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Materialismo Contra o Moralismo


Poucas terão sido as vezes, nos últimos tempos, em que um texto me deixou tão entusiasmado como este artigo de Eliane Brum. Um dos principais aspectos, quanto a mim, da extrema debilidade a que foram reduzidas as forças progressistas desde  derrocada do bloco socialista está identificada com enorme precisão, e as suas consequências enunciadas praticamente uma por uma. Falo da sentimentalização idealista da luta política, substituindo-se a fundamentação ideológica, teórica, histórica, dos posicionamentos políticos e das decisões tomadas pelas organizações de esquerda, por uma série de «próteses» idealistas que vão desde os valores da esquerda, à ética da esquerda, passando por outras moralices do género. Reduzindo as consequências do capitalismo a uma questão de carácter dos dirigentes políticos de turno, esta concepção insolitamente cristã da política não tem coisa nenhuma que ver com a tradição do pensamento marxista e (por isso) obstaculiza qualquer acção revolucionária digna de nota.

Marx e Engels não eram especialmente crítico do capitalismo no plano ético. Naturalmente, não lhe era indiferente o destino que o capitalismo reserva ao proletariado, ajuizaram sobre ele, pronunciaram-se contra ele, definiram-no como vergonhoso, foram críticos do que há de mesquinho e abjecto na voragem da acumulação e do lucro. Mas como escreveu Engels sobre os socialistas utópicos no Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico «para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e é bastante revelá-lo para, graças à sua virtude, conquistar o mundo», logo acrescentando que «para converter o socialismo em ciência era necessário, antes de tudo, situá-lo no terreno da realidade». Sublinha-se a referência à transformação do socialismo em ciência (deixando o campo da razão, da justiça, da verdade,e das concepções ético-morais dessa natureza) porque, literalmente, é esta transformação que faz o socialismo descer à terra: todas as ideias políticas que se reclamam a concretização de um conjunto de valores, de ideais, de sonhos, de contos de fadas e castelos de nuvens de seja que ordem for, são estranhas ao marxismo. O marxismo não quer corporizar valores inventados por Deus Nosso Senhor ou concebidos por um qualquer génio da política e da moralidade: quer actuar sobre a realidade material existente, modificá-la, transformá-la, fazer dela a realidade do socialismo (apetece dizer, fazer dela o socialismo real). É acção de pessoas concretas, de uma classe concreta, sobre uma realidade social que existe, mexe, vive. A tese dos valores forjados na cabeça de um sábio ou de um colectivo deles (como se a cabeça dos sábios não fosse, desde logo, a cabeça de gente, e gente de uma determinada classe) e feitos matéria na realidade social, é o mais absurdo dos fetichismos.

Eliane Brum percebe distintamente e apresenta o principal risco que o moralismo, isto é, a redução da política à ética e à batalha das crenças entre comunidades de crentes (em muito parecida a uma discussão entre padres de seitas distintas, ou a uma discussão sobre amigos imaginários), pode constituir para a política brasileira, numa formulação que se aplica a muitos outros lugares: «[h]á uma enorme descrença nos políticos e nos partidos tradicionais, este já é um lugar comum. Mas é importante perceber que a esta descrença se contrapõe não mais razão, mas uma vontade feroz de crença. Quando os dias, as vozes e as imagens soam falsas, e a isso ainda se soma um cotidiano corroído, há que se agarrar em algo. Quando se elege um culpado, um que simboliza todo o mal, também se elege um salvador, um que simboliza todo o bem. A adesão pela fé, manifeste-se ela pelo ódio ou pelo amor, elimina complexidade e nuances, reduz tudo a uma luta do bem contra o mal. E isso, que me parece ser o que o Brasil vive hoje, pode ser perigoso. Não só para uma ditadura, como é o medo de alguns, mas para que se instale uma democracia de fachada». Esvaziar a política de racionalidade, enchê-la de emotividade e irracionalismo (quem esqueceu que Marcelo Rebelo de Sousa dizia, há poucos meses, querer fazer «uma campanha de afectos»?), afastá-la da concretização de projectos de sociedade e reduzi-la a uma espécie de jogo de futebol em que os partidários de cada um dos lados são apenas uma claque em fúria, é um projecto velho de muitos anos. No qual, é lastimável, já caiu alguma esquerda.

A autora apresenta-nos um caminho que muito me agrada, e que muito tem a ver com as minhas reflexões a este respeito: «talvez o mais importante, neste momento tão delicado, seja resistir. Resistir a aderir pela fé ao que pertence ao mundo da política. Fincar-se na razão, no pensamento, no conhecimento que se revela pelo exercício persistente da dúvida. É mais difícil, é mais lento, é menos certo e sem garantias. Mas é o que pode permitir a construção de um projecto para o Brasil que não seja o da destruição. Quem sofre primeiro e sofre mais com a dissolução em curso são os mais pobres e os mais frágeis». É uma grande e sábia proposta: num tempo em que o irracionalismo tomou conta da discussão política, em que esta se permitiu ser rebaixada à disputa passional e clubística, em que a serenidade tomou sumiço e a passagem em revista dos erros e acertos para a definição de um novo projecto transformador que nos guie à revolução e ao socialismo choca com o sem-número de pruridos e sensibilidadezinhas que sempre são antepostos à discussão racional, à discussão científica, do caminho a trilhar, defender a razão, defender o materialismo dialéctico, defender a ciência do proletariado, não soçobrar à publicitarização nem à sentimentalização da política, é já um acto de coragem bem revelador da combatividade de quem o faz. E sem esta resistência, se apenas tivermos o moralismo e a famigerada confiança nos valores da esquerda e na ética de esquerda, teremos talvez uma enorme Igreja Universal do Reino Vermelho - mas não teremos, nunca teremos, a sociedade em que queremos viver.


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