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TEMPOS MODERNOS


          Depois que eu morri, percebi que algo de errado havia acontecido, não por eu ter morrido - nada é mais certo que a morte -, mas pelo número de policiais no quarto. Quem chamou a polícia? O que se diz para a atendente, no Distrito, numa situação dessas?
 
 
          - Mataram uma mulher num dos quartos.
          Ou:
          - Uma louca matou-se com drogas num dos quartos.
          Ou:
          - Um pessoal estranho promoveu uma orgia num dos quartos e alguém acabou morto.
 
 
          Sairia no jornal. Quanto a isto, não tive dúvida, porque eu morri num quarto de motel, na zona sul de Porto Alegre, por volta de umas três e pouco da manhã, embriagada, depois de ter cheirado alguma cocaína e ingerido comprimidos de ecstasy. Evidentemente, sairia no jornal. Nem dava para ter dúvidas. A dúvida que me consumia era relativa ao fato de que algo dera errado. E eu não conseguia definir onde.
 
          Naquela noite, bebi minha primeira taça de vinho tinto antes das vinte horas. Era o final de um dia quente e conturbado pelo trabalho, pelas avenidas entupidas de automóveis, pelos horários que parecem encolher mais e mais a cada instante que passa. Eu gosto muito de vinho tinto. Eu tenho me dedicado a apreciar o vinho tinto. Aprendi em cursos. Aprimorei em viagens, leituras, trocas de ideias com outros bebedores de vinho tinto. E tem sido uma prática interessante.
 
          Na minha segunda taça de vinho tinto, eu liguei Beth Gibbons no som da sala, aquela canção que começa como se ondas batessem, num murmúrio, como se o mar pudesse ameaçar as paredes do prédio e do apartamento. Ninguém, jamais, cantou como Beth Gibbons, nem Billie Holiday, e esta melodia chama-se Mysteries, o que, no contexto, poderia ser visto como uma premonição ou uma prova da existência de Deus, mas Beth Gibbons sempre será uma prova da existência de Deus, mesmo fora de contexto e ainda no dia em que ninguém mais morrer.

          Antes da terceira taça de vinho tinto, o telefone tocou:
          - Vamos jantar? - ele disse.
          - Estou ficando tão cansada ultimamente - eu disse.
          - Vamos jantar - ele disse. - Você vai se distrair e o cansaço vai passar.
          - Você acha? - eu perguntei.
          - Com certeza - ele respondeu.
          E eu então tomei um banho e me perfumei e pus um vestido lindo e sexy. Não tinha acabado a terceira taça de vinho tinto quando a campainha já soava. E eu então chaveei a porta do apartamento e esperei o elevador e desci. Era o começo de uma bela noite cheia de tons diferentes de negro e sombras. Enquanto o carro avançava pelas ruas de Porto Alegre, eu pensei nisso, nas nuances das cores muito escuras e percebi que, em geral, tenho pensado nas gradações das cores claras, e ri.
          - O que foi? - ele disse.
          - Acho que o vinho está fazendo efeito - falei.
          E ri. Com um certo cansaço, mas ri.

          Eu gosto de restaurantes. Gosto muito da impessoalidade dos restaurantes, porque eles fazem ter a sensação de que, de repente, nos desamarramos de tudo. Comer em restaurantes é como confraternizar com piratas num barco à deriva: é estranho e meio perigoso, mas o infinito de água ao redor torna o universo calmo... Eu estava calma no restaurante. Estava calma e alegre e sem fome. Estou ficando tão cansada, ultimamente. E então engoli o primeiro comprimido com mais um copo de vinho tinto, só para vencer o cansaço, e isso me deixou realmente bem. Ele me disse:
          - Vamos dançar em algum lugar?
          - Vamos - eu disse, já levantando da mesa, no restaurante, porque começava a ficar impaciente com tanta calma. Tomei outro comprimido, no carro, para varrer a impaciência e controlar a calma. Ele me disse:
          - Vá devagar com esses comprimidos.
          E a frase ficou reverberando pela metade, num eco:
          - Vá devagar... Vá devagar... Vá devagar... Vá devagar... Vá devagar...

          Até se misturar com a música e as luzes na pista de dança.
          - Vá devagar... Vá devagar... Vá devagar... Vá devagar... Vá devagar...

          Até mergulhar no dourado do uísque, subir à tona e amanhecer para sempre num horizonte high-tech sobre a pista de dança.
          - Vá devagar... Vá devagar... Vá devagar... Vá devagar... Vá devagar...

          Uma das garotas me ofereceu cocaína no banheiro. Segurou meu cabelo para que não caísse sobre o rosto quando eu aspirava o pó. Eu me voltei, ainda fungando, e ela me deu um longo beijo na boca. Usava um perfume capaz de extinguir a miséria de sobre a Terra. A outra garota eu não sei de onde surgiu. Eu não sei de onde surgiu o motel. Eu sei que confraternizava com os piratas, num barco à deriva, quando me debrucei sobre a amurada e caí no mar. Eu suava e sentia frio ao mesmo tempo. Eu tremia e vomitei por toda parte. Portas bateram, sirenes, gritos... Quem chama a polícia? Isso me intriga. Como é o nome de quem chama a polícia quando as tragédias acontecem? É claro que em algum lugar alguma coisa deu errado, mas onde?
 
 
         


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