluindo a questão da Polícia Judiciaria, onde no Brasil temos uma das maiores distorções. Ela é provincial e política, quando deveria ser nacional e jurídica.

Não podemos perder o foco: a questão fundamental do judiciário é levar a justiça ao cidadão e a sociedade.

Solicito que seja aprofundada a discussão sobre este assunto, haja vista que a criminalidade vem crescendo no Brasil e também no mundo, com a exceção de uns poucos países. Aumenta, conseqüentemente, a preocupação com essa patologia social. Procuraremos analisar, a seguir, algumas sugestões inadequadas para a solução do problema e diferentes tentativas de organizações destinadas a preservar ambientes de segurança, paz e ordem.

Locke já nos alertava sobre a importância da segurança como responsabilidade pública, principal função do Estado na teoria democrática do estado. Um cidadão vitimado por um marginal não está interessado nos bons hospitais e escolas públicas ou na eficiência da previdência social pública, e menos ainda no prestígio e na segurança conferidos ao país pelas Forças Armadas. Primeiro ele quer sua vida e sua integridade física e patrimonial protegidas, e depois a execução de outras funções públicas.

Piora nas cidades do mundo a segurança, embora se constate reversão parcial em algumas cidades americanas. Na Argentina, a criminalidade chegou a crescer 300% em Buenos Aires nos últimos anos; aumentou até na Europa tradicional, local de paz pública, onde há algumas décadas a polícia britânica andava desarmada. A grande violência no século XX foi a política, praticada nas guerras mundiais e nos genocídios estatais. Quando não havia guerra o cidadão desfrutava de uma tranqüilidade desconhecida até então na história.

O aumento da criminalidade em nossa época seria uma ilusão de ótica, gerada pela multiplicação de normas, ou seja, pela nossa exigência maior de tranqüilidade e pelas características perversas da sociedade em que vivemos. A nossa literatura acadêmica ainda repete isso. Mas já em 1985 Ralph Dahrendorf, em seu profético livro A Lei e a Ordem (traduzido e publicado pelo ILRJ em 1997), nos indicava estarmos no caminho da anomia, ao apontar (1) a impunidade geral caracterizada pelo crescente número de delitos sem a reação das autoridades. Ou, o que é mais grave, (2) o fato de que a maioria dos pequenos delitos e alguns dos grandes são praticados por jovens que não são punidos.

Depois, (3) apontava as áreas de exclusão que, apesar de negadas pela polícia, sabemos existir em todas as grandes cidades. Em conseqüência, aumentaram os sistemas privados de vigilância e polícia no primeiro mundo. Outro indicador (4) da impunidade e da anomia é a impossibilidade de se aplicar a lei; cada dia mais grupos depredam, invadem propriedades, prendem pessoas e autoridades em cárcere privado e “desafiam o processo de imposição de sanções, que se dirige a indivíduos e pequenos grupos identificáveis”(Dahrendorf, op. cit., p.35). Os dados preocupantes de Dahrendorf são reforçados pelo sociólogo Zygmunt Bauman, em Globalização – As Conseqüências Humanas (Zahar, Rio de Janeiro, 1999): dois por cento da população americana e da russa estão na prisão, em seus respectivos países; até em países pacatos, ricos e reticentes na imposição de penas de prisão, como a Noruega, a proporção de prisioneiros subiu de menos de 40 (nos anos 60) por 100.000 habitantes para 64 agora (em 97, quando escrevíamos o livro). Na Holanda e na Inglaterra precisa-se de uma nova prisão a cada semana (Bauman, op. cit., p.123).

Outra conseqüência são os contínuos motins e rebeliões em presídios em todo o mundo e a impunidade dos crimes ali praticados. Bauman extrai a conclusão de que como o problema é geral, não é causado por políticas públicas particulares a um país. Mas é óbvio que a solução deverá, como em Nova Iorque, basear-se em políticas públicas locais.

