Há mais de ano venho acompanhando o nódulo pulmonar da esposa de meu Professor de literatura no segundo grau. Ela havia sido submetida à retirada da mama por câncer, há alguns anos, e o aparecimento da mancha deu-lhe um novo susto. Com características benignas, a imagem vem lentamente regredindo de tamanho nesses quase dois anos de seguimento. Ele a acompanha rigorosamente às consultas e sempre me leva de presente, um mimo de sua coleção, pois sabe que tenho uma pequena livraria na sala de espera de meu consultório, repleta de clássicos da literatura brasileira e universal.
Já aposentado, seus livros são todos rabiscados e cheio de intervenções a lápis - da época de professor da ativa. Ali me vejo sentado, assistindo às aulas. É uma delícia ficar lendo seus comentários. Depois deposito o livro na minha pequena estante, que fica numa sala sem wifi e televisão, em exposição para novos admiradores.
Outro dia ele levou um Álvares de Azevedo.
Curioso sobre a morte do poeta aos 20 anos de idade, ele me sapecou uma dúvida quanto à causa: “alguns dizem que foi a Queda de um cavalo, outros tuberculose”. Ao lado do John Davis (Clinical Surgery), um livro de mais de três mil páginas que guardo há mais de 35 anos sobre minha mesa, expliquei-lhe cientificamente a relação entre o traumatismo craniano provocado pela queda do cavalo e a tuberculose, numa relação incomum, mas plausível. Baseado na evolução avançada da doença, que finda em grave desnutrição, e consequente fraqueza muscular, conclui-se sobre a queda. O próprio escreveu sobre a evolução avançada de sua tuberculose:
“Embora – é meu destino. Em treva densa
Dentro do peito a existência finda...
Pressinto a morte na fatal doença.”
Claro que nos idos de 1852 a “tísica” tinha prognóstico diferente dos tempos atuais. Por isso, senti-me gigante naquela explicação, ao demostrar conhecimento clínico ao meu admirável professor. Era como se tivesse batido no peito, mostrando que eu sabia muita ciência para explicar muitas coisas, entre as quais, a morte em discussão. No final, ele arrematou: “ainda bem que sabes muito mais de literatura, afinal, você foi meu aluno...”
Ao fim do dia, senti-me Golias. Aquela pedrada agravou minha cegueira num dos olhos. O outro vai tentar compensar a perda. Ainda há tempo? Só se encompridar a vida...