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Instruções para chorar (Júlio Cortázar)

Instruções para chorar

Deixando de lado os motivos, atenhamo-nos à maneira correta de chorar, entendendo por isto um choro que não penetre no escândalo, que não insulte o sorriso com sua semelhança desajeitada e paralela. O choro médio ou comum consiste numa contração geral do rosto e um som espasmódico acompanhado de lágrimas e muco, este no fim, pois o choro acaba no momento em que a gente se assoa energicamente.

* * * Para chorar, dirija a imaginação a você mesmo, e se isto lhe for impossível por ter adquirido o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães nos quais não entra ninguém, nunca.

Quando o choro chegar, você cobrirá o rosto com delicadeza, usando ambas as mãos com a palma para dentro. As crianças chorarão esfregando a manga do casaco na cara, e de preferência num canto do quarto. Duração média do choro, três minutos.

Instruções para cantar

Comece por quebrar os espelhos de sua casa, deixe cair os braços, olhe vagamente a parede, esqueça. Cante uma nota só, escute por dentro. Se ouvir (mas isto acontecerá muito depois) algo como uma paisagem afundada no medo, com fogueiras entre as pedras, com silhuetas seminuas de cócoras, acho que estará bem encaminhado, e do mesmo modo se ouvir um rio por onde descem barcos pintados de amarelo e preto, se ouvir um gosto de pão, um tato de dedos, uma sombra de cavalo.

Depois compre cadernos de solfejo e uma casaca, e por favor não cante pelo nariz e deixe Schumann em paz.

Instruções-exemplos sobre a forma de sentir medo

Numa aldeia da Escócia vendem-se livros com uma página em branco perdida em algum lugar do volume. Se o leitor desembocar nessa página ao soarem as três da tarde, morre.

Na praça do Quirinal, em Roma, há um lugar conhecido pelos iniciados até o século XIX e do qual, em noites de lua cheia, vêem-se mexer lentamente as estátuas dos Dióscuros que lutam com seus cavalos empinados. Em Amalfi, no fim da zona costeira, há um dique que penetra pelo mar e pela noite. Ouve-se um cão latir para além do último farol. Um senhor está pondo pasta de dentes na escova. De repente, vê, deitada de costas, uma diminuta imagem de mulher, feita de coral ou talvez de miolo de pão pintado.

Ao abrir o armário para apanhar uma camisa, cai um antigo calendário que se desmancha, se desfolha, cobre a roupa branca com milhares de sujas traças de papel.

Sabe-se de um caixeiro-viajante que começou a sentir dor no pulso esquerdo, justo debaixo do relógio de pulso. Ao arrancar o relógio, o sangue jorrou: a ferida mostrava os sinais de uns dentes muito finos.

O médico acaba de nos examinar e nos tranquiliza. Sua voz grave e cordial precede os remédios, cuja receita ele escreve agora sentado à mesa. De vez em quando levanta a cabeça e sorri, animando-nos. Não é nada demais e daqui a uma semana estaremos passando bem. Nos refestelamos no sofá, felizes, e olhamos distraidamente em volta. De repente, na penumbra debaixo da mesa, vemos as pernas do médico. Ele arregaçou as calças até as coxas e veste meias de mulher.

Instruções para matar formigas em Roma

As formigas vão comer Roma, já se disse. Elas andam entre as lajes; loba, que fio de pedras preciosas secciona sua garganta? Por algum lado saem as águas das fontes, as lousas vivas, os trêmulos camafeus que no meio da noite criticam a história, as dinastias e as comemorações. Seria preciso achar o coração que faz latejar as fontes para preveni-lo das formigas e organizar nesta cidade de sangue intumescido, de cornucópias eriçadas como mãos de cegos, um rito de salvação para que o futuro lixe os dentes nos montes, se arraste manso e sem força, totalmente sem formigas.

Primeiro procuraremos a orientação das fontes, o que é fácil porque nos mapas coloridos, nas plantas monumentais, as fontes também têm abastecedores e cascatas de cor azul-celeste; só que é preciso procurá-las muito e envolvê-las num recinto de lápis azul, não vermelho, pois um bom mapa de Roma é vermelho como Roma. Por cima do vermelho de Roma o lápis azul marcará um recinto roxo em torno de cada fonte, e agora temos certeza de que as pegamos todas e conhecemos a folhagem das águas. Mais difícil, mais obscuro e sigiloso é o mister de perfurar a pedra opaca sob a qual serpenteiam as veias de mercúrio, compreender à força de paciência a cifra de cada fonte, montar nas noites de lua penetrante uma guarda apaixonada junto dos vasos imperiais, até que de tanto sussurro verde, de tanto borbulhar de flores, comecem a nascer os caminhos, as confluências, as outras ruas, as esquinas. E sem dormir segui-las com varas de avelã em forma de forquilha, de triângulo, com duas varinhas em cada mão, com uma só agarrada entre os dedos fracos, mas tudo isso invisível à polícia e à população amavelmente temerosa, andar pelo Quirinal, subir ao Campidoglio, correr aos gritos pelo Pincio, aterrorizar com uma aparição imóvel como um metais do solo a nomenclatura dos rios subterrâneos. E não pedir ajuda a ninguém, nunca.

Depois se irá percebendo como nessa mão de mármore esfolado as veias correm em harmonia, por prazer de águas, por artifício de jogo, até se aproximar pouco a pouco, confluir, enlaçar-se, transformar-se em artérias, derramar-se duras na praça central onde palpitam o tambor de vidro líquido, a raiz das copas pálidas, o cavalo profundo.

E logo saberemos onde está, em que fundo de abóbadas calcárias, entre miúdos esqueletos de lêmures, bate seu tempo o coração da água. Será difícil saber, mas se saberá. Então mataremos as formigas que cobiçam as fontes, calcinaremos as galerias que esses mineiros horríveis tecem para aproximar-se da vida secreta de Roma.

Mataremos as formigas só em chegar antes à fonte central. E partiremos num trem noturno, fugindo a tubarões vingadores, sentindo-nos obscuramente felizes, misturados a soldados e freiras.

 

Instruções para subir uma escada

Ninguém terá deixado de observar que frequentemente o chão se dobra de tal maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis. Abaixando-se e pondo a mão esquerda numa das partes verticais, e a direita na horizontal correspondente, fica-se na posse momentânea de um degrau ou escalão. Cada um desses degraus, formados, como se vê, por dois elementos, situa-se um pouco mais acima e mais adiante do anterior, princípio que dá sentido à escada, já que qualquer outra combinação produziria formas talvez mais bonitas ou pitorescas, mas incapazes de transportar as pessoas do térreo ao primeiro andar.

As escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os olhos deixem de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está pisando, a respiração lenta e regular. Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada em baixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça e que salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo (também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e levando-a à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o que neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé).

Chegando dessa maneira ao segundo degrau, será suficiente repetir alternadamente os movimentos até chegar ao fim da escada. Pode-se sair dela com facilidade, com um ligeiro golpe de calcanhar que a fixa em seu lugar, do qual não se moverá até o momento da descida.

 

Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio

Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você — eles não sabem, o terrível é que não sabem — dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence, mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso.

Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.

Instruções para dar corda no relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.

Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.

(Texto extraído do livro Histórias de Cronópios e de Famas)


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