Conceito de Segurança Pública

A noção de segurança pública refere-se àquela que é proporcionada principalmente, ainda que não de modo exclusivo, pelo Estado, para seus cidadãos e residentes, visando à garantia e ao desfrute dos respectivos direitos básicos à vida, à integridade física, à liberdade, à propriedade pessoal e à inviolabilidade de seu domicílio. Nossa Constituição diz com elegância e imprecisão: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (art.144).

A ordem pública e os demais direitos garantidos pelo Estado democrático o são pela lei e outros corpos e apenas indiretamente pela ação das polícias executoras da segurança pública, que surgem elencadas nos incisos do artigo: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares. A segurança pública refere-se a indivíduos, incumbindo sua obrigação a todos, em princípio, e passando, em seguida, sua obrigação ao Estado.

Os Três Tipos de Corporações Incumbidas de Manter a Segurança

Desde o início do Estado constitucional democrático seus teóricos, como Benjamin Constant, em sua obra Princípios de Política (1815), reconheciam que a organização da força armada num estado democrático devia distinguir três tipos: a força armada destinada a proteger o país da invasão estrangeira (exércitos e marinhas profissionais, hierarquizados e disciplinados sob comando único). Nas repúblicas européias criou-se um corpo de elite, uma Guarda Nacional Republicana, para proteção do governo e controle sobre a força armada comum.

A Guarda Nacional

Há ainda um outro tipo de força armada, dispersa, não concentrada pelo território, para não deixar nenhum ponto livre aos criminosos. Seu objetivo, diz Constant, é reprimir os delitos privados cometidos dentro do país, não no exterior. Dirige-se não contra Estados ou organizações armadas estrangeiras, mas contra indivíduos e organizações privadas com propósitos criminosos nos termos da lei e da moral vigente numa região. Constant observa: “A força destinada a reprimir esses delitos deve ser absolutamente diferente do exército de linha” (Oeuvres, Gallimard, p.1164, Paris, 1957). O motivo principal que ele nos dá é interessante: todo cidadão deve assistência ao magistrado na imposição da lei, mas essa obrigação tem o inconveniente de impor ao cidadão deveres odiosos e perigosos. E em nossas cidades populosas, diz, a cada dia cem cidadãos seriam presos por se recusar a prender um só. É necessário que homens assalariados (e treinados) se encarreguem dessas tristes funções.

O ethos e o tipo de trabalho da polícia (denominação usual para esse segundo corpo armado) são diversos do primeiro. Seu tipo de remuneração, seu armamento, sua característica de atuar isoladamente ou em pequenos grupos e o tipo de disciplina exigente, mas menos formal e rígida, requerem um adestramento contínuo e uma capacidade de iniciativa diversa e superior à do soldado. Esse tipo de treinamento é encontrável em algumas unidades de elite, como os Rangers, os Comandos e outras similares, o que as habilita a exercer funções policiais por tempo limitado em áreas especiais, ao contrário do soldado e do marinheiro comuns. Benjamin Constant aponta com propriedade a necessidade de um terceiro corpo armado: aquele destinado a reprimir perturbações e sedições, mantendo a ordem pública em exatos termos. Por se tratar de uma função já política, ele a reserva para a Guarda Nacional, a milícia cidadã, exclusiva dos cidadãos (e de proprietários, à época, pela obrigação da compra do equipamento). O uso do exército nacional para esse propósito coloca dificuldades políticas por sua estrita submissão regulamentar ao governo; numa sedição o governo é antes parte que árbitro. Por isso o recurso à Guarda Nacional, conjunto de todos os cidadãos ativos.

