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Filomena



Quando Filomena era ainda uma menina, recém chegada de Portugal, perdeu a mãe para o tifo. O pai, de desgosto, se acabava em bebida: tendo chegado no Brasil (como muitos imigrantes) com a intenção de prosperar, se viu derrotado pela dor da perda e, mesmo tendo por companhia a menina, desistiu de lutar.

Do jeito que as coisas iam logo estariam mortos ou relegados à caridade alheia... Moravam num quarto, na primeira Casa de cômodos que abrigou meu avô e minha avó logo que foram morar juntos - uma maneira bem comum dos portugueses recém chegados arrumarem um ganha-pão: construir uma casa grande rapidamente e alugar os quartos para os recém chegados do Velho Continente.

Filomena foi crescendo e se alimentando da piedade dos outros moradores da casa, pois seu pai - como eu já disse - só prestava prá se acabar em auto-piedade...

A menina estava quase beirando a adolescência, aos 10 anos, mas já se via que era bem bonita, com quem minha avó simpatizou à primeira vista (pois foi por essa época que as duas se conheceram...). Meus avós alugaram ali um quarto provisoriamente, enquanto meu avô levantou sua primeira casa num terreno próximo.

Alguns meses depois meus avós se mudaram dali prá própria casa e apesar de não estarem longe, pouco se viam: minha avó - que já tinha um filhinho quando foi morar com meu avô - ficou grávida algumas vezes, perdeu as crianças e vivia com seus próprios afazeres e problemas.

Meu avó trabalhava no que dava - ajudou a construir estradas de ferro, assentar os dormentes, levantar as estações - mas também vendia leite das vacas que ele criava...

Uma das freguesas assíduas era a dona da casa de cômodos onde Filomena ainda vivia - a quem meu avô quase nunca via, pois entregava o leite muito cedo...

Uma madrugada, no entanto, quando meu avô estava a entregar o leite, reparou numa confusão acontecendo na casa, uma gritaria, um quebra-quebra! Escutou a menina chorando, gritando com outro morador da casa:

-"Você tem que se casar comigo, eu tô esperando filho! Você desgraçou a minha vida, abusou de mim, pelo menos isso você me deve!!!"

E o homem, muitos anos mais velho do que ela, respondia rindo que não tinha nada que ver com isso, que ninguém podia obrigá-lo a se casar...

-"E quem vai me obrigar? O bêbado do seu pai?"...

E a pobre da Filomena só chorava, uma menina ainda...

Bom, meu avô tinha um outro freguês assíduo do leite das vacas dele: a Delegacia de Polícia, que também comprava os pães que minha avó assava prá dar alimento pros presos...

Naquela manhã meu avô chegou pro delegado e pediu um favor - e meu avô era um homem muito simpático, era amigo de todo mundo... Pediu pro delegado ir até aquela casa, obrigar o tal homem a casar com a Filomena - e o delegado foi. 

Nem bem o casamento se realizou, forçado mesmo, o homem cuspia palavras revoltadas na cara da menina:

-"Eu posso ter sido obrigado a me casar com você, mas ninguém neste mundo pode me obrigar a ser teu marido!"

E Filomena, feliz e satisfeita, respondia que não precisava: que ela era uma mulher casada e que o filho não ia ser bastardo. "Preferível ser mulher largada do marido que ser mãe solteira...".

Mas - naquele mesmo dia - depois de ir embora, o homem (que se chamava Juvenal) voltou trazendo uma cama de casal comprada de segunda mão na traseira de uma carroça e foi marido prá Filomena por toda sua vida - entre tapas e beijos, mas foi...

Tiveram dois filhos - somente dois. A primeira se chamou Olívia e foi a paixão declarada de todos os meus tios, irmãos de minha mãe. Era linda como uma estrela de cinema e era bem consciente disso. Conta minha mãe que ela fazia meus tios de gato e sapato, brincando com os sentimentos de todos - tem mulher que já nasce assim, espevitada...

