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“Só sei que nada sei”

Tenho um gosto danado pelo comum, pelo que acontece e não se festeja, como o dia ao nascer. Isso tudo escorreu em mim quando eu havia chegado ao hospital no início da manhã, hora em que há suavidade no céu infundo e o verde denso do estacionamento. Hora em que há mais espaço pelo arvoredo, onde o doce pungimento das almas ali desfilam. A paisagem é um estado da alma e chegar cedo é bom motivo para conhecer o desafiante Zelu, que aos 17 anos parou de comer sólidos. Por conseguinte, desaprendeu a mastigar. Chegava naquele momento aos 30, mas sofria com a possibilidade de não mais poder engolir o pão de cada dia. Foi-lhe sapecado o diagnóstico de “estenose de esôfago”. Estenose em medicina é o mesmo que estreitamento, obstrução. Uma das causas é tumor. E essa possibilidade foi aventada para o Zelu.

Dizia que melhorava por uns tempos, depois voltava a ter dificuldades para engolir. No máximo pastas ou sopas. Assim deixava a vida lhe levar. As endoscopias com dilatações sempre mostravam a mesma coisa, até que ano passado ficou crítico: só passava líquido. Até o açaí do grosso ele abandonou, com medo de ficar entalado. Agoniado, acabou internado para usar métodos médicos. Passaram uma sonda pelo nariz e a comida, liquidificada, chegava até o estômago feito um túnel, atravessando o órgão oco e estreitado.

Na sessão de discussão de Casos Complexos em câncer ficou descartada tal hipótese. Menos mal, porém o último exame já mostrava que 75% do diâmetro estava ocluído. A doença progredia e ele estava cada vez mais magro. Fez um exame sofisticado chamado ecoendoscopia. Não deu para retirar fragmento para exame, pois não havia agulha descartável, mas viu-se que por fora do órgão havia compressão. Já era alguma coisa: a luz de lamparina no meio da floresta escura. Então restava a cirurgia.

Antes de marcar a operação, normalmente às sextas-feiras, consultei o calendário, pois era mês de sexta-feira 13. Havia uma salvadora sexta antes da treze. Agarrei-me naquela. Não gostaria que os anjos do mal, durante a cirurgia, ficassem azucrinando ao pé do meu ouvindo, com premonições.

Diante de casos complexos é sempre bom ligar para amigos. Então consultei um amigo com expertise em esôfago. Fui desanconselhado a operar. Sugeriu que repetisse as dilatações até ficar permeável. Aquilo seria meu fim - aliás, o de Zelu. Não tinha mais como desmarcar, após algumas dilatações sem sucesso.  Seria uma decepção muito grande para o Zelu. Ele apostou tudo no bisturi. Jamais se viu tomando açaí pela sonda.

Então fui pro campo ressabiado e com a certeza de que não sabia o que fazer, agora somado a outra opinião. Acordei com os sinos da Sé, tomei café, dei no é, mas fui com fé.

Montamos o sistema de vídeo à câmera de alta resolução e começamos: Eu, a residente de cirurgia geral e vários alunos - por se tratar de hospital universitário.

Não obstante um e outro me perguntavam o que ia fazer. Dizia: biopsia. Nada mais que isso. Fui peregrinando calmamente com os instrumentais, procurando entender aquela anatomia totalmente deformada. Era como se estivesse me apoiando ao caduceu, fazendo o caminho de Santiago de Compostela.

Fragmentos para amostra foram retirados e o órgão liberado de amarras cicatriciais. Findou aí. Depois despertaram o Zelu. Saí de campo com a certeza absoluta que deveria ter dado ouvido ao meu amigo. Seria um desastre maior se tivesse ocorrido alguma complicação. Aí eu me jogaria de cabeça do segundo andar. 

No dia seguinte, ao despertar, ainda com a sonda, Zelu sentiu fome a estranha sensação que a sua saliva descia suave. Fez um teste com um copo d’água; em seguida foi café e um pedaço de pão de sua acompanhante, que estava dormindo. Abocanhou sem dó. Desceu macio. Ali se viu atravessando uma ponte, agora mais alargada, bem devagar, à velocidade mínima autorizada, a dar ao tempo a melhor tática para restituir o seu fluxo de vida e a sua cura.

Permanecera em silêncio e com sonda por mais dois até a hora da alta. Roubava o pãp de todos da enfermaria só para testar a deglutição. Nada de entalo. Ele não se conteve e contou a verdade ao médico que passava visita. O médico tomou um susto e disse-lhe: “todas as coisas relegadas ao abandono, se continuam a respirar, remete-nos a Deus. Estás de alta”.

Ou seja, os físicos, em suas exatidões científicas, explicam, escrevem, detalham leis, prescrevem mundos e equações, mas que não cabem na medicina, pois vivemos do mistério, do escondido, sem deuses oniscientes a legislar sobre o futuro do presente. Por certo, ao longo da jornada aceitamos o incerto, o duvidoso. Certezas, como a de Zelu não têm encantos. Seríamos pobres sem a clareza do talvez. Embalar palavras para alimentar epistemiologias só nos serve para dar coragem para atravessar cada novo dia que alvorece.



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