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Meu cheiro

 Por Dan Cilva

   Aretha cantava com potente pulmão no disco velho da antiga vitrola que minha mãe ganhara de meu pai no último aniversario de casamento. As tardes de janeiro estavam mais tórridas do que de costume e nessa época, papai dizia que meninas deviam sempre se perfumar para não cheirar a cueca usada. 

   Sempre que dizia isso com aquele tom carrancudo, eu me aguava de rir e logo ele me puxava um chinelo ameaçador e tudo voltava ao estado natural daquela casa. Passara-se o tempo e demorei a pegar corpo de moça, o que deixava meu pai satisfeito e minha mãe preocupada. Afinal quem iria querer se casar com uma moça velha demais e sem atributos? 
 
Época maldita para as mulheres, os homens são impiedosos e as mulheres restava abrir as pernas e depois dar vários filhos, homens de certo, ai da esposa que não desse sequer um varão!

Quando passei na adolescência algo misterioso se pôs em meu caminho. Aquilo que arrastaria por maldição pelo resto da minha vida.
Acordei com minha mãe a beira da cama rezando o terço com tanta força que quase quebrava o crucifixo. Um Cheiro de podridão e roupa suja tomava o ar, aquele fedor me fez vomitar na hora e quase ficar de cama por dias.
Meu pai ria e dizia que era bobagem de mulher.

Aquilo me enchia e a medida que eu crescia, junto brotava um distanciamento da minha parte para com o resto das pessoas.

Eram raras as vezes que me dava ao luxo de sair de casa e sempre voltava profundamente enjoada. No começo minha mãe jurava que eu estava grávida. Que ridícula! Se eu estivesse de quem seria?

O que provocava náuseas era o cheiro das pessoas, cada uma tinha um cheiro diferente e isso fazia minha cabeça dar voltas e voltas ao ponto de meu desjejum pedir passagem logo cedo. O cheiro que mais me incomodava aparecia quando eu pegava minha mãe conversando com a vizinha da frente, que diziam os vizinhos dos lados sempre que podiam que Deise havia ficado velha demais e agora se deitava com qualquer um em troca de favores.

Deise não era vítima, por outro lado, era muito manipuladora e minha mãe não percebia. Não eram raras as vezes que eu passava pela sala e minha mãe estava aos risos com Deise. Sempre que a vizinha colocava os olhos em mim, sentia como se meu corpo fosse jogado em um abismo sem fim de escuridão e perversão. Eu corria para o banheiro com refluxo.

Aquilo me dava muita raiva, pelo cheiro podia saber quem prestava menos ou mais. Saudades de não saber nada disso.

Certa vez fui me deitar e acordei no hospital com a cabeça enfaixada. Não sentia dor e pela primeira vez não sentia o cheiro do pecado das pessoas. O período que fiquei no leito foram agradabilíssimos. Foi uma semana ímpar.

Ninguém me contou como e porque fiquei com a cabeça naquele estado, mas o doutor me receitou uns remédios de nome difícil e que fosse vê-lo de mês em mês.

Logo na primeira quinzena de agosto já me sentia uma nova pessoa e nem pensava na possibilidade de tomar um chá com o doutor. Até briguei com meus pais.

Naquela noite eu fugi, naquela noite eu matei um homem...

Doutor, veja bem, esse bêbado quis fazer coisas horríveis comigo. Eu só abreviei seus dias.

Os pregos na madeira que usei para partir os ossos de sua cabeça? Eu não me lembro, apenas lembro do cheiro nauseante que vinha dele.

Meu cheiro, doutor?

É o único que não consigo sentir.

Eu existo, doutor? Estou morta? 




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