Ao ficar maior de idade fugiu de casa: foi pro Rio de Janeiro virar artista. Virou dançarina daqueles cabarés de antigamente - vedete, era como se chamava...

Já o filho, que recebeu o mesmo nome do pai, era muito quieto - o tipo de pessoa que parece ter nascido com a pilha fraca, sem iniciativa prá nada, a chama da vela apagada... Nunca se casou, nunca construiu nada, nunca fez nada que fosse digno de nota - talvez só morrer atropelado pelo bonde, pobrezinho. Por isso saiu o nome dele no jornal...

Eu me recordo de sempre chamar Filomena de "tia" - e só descobri já adolescente que ela não tinha nosso sangue... Era difícil o mês que ela não vinha visitar a gente - e eu adorava, deixava de brincar com minhas amigas prá ficar perto, ouvindo as conversas da minha avó, da minha mãe e dela. Parecia uma viagem no tempo, tantas lembranças elas compartilhavam, tantas risadas, tantos pesares...

Foi por esse tempo que eu descobri que adorava gente velha, ouvir suas histórias...

Filomena tinha um cheiro esquisito - minha avó dizia que ela tinha medo de escorregar no banheiro então tomava banho de paninho molhado sentada numa cadeira e depois se enchia de talco, prá ficar mais cheirosa: o fato é que se enxergava talco nas dobras dos braços, do pescoço e até na raiz dos cabelos brancos coloridos de lilás com água de violeta genciana: batom vermelhão naquela boquinha murcha, pulseiras e anéis de bijuteria descascada pelo tempo e pela oxidação, as meias bege escorregando dos joelhos porque o elástico era velho. Uma figurinha doce e engraçada, de risadinha infantil a contar vantagem:

-"Sabia, Rosinha, que minha filha Olívia foi muito linda quando moça? Foi até amante do presidente Getúlio, até a Virgínia tirar ele dela...".

Essa era a Virginia Lane - prá quem não conhece... Teve mesmo um relacionamento com o Presidente Getúlio Vargas por 10 anos...

E eu concordava com a cabeça, embevecida pela imagem de uma Super-Olívia que eu nunca vi - pois tia Filomena não tinha nenhuma foto dela prá mostrar - de pernonas de fora, roupas minúsculas cheias de pedras preciosas e plumas de pavão a rebolar com as músicas, como nos filmes do Oscarito...

Depois que minha avó morreu ela ainda apareceu prá visitar algumas vezes, mas o tempo também se abateu sobre ela: as pessoas velhas vão perdendo as forças à cada amigo que se vai e minha avó levou um pouquinho da força dela embora, infelizmente.

Um dia ela simplesmente não voltou mais...

Mortos os filhos, nunca teve netos... Dela só nos lembramos eu e minha mãe - meus irmãos nunca deram atenção, quando falamos no nome dela eles nem sabem quem é...

Grande parte das histórias acontece assim, pouquíssimas testemunhas... Parece até sem sentido passar pela vida e, um dia qualquer, só porque o relógio pára, desaparecer por completo da face da Terra...

Mas cada linha escrita pela nossa passagem pela vida tem também as suas entrelinhas - essas escritas pelo destino (ou, mais precisamente, por Deus...). As vidas se tocam mutuamente...

Meu avô e minha avó, a menina Filomena e seu pai; o homem que abusou da menina e que foi forçado a se casar com ela... O delegado de polícia... Meus tios, a linda Olívia e o Presidente do Brasil: cada história se tocou em algum ponto e seguiu adiante, transformada mesmo que de leve... 

Todos eles já se foram e também fizeram, de uma forma ou de outra, parte da minha própria história... Porque afinal também as histórias anônimas acabam sendo contadas por alguém, em algum momento: elas também anseiam por serem lembradas, por não serem tão facilmente esquecidas...  

E assim aqui estou eu, a caminho de ser o meu tantinho igual a Filomena, carregando comigo o peso do tempo e uma mala cheia de histórias prá contar, sabendo que - de uma forma ou de outra - continuarei sendo lembrada...



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