Todo remédio é veneno disfarçado.
Paracelsus, médico do século XVI.
Todo veneno pode ser um remédio disfarçado.
Siddhartha Mukherjee, médico indiano.
Por falar em conflito entre Israel e Hamas, o que aconteceu na primeira Guerra mundial merece ser revisitado. O gás mostarda, introduzido pelos alemães, hoje proscrito dos conflitos (por causar envenenamento, reduzindo a capacidade de combate do inimigo), era um terror. Milhares morreram.
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Se ali foi o início da guerra química, também foi o pré-laboratório da "oncologia química" - faz bem saber que as ondas de ontem banham o hoje em busca de amanhãs, atina o poeta Corisco.
Alguns aliados, feridos da primeira guerra, que inalaram o gás mostarda, foram levados às pressas aos EUA para estudos - outros foram à necropsia, infelizmente. Entre os sobreviventes, porém morreram tardiamente, os glóbulos brancos haviam praticamente desaparecido do sangue, e a medula óssea estava depauperada. Conclusão: O gás causava aplasia medular grave.
Abriu-se a ferida, reluz Corisco...
...Mas Louis Goodman e Albert Gilman, da Universidade Yale, estiveram interessados em estudar o fenômeno. Tiveram a dedução que o efeito nocivo da mostarda poderia ser utilizado num ambiente hospitalar, em doses menores e monitoradas, para envenenar o excesso de glóbulos brancos de natureza maligna. O duo observou alguns casos de regressão de leucemia em doses clínicas. Os resultados ficaram em sigilo até o fim da segunda guerra. Publicaram os dados em 1946.
A observação científica acendeu a palavra "quimioterapia", logo incluída no dicionário da farmacologia médica, exatamente por ter origem como agente químico de guerra. Com isso, a conexão entre a guerra química do campo de batalha com a guerra química do corpo humano tomou prumo, e uma ficou refém do palavrório da outra. Ou seja, na fronteira entre esses dois temas, definir o momento em que a palavra de um passa a ser de outro, é semelhante a criar fronteiras no espaço. Então ressignificados foram criados: "alvo cirúrgico de guerra" e "aliança de combate ao câncer" são dois exemplos do que se ouve nos jornais que noticiam a guerra e nas associações médicas envolvidas com a cancerologia.
Assim sendo, o discurso de Paracelsus, lá na epígrafe, dá voz e vez a Mukherjee, ao completar uma especialidade para tratar o câncer, vez que cirurgia e radioterapia já tinham seus papeis definidos.
A proto-especialidade, que aqui cognominei de "oncologia química", edificou-se no subsolo do Childrens' hospital, pelas bermas da avenida Longwood, próximo à Escola Médica de Harvard e Hospital Brigham, por conta da abnegação de Sidney Farber, um patologista que abandona o formol e o microscópio em 1947 para se entrincheirar de vez na guerra contra o câncer.
A primeira alça de mira de Farber foi a leucemia linfoblástica aguda — raro tumor sanguíneo que ocupava o centro das atenções do Children's Hospital, em Boston. Ele usou com pioneirismo um derivado do ácido fólico. De Farber nasce o Instituto Dana-Farber, conhecido centro mundial de pesquisa do câncer.
O problema da mostarda e outros era o efeito colateral devastador, por causar demasiada toxicidade aos tecidos sadios. Eram verdadeiros bombardeios ao território humano tal como a guerra, sem diferenciar células malignas das sãs. O inimigo câncer é ardiloso, por isso precisava de abordagem em proporção maior, como bem grifa Sheakspeare, em Hamlet:
Males que crescem desesperadamente só podem ser eliminados com mecanismos desesperados.
Até que se chegou à terapia-alvo, que usa drogas para bombardear seletivamente células cancerígenas que sofrem mutações, provocando menor dano às células normais.
O que dirão que fomos dará o tom do que seremos, finaliza Corisco.
O termo "alvo" nasce da guerra, mas a própria guerra não o incorpora, por não dispor de meios que separe as células terroristas da população civil. É o custo da teoria hamletiana; foi o que se grifou na história da oncologia.