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No canto da boca


Por Íris de Noir

Degustado pela minha impaciência, não demorei a pegar um cigarro e jogar no canto da boca enquanto procurava o isqueiro. Uma das poucas intimidades que tenho sozinho é fumar. Minha mulher não aprova a fumaça, o gosto, a forma, o câncer. Que ela não me encontre fedendo a cigarro, se não vai me encher o saco. Às vezes acho que de mim apenas restará um cigarro. Mesmo assim, estou casado com ela já faz tanto tempo...

Tanto tempo eu passei casado e fingindo que escuto o que ela diz, que em um desses fingimentos, perdi-me na lembrança de quando conheci uma garota há muito mais tempo do que sou casado. 

Ela era estranha, melancólica e carente. Com gosto perturbador por cemitérios, falava muito sobre morte, romances e tristezas. Isso incomodava, mas algo me encantava nela: acho que eram seus olhos castanhos cheios de doçura, embora fosse impossível saber o que se passava por trás deles ou no modo como ela se envergonhava quando eu a olhava muito. Costumava me receber com um sorriso, mesmo eu sendo um estúpido e grosseiro por natureza. Naquela época, vivemos durante alguns meses, um relacionamento de altos e baixos e nunca soube dizer se me amava, pois às vezes me sentia usado por ela. Não sei dizer se eu consegui mostrar que a amava, pois eu também por vezes a usava e depois acabava me sentindo um babaca. 

Não consigo me lembrar de todos os detalhes daquele dia, mas o que ela disse pra mim marcou-me até hoje, “eu gosto de você’’. Depois disso, subiu a rua e não olhou pra trás. Cheguei a conversar com ela depois, até desabafei sobre meus problemas no namoro e ela me aconselhou a ter paciência, já que eu amava minha atual e deveria me esforçar para entendê-la e sermos felizes. 

Pois bem, segui seus conselhos. Anos se passaram e caí na mesmice. Admito só pra mim que cheguei a chamar a estranha menina para morar comigo, ela levou na brincadeira e fez piada. Até hoje acho que ela sabia que eu falava a verdade, porém eu a assustava muito, então ela preferiu negar. 

Hoje, mais maduro, eu entendo que a fase que eu a encontrei era uma fase difícil e ela era frágil demais. Sou tão idiota que aquela linda flor, frágil, foi dada a mim e eu, eu quase a despedacei em mil pétalas. 

Ano apos ano, ouvi uma música no rádio, o cigarro escondido na janela e cabeça cozinhando um ensopado de ideias medíocres.

Quero encontrá-la!
Por onde a gente acha uma garota que conhecemos anos atrás?

Facebook! 

Mas... mil nomes iguais! Qual era o sobrenome dela? Era diferente... Estrangeiro, não lembro...
Já sei: bandas, programas de TV, filmes!

Ah, homem retardado! As pessoas mudam de gosto...

De repente uma luz... cervejas Heineken, isso ninguém desgosta, a não ser que tenha virado algum tipo de abstêmia e espero muito não ser o caso.

Achei! Nossa! Meu Deus! (Eu sou ateu, detalhe para a minha empolgação...)

Como ela está linda e colorida! Parece alegre e animada, feliz... Nunca a tinha visto tão feliz. Ela mudou, era uma mulher, mas ainda sorria da mesma maneira e os olhos... ainda doces e de um castanho brilhante. Descobri que ela estuda, desenha, passeia, dança e grita na rua quando está feliz com os amigos, tudo isso em uma simples rede social. Bem que falam: se você quer privacidade, mantenha-se fora da internet. Deveriam acrescentar uma ata sobre antigos romances que te caçam online.

Olhando e olhando, descobri que ela estava para casar e olhando aquilo tudo, vi que nem em sonho teria um lugar pra me encaixar e digo isso porque por um minuto eu queria estar naquela foto de noivado, embora eu odeie essas festas e formalidades. Com ela, me deu vontade, me arrependi por um minuto, mas já tinha passado o tempo, muito tempo. 

Resolvi então desligar o computador e dormir e agora senti a mesma coisa, mas o tempo novamente passou. Vou fazer o que sempre faço, levantar e tomar banho para tirar o cheiro de cigarro, deitar e pensar que detesto admitir que se tivesse tido paciência com a menina triste e perdida, teria a meu lado uma mulher que me pareceu incrivelmente interessante e muito menos chata do que a minha.

O nome dela? Prefiro não dizer...

Cada vez que me lembro do nome, me recordo da vontade que tenho de chamá-la e da dor de não poder mais abraçá-la e nem repetir seu nome seguido da frase ”eu te amo”. Frases que eu fui muito babaca de não ter dito na hora certa e jamais posso dizê-las agora, no momento errado.





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