Problemas técnicos relativos à evolução da tecnologia militar, seu custo crescente e a necessidade de um treinamento maior levaram à obsolescência da instituição Guarda Nacional, e o que subsiste hoje com esse nome ou são partes do exército (como nos Estados Unidos) ou tipos de polícias (como no Panamá). De fato, a manutenção da ordem contra motins, sedições e perturbações envolvendo um grande número de pessoas exige um tipo de profissional mais armado do que o policial comum, sem armas pesadas mas já com treinamento militar, aquartelado e concentrado em locais estratégicos no interior do território e das grandes cidades. Daí a existência em alguns países de gendarmerias nacionais, como a Guarda Civil espanhola, o CNRS francês, os carabineiros no Chile e na Itália e as já mencionadas Guardas Nacionais Republicanas. Nossa polícia militar estadual, por sua estrutura e subordinação ao governador, está destinada a essas funções, mas cumpre também a de polícia civil preventiva, para a qual sua estrutura, seu treinamento e seu equipamento não a credenciam.

A Polícia Judiciária

A função policial de repressão ao crime e proteção da vida e da propriedade do cidadão também se divide, no ensino e na prática dos países democráticos, em dois tipos: primeiro a Polícia Judiciária, ou seja, a organização destinada à investigação criminal e à execução dos mandatos judiciais de busca e captura de indivíduos e apreensões (em São Paulo a organização destinada ao exame dos locais de crime, a Polícia Técnico-científica, é desvinculada da Polícia Civil, em outros Estados ela é parte integrante da Polícia Civil). Esse policial investigativo presta um serviço exclusivo à justiça e, por isso, nos países europeus está diretamente subordinado, através do juiz de instrução, ao poder judiciário. Noutros países, como nos Estados Unidos, está subordinado ao promotor.

No Brasil, por uma deformação da história republicana, a polícia saiu do Ministério da Justiça, onde estava durante o Império, e passou para os estados e, nestes, ao governador, deixando de ser nacional e jurídica para ser provincial e política.

O ministério público, desvinculado da polícia e até há pouco subordinado politicamente ao executivo, contribuía para esse quadro de desorganização e impunidade, de que é resquício a necessidade de se reproduzir na justiça o inquérito policial, tempos depois da infração, por não ter o delegado de policia autoridade judiciária, com grave dano à repressão ao crime pela aberta possibilidade de coação às testemunhas e pelo efeito corrosivo do tempo sobre as provas e sua memória. A polícia judiciária, apoiada em vasto arquivo computadorizado nacional (da memória criminal e das peças identificatórias do cidadão), só pode funcionar integrada com o poder judiciário e não dele apartada, como sucede entre nós. O mecanismo da integração via juiz de instrução, via promotor ou via qualificação especial do delegado policial deve ser estudado e adotada a melhor solução. Mas como o crime é nacional (e, hoje, até internacional), não tem sentido a jurisdição da polícia judiciária ser limitada ao estado ou à província. A autonomia estadual poderia exigir, quando muito, uma polícia militar estadual, mas jamais uma polícia judiciária estadual. O Império estava com a boa doutrina.

Quando menciono que é política, a justificativa é devido às ingerências dos políticos de plantão no planejamento e realização de suas ações e restrições aos seus recursos, estes politicamente administrados. Um exemplo é o fornecimento de viaturas, verdadeiros “outdoors” ambulantes, mas sem as manutenções adequadas, basta ver nos pátios das delegacias o número de veículos oficiais abandonados ou sem condições de uso.
Visite um Instituto de Criminalística, questione a respeito dos recursos disponibilizados, em especial os recursos de informática. Visite uma Delegacia e veja a estrutura física e pior, questione nas Cadeias Públicas o número de presos existentes e compare com a lotação máxima do projeto original.

A Polícia Preventiva

O segundo tipo é a Polícia Preventiva: ela não investiga, não tem arquivos nem se especializa em determinados tipos de infração – destina-se exclusivamente à manutenção preventiva da ordem. Atua com policiais atuando individualmente, aos pares ou em pequenos grupos nos quarteirões e praças, caracterizando o policial de tipo comunitário que conhece as pessoas, identifica estranhos ao bairro, alerta e reprime pequenas contravenções, presta pequenos serviços à população, como auxiliar velhinhas e crianças a atravessar as ruas, visita doentes abandonados para informar aos serviços de saúde, etc. Esse tipo de polícia deve ser local, sob o controle das prefeituras, como nos países mais adiantados.

