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Entre Sombras

Tenho acompanhado este gordo senhor há algum tempo. Não é algo de que me orgulho, mas enfim, é o meu trabalho.

Acho que os últimos dias não foram muito fáceis para ele, visto que jaz estático acomodado gelidamente em suas banhas que, agora, não mais apresentam a textura de macios travesseiros, mas sim de pedras brancas disformes.

Eu estava presente no início de seu dia, ou melhor dizendo, no início de seu fim. O rádio relógio despertou em uma música que mais me lembrava um lamento gutural. Assustado, ele abriu os olhos com preguiça e em um tapa desligou-o.

Levantou cambaleante rumo ao banheiro. Não pôde perceber a minha presença e eu apenas torcia para que aquela montanha não caísse, acordando a todos como o estrondo da queda.

Imagino que esse deveria ser seu ritual diário. Escovou os dentes sem capricho e lavou o rosto, na tentativa de mandar água abaixo todas as imagens que cercavam seu cotidiano: assassinos, traficantes, drogados, assaltantes… Ah! Sim…Deixe-me explicar-lhes. Ele era ou, neste ponto, ainda é delegado.

Sei que sempre fico com o trabalho sujo, pôr fim a uma existência, mas prefiro colocar de uma maneira mais eufêmica, livro uma vida da dor, do sofrimento.

A imensa figura enxugou-se às pressas, alardeada pelo som da campainha, saiu do banheiro em uma velocidade que eu não imaginava ser capaz.

Aproximei-me lentamente, tocando suas costas com desdém.Virou-se de maneira espalhafatosa e, tenho certeza, que seus olhos puderam vislumbrar-me.

Em um minuto de pavor e ansiedade, levou as mãos ao peito e correu em direção à porta. Seguiu trôpego, nem ao menos pode perceber que pisara na encomenda deixada minutos antes pelo carteiro. De joelhos, se colocou em frente à porta do vizinho. Arfando com voracidade, deu seu último suspiro enquanto caía em um baque um tanto quanto molenga, assumindo a posição em que agora se encontra, aquela mesma que já lhes descrevi.

Ocupo um lugar privilegiado no corredor, admito que ainda trago comigo um pouco de curiosidade, quero ver o que se seguirá.

Posso ouvir passos caminhando até a porta. São leves e ritmados. A tranca velha da fechadura rasga o silêncio ao ser destravada. Os raios de luz do início da manhã se intrometem a entrar pela porta que aos poucos é aberta, brindando-me com uma visão quase divina.

Delineada por uma fina camisola – seus cabelos ondulados e pretos como deveria estar a visão do gordo a essa hora, a pele alva, que para mim exala rosas – surge o semblante mais belo que já existiu.

Ela vê o calado vizinho caído em sua soleira, seus olhos correm em torno, buscando algo por todo o corredor. Por um instante parecem se encontrar com os meus, são azuis, profundos, cristalinos como a bonança do mar. Sinto-me eufórico. Ela me viu, na certa me viu! Mas assim como pararam por um segundo, seguem secos ao constatar que não há mais ninguém no corredor.

Abaixa-se suavemente. Toca o homem com os dedos, deslizando-os lentamente até aquela boca inerte, na tentativa de sentir sua respiração. Eu, escondido em meu canto, quase posso sentir a maciez daquele toque. Como queria ser eu ali, estático.

Percebo algo mórbido em seu olhar ao notar que já não há vida no corpo, o que me deixa ainda mais instigado.

Seus traços adentram a casa, deixando apenas a camisola esvoaçante em minha memória. Sei o que vai fazer. Seguirá ao telefone para discar os números da polícia e em instantes eles estarão por aqui, em minutos descobrirão o motivo da falta sem explicações de seu delegado.

Com pesar vejo que devo partir, ainda há muito trabalho por fazer…

Pois bem, vejo que me esqueci de um detalhe. Ainda não me apresentei. Você, de fato, não me conhece pessoalmente, mas garanto que mesmo assim já tem um nome para me dar. Chame-me como achar melhor. Porém, dos muitos nomes que possuo, meu predileto é Ceifador.

Carregarei aquela bela face pelos anos a fio, até o dia em que, como o delegado, seu coração não mais agüente, ou mesmo outro arranque-lhe a vida. Nesse momento, meu toque poderá finalmente apresentar-lhe minha figura.

Camila Capps




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