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As Unhas da Vovó

Vovó fez 84 anos esse ano, e tem uma pele que poucos têm, é forte, come bem, tem saúde, apesar dos pesares. Vovó Perdeu células cerebrais, perdeu boa parte dos movimentos, perdeu um pouco da sanidade, perdeu o amor de alguns, mas mantém intacta, a vaidade. “Tá branco o meu cabelo, pinta, pinta!”. “Não quero lavar o cabelo, vai sair a tinta” – sua força física é usada, quando mesmo depois dos pedidos, somos obrigados a lavar os cabelos finos da senhorinha que é tão brava, Sempre foi. “Passa esmalte, tá saindo”, e eu sempre me rendo, paro o que estiver fazendo para dar cor às unhas já esbranquiçadas e com pouca vida. Daí, dia desses, percebi que a vovó só aceita que pintemos a unha dela se for de rosa ou vermelho. Rosa mais clarinho que minha mãe idolatra: não! Branco, meu preferido: nem considera! Lilás: diz ser cor de quaresma. Engraçado. Minha mãe bate o pé, acha que as cores que ela escolhe são chamativas demais. Vovó se mantém firme: que seja! Refleti: essa é uma das únicas formas dela de expressar suas vontades. Pensei no que ela perdeu ao longo dos anos, as opiniões – das quais ela era cheia –, o poder de expressar aquilo que quer e o que não quer, a maneira de dizer que algo a incomoda, o jeito até de expressar as dores, tudo ficou perdido no tempo. Pensei em mim, na minha mãe, na minha sogra, na minha prima, na vaidade das mulheres. Como será se desfazer obrigatoriamente daquilo que nos dá característica, daquilo que nos faz ser quem somos? Como será ver pelos olhos dos outros? Viver pela vida dos outros? Não é só a cor do esmalte, ou a cor da tinta dos cabelos, é mais que isso, é a originalidade que fica pra trás. Aí chorei um pouquinho, olhando pra ela e pros esmaltes espalhados. Então pensei nas pessoas que a vem visitar ou que a veem na rua, até no hospital, como aconteceu recentemente, estão sempre reparando nas unhas, sempre elogiam, sempre perguntam se ela é vaidosa, e geralmente, é essa a primeira coisa que veem na vovó, e Ela Sabe disso, ela pode não ser mais a mesma pessoa de antes, pode não ter mais a condição física ou mental de quando era mais jovem, mas ela sabe. Ela sabe porque ela sorri, ela diz que eu pintei, ela mostra as mãos. Ela sabe que pelo simples ato de manter a sua vaidade, ela demonstra ainda ter algo, um pouco da essência do que ela foi, da sua juventude, do que ela se tornou durante sua vida. E é por isso que, mesmo que ela insista para que eu pinte de qualquer cor, eu vou pintar. Rosa bem escuro, vermelho, vinho, roxo, amarelo ou azul, eu sempre vou pintar. 




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