Atente-se que no Brasil houve uma tradição da existência de Guardas Civis e Guardas Noturnas, uniformizadas, privadas ou semiprivadas, que exerciam tais funções sem o concurso da polícia militar estadual. É necessário dar competência policial às guardas municipais já criadas nos municípios maiores, armando-as para essa finalidade. Não cabem preconceitos quanto ao armamento das guardas municipais quando há no país um efetivo enorme (várias vezes maior que o das polícias militares) de polícias privadas quase sem controle e sem treinamento, armadas a serviço de organizações que vão desde bancos, transportadoras, boates e clubes noturnos, passando por tribunais e órgãos públicos.

A Agência Reguladora

Torna-se urgente criar uma agência reguladora e fiscalizadora do poder público sobre a disseminação descontrolada de polícias privadas no país. É o tipo de serviço que se o Estado não presta ou presta mal, acaba substituído clandestinamente por pessoas ou empresas não qualificadas e que alimentam, por sua incompetência ou pela difusão de armas, a criminalidade. Urge regular e fiscalizar tal atividade e não tentar um monopólio impossível e contrário à nossa tradição para as polícias militares, como o conseguiu o lobby das PMs na Constituição de 1988.

Os especialistas em segurança recordam que as polícias, como entidades civis especializadas, diferentes da guarda política das autoridades e separadas das forças armadas, são uma criação do século XIX, quando sir Robert Peel reorganiza, no início do século, a polícia metropolitana de Londres. Durante todo o século XIX e a primeira metade do século XX permaneceu como uma atribuição característica do Estado. Após a segunda guerra mundial, o advento do terrorismo e o crescente aumento da criminalidade urbana levaram a uma privatização acelerada das funções policiais no primeiro mundo, tornando-se a polícia do Estado cada vez mais composta de agências especializadas; em alguns países, a polícia judiciária tem recorrido a particulares na captura e na guarda de criminosos.

Unidade ou Pluralidade das Polícias

Outro princípio fundamental no estado democrático, estranhamente esquecido na prática política nacional, é o do pluralismo e da multiplicidade das organizações policiais. Numa democracia, se houver um só corpo armado o guarda passa a ser soberano, e não há como resistir a suas demandas salariais e outras, e não há para quem apelar quando de sua corrupção. Por isso, todos os Estados democráticos do mundo convivem com uma pluralidade enorme de organizações policiais que se recobrem parcialmente. Examinemos, a título de curiosidade, a organização americana, por ser a de um estado federal, multicultural e de dimensões similares às brasileiras. Nos EUA há polícias judiciárias, federais, estaduais e locais, além de uma polícia estadual (quase sempre rodoviária) que lembra nossa polícia militar. Magruder, no clássico livro sobre o governo americano: “Não há uma única força policial federal. Várias agências investigam a violação da lei federal e fazem as necessárias prisões.” Entre as mais importantes estão a Alfândega, a Agência de Narcóticos, hoje DEA, a Agência de Tabaco e Armas de Fogo, o Serviço de Renda Interna, o Serviço Secreto e a Guarda Costeira, todos no Departamento do Tesouro. A Guarda Costeira faz parte da Marinha, obedece a seus regulamentos mas opera em tempo de paz sob o controle do Tesouro. Há uma polícia postal subordinada ao Postal Inspector, no Departamento de Correios, a FDA e o servi-ço de saúde pública, no Departa-mento de Saúde; o Serviço de Imigração e Naturalização, no Departamento de Justiça (os Departamentos dos EUA correspondem aos Ministérios brasileiros).

Há ainda outras polícias em nível federal, como o famoso FBI, com competência sobre 170 matérias. A organização mais antiga é o Serviço Secreto, de 1860, que é a polícia da moeda e suas falsificações. Não confundir com o Serviço Secreto de Proteção ao Presidente da República e demais autoridades e tampouco com as inúmeras agências de informações, comumente chamadas de serviço secreto, que cuidam da espionagem fora do país e de atividades de contra-informação externa – como a National Defense Agency (NDA), a maior, ou a CIA (a mais conhecida) ou os serviços secretos militares, ou ainda o serviço secreto de monitoramento por satélites, localizado no Departamento da Agricultura, por ter começado como órgão previsor de safras agrícolas no mundo.

Interessante é a existência de uma Agência Federal de Administração de Emergências, que trata de calamidades e emergências, com pessoal e equipamentos próprios e poder de requisição e coordenação. Há numerosos problemas de coordenação e jurisdição resolvidos por comissões. A coordenação abrange também as polícias estaduais, locais e a Guarda Nacional. As próprias forças armadas são plurais, são quatro: os Marines, autônomos apesar de pertencerem à Marinha, o Exército e a Força Aérea. O Presidente, comandante-em-chefe de todos, só pode usar a Marinha e a Força Aérea com autorização do Congresso. O Exército está subordinado ao Congresso, que autoriza sua convocação e uso sob as ordens do Presidente, em caso de guerra. Os Marines têm uma subordinação mais direta à presidência.

Pluralidade e Especialização

A concepção presente em todo o mundo civilizado é a da pluralidade e especialização dos organismos policiais. A especialização dá melhores resultados, e a pluralidade dos órgãos retira sua força de pressão interna, estabelecendo um sistema de vasos comunicantes que permite um melhor sigilo das investigações e uma barreira eficaz à corrupção, sempre possível e temível num serviço policial. Do ponto de vista liberal e democrático, os diferentes corpos armados devem ser plurais quanto ao estilo, ao armamento, ao recrutamento e à autoridade sob a qual servem imediatamente, e sobretudo devem ser especializados, isto é, o treinamento, o equipamento e a subordinação precisam levar em conta o objetivo de sua missão principal.

Atuação das Polícias

A atuação da corporação encarregada de enfrentar distúrbios, da judiciária ou das encarregadas do policiamento ostensivo se dará sempre em defesa dos direitos humanos básicos da população que as remunera, e terá como regra a defesa dos direitos humanos. Mas a prioridade está sempre com a população-alvo e, em segundo lugar, com a integridade da própria polícia e, em terceiro lugar, dos criminosos, também titulares de direitos humanos, pois sua conduta contrária aos direitos humanos das vítimas os coloca em prioridade posterior, mas não os priva dos mesmos.

O infrator vem em última prioridade no resguardo dos seus direitos, depois da vítima e do policial, mas conserva seu direito à vida, à integridade física e à liberdade. Por isso a polícia deverá ter à sua disposição armas e meios especiais para imobilizá-lo na proteção da vítima e em defesa da sociedade e do próprio policial encarregado de defendê-la. Armas letais só devem ser usadas em último caso, e o infrator só perde a liberdade com a expressa autorização do juiz, ao qual deve ser apresentado tempestivamente após sua prisão.

A estrita legalidade é, pois, um princípio de atuação da polícia. Outro princípio é sua permanente preparação, com treinamento e tolerância mínima para seus abusos e faltas, dada a especial importância dos bens a que deve proteger. Em outros termos, é necessária uma intensa profissionalização dos serviços policiais.

Outro princípio é a ênfase à prevenção, conhecido desde Cesare Beccaria no século XVIII, segundo o qual a repressão é custosa e incerta; além disso, deve-se levar em conta que o principal não é o quantum de pena que deve ser aplicado, mas a certeza da repressão. Esse princípio de penologia vale para a polícia, no sentido de que nenhuma ofensa à ordem pública deve ficar sem resposta, ainda que a resposta seja a possível e não a suficiente e melhor.

Propostas para a Segurança Pública no Brasil

Propostas Desastradas

Em face do enunciado, fácil é entender que as três principais propostas para solucionar o aumento da criminalidade no país são desastradas. Primeiro, o emprego do Exército, inviável pelo seu treinamento, pelo equipamento e pelo fato de se constituir de recrutas com preparo escasso e para outra finalidade. A segunda é a unificação das polícias, sugerida por governos e pela mídia, o que levaria a um risco enorme de corrupção e abuso de poder, além de misturar contingentes com treinamento diferente, e que deve continuar sendo diferente. A terceira proposta é o desarmamento universal da população, inviável num país de áreas rurais, com selvas e animais perigosos, e inútil, pois como recentes apreensões confirmaram, o crime utiliza fuzis AR15 e granadas que nunca estiveram de posse da população civil, e as pistolas utilizadas pelo crime normalmente são tipos especiais, nunca ou pouco vendidos no país. As armas do crime são importadas por ele ou desviadas da própria polícia ou das forças armadas. E como mostra o exemplo da Suíça e de outros países europeus, não é a posse de armas pela cidadania que contribui para o crime – até porque, na Suíça, todo cidadão tem armas em casa, inclusive armas militares, além de que o número de armas remanescentes de guerras mundiais na Europa em poder da população é enorme –, e a taxa da criminalidade lá é menor do que a nacional, encontrando-se em elevação hoje pela chegada de imigrantes com outra educação e outros valores, e não pela posse de armas pela população.

Inúmeros especialistas pregam que uma grande quantidade de armas ajuda a reduzir a taxa de criminalidade, como diz o título do livro de John R. Lott Jr., More Guns Less Crime (University of Chicago Press, 1998), em que ele apresenta farta evidência empírica de sua tese.

Propostas Plausíveis e Urgentes

A – Providências de ordem legal e judiciária: integrar a polícia judiciária (Polícia Técnico-científica e Polícia Civil) ao judiciário, como nos Estados Unidos e na Europa, de modo a economizar tempo e dar mais força à repressão das infrações; reformular a legislação, diminuindo prazos, limitando recursos e não apenas agravando penas, mas tornando-as mais possíveis de serem aplicadas para aumentar a certeza da repressão; ampliação do número de juízes, criando juizados com competência sobre contravenções, em especial as de trânsito, e que funcionem dentro da polícia e resolvam em menos de uma semana tais casos.

B – Assunção pelo governo central (União) das responsabilidades que governos centrais exercem normalmente na segurança pública. Por exemplo, polícia de fronteiras, para evitar a entrada de armas e drogas.

C – Criar dentro do Ministério da Fazenda uma Polícia Fazendária, incumbida dos crimes contra a moeda, contra o sistema bancário e do mercado de capitais, além da repressão à sonegação fiscal, com pessoal treinado à altura das dificuldades e da delicadeza desse tipo de missão.

D – Criar uma agência ou uma divisão da Polícia Federal incumbida da repressão aos crimes pela Internet, ao tráfico de menores, mulheres e órgãos humanos, pela implicação internacional de tais delitos. Estudar o exemplo internacional em outros tipos de agências policiais especializadas, como, por exemplo, num país de vocação para o turismo, uma polícia alfandegária com jurisdição sobre aeroportos e portos de entrada do país, com educação, civilidade e competência integrada para analisar a entrada e a saída de estrangeiros e nacionais. Hoje, vários serviços (receita federal, polícia federal, serviços sanitários e aeroportuários) disputam e complicam a entrada e a saída do país.

E – Unificar as polícias rodoviária e ferroviária federais, aumentar seu equipamento e efetivo, mantendo sua subordinação ao Ministério dos Transportes. Criar um Serviço de Proteção às Autoridades dos três poderes, em especial do Presidente, incluindo visitantes oficiais, para evitar os problemas políticos e corporativos do uso da Polícia Federal ou do Exército ou de seguranças privadas em tal função.

F – Criar no Ministério da Justiça um centro de informações servindo a todas as polícias do país e delas recebendo e suprindo informações, bem como laboratórios e serviços especializados de criminologia, impossíveis de serem mantidos adequadamente por todos os estados e municípios.

G – Ainda no Ministério da Justiça, criar um mecanismo de apoio às polícias militares estaduais, regularizando e padronizando armamento e treinamento, estabelecendo efetivos mínimos em relação à população e respeitando sua autonomia no estado federal. A secretaria disporia de um fundo para subsidiar as ações de sua competência.

H – Criar uma Agência Nacional Reguladora das Polícias Privadas, incumbida de estabelecer normas, autorizá-las, fiscalizá-las e estabelecer sua área de atuação (presídios, polícia municipal etc.).

I – Um último exemplo, já considerado pelo nosso governo central, é a construção de presídios federais de isolamento e segurança máxima, para impedir não apenas as fugas constantes mas também que os detentos de um presídio continuem praticando atos criminosos através de mensageiros ou de seus visitantes. Isso desafogaria os presídios estaduais e acabaria com a carceragem em delegacias, algo cruel e perigoso para a população.

J – Transformar as Guardas Municipais das cidades maiores e mais ricas em Polícia Preventiva e Ostensiva Municipal, com armamento e jurisdição adequados à sua função. Criar um mecanismo financeiro que permita às cidades menores a contratação de serviços policiais por licitação com sua Polícia Estadual ou organizações credenciadas.

K – Finalmente, duas providências de caráter cultural: (1) desenvolver através das escolas, com ênfase no primeiro grau, atitudes de apoio e colaboração com a polícia, além de disseminar informações sobre o caráter nefando e prejudicial das atividades criminosas, sobretudo para as populações mais pobres, enfatizando os terríveis custos sociais do crime, por afugentar os empregos e aumentar preços. (Uma boa introdução a esse tema é encontrada em David J. Pyle: Cortando Os Custos do Crime – A Economia do Crime e da Justiça Criminal. ILRJ 2000).

Finalmente, (2) incentivar pesquisas para esclarecer os condicionamentos da atual onda de criminalidade e violência e afastar a ingênua tese do iluminismo do século XVIII, de que o criminoso é uma vítima irresponsável da sociedade e da família (ou seria de sua ausência?). Gary W. Bornman, um ladrão de bancos cumprindo uma pena de sete anos num Instituto Correcional Federal na Flórida, escreveu uma carta ao jornal Tallahassee Democrat, da capital do estado, em 1995, em que, dentre outras coisas, diz o seguinte:

“Estou seguro de que quando uma vítima está sendo estuprada ela não se preocupa se seu atacante foi uma criança abusada na sua infância. Tolerando alegações como esta estamos dizendo para toda a sociedade que está OK roubar e assassinar, desde que tenhamos uma boa desculpa. O que aconteceu com a necessidade de assumir a responsabilidade por suas ações? Como alguém que passou a maior parte de sua vida atrás das grades, eu nunca conheci um criminoso culpado. Ouvindo-os, todos, menos ele, é claro, devem ser criticados por fazê-lo cometer o crime: sua mãe, a vítima, a própria sociedade. Acho que já é tempo de pararmos com essa falta de sentido e começarmos a tornar os criminosos responsáveis por suas ações.”(Bruce L. Benson, To Serve And Protect, op.cit., p. 227.)

As informações levadas a você foram baseadas na compilação de dados e informações realizada pelo Professor Ubiratan Borges de Macedo ([email protected]) apresentadas no artigo “Segurança pública em uma sociedade democrática”.

Gerhard Erich Boehme
Perito Criminal (Polícia Técnico-científica de São Paulo), consultor em gestão
organizacional, professor universitário, pesquisador e consultor na área de
implantação e implementação de Conselhos Comunitários de Segurança.
E-mail: [email protected]


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