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A arte de viver juntos: o Manifesto Convivialista

"Jamais a humanidade teve à sua disposição tantos recursos materiais e competências técnicas e científicas para assegurar seu bem-estar como agora. Considerada em sua globalidade, ela é rica e poderosa, como ninguém nos séculos anteriores poderia imaginar. Nada prova, no entanto, que ela esteja mais feliz.

Fotografia de Sebastião Salgado

Em um livro recente, Gilles Lipovetsky e Jean Serroy chamavam atenção para o fato de que nenhum pensador substituiu Marx e que não há, atualmente, um grande sistema de pensamento que tenha em seu núcleo a perspectiva de destruição do mercado: “Que outra ideologia, que não do domínio da pura utopia, ainda preconiza a saída do mundo da iniciativa privada e da concorrência?” O capitalismo se desenvolve na atualidade sem um verdadeiro concorrente, alegam os autores, uma vez que os diversos movimentos críticos contemporâneos, apesar de seus esforços, não esboçam nenhuma solução coerente, nenhum programa possível de substituir de maneira construtiva o sistema estabelecido. Eles viveriam apenas sob a bandeira Comum do anticapitalismo.

O Manifesto Convivialista: Declaração de Interdependência, publicado na França em 2013 e aqui no Brasil no final do mesmo ano, pode ser lido como uma tentativa de resposta a essa problemática. Isso porque um dos principais objetivos do Manifesto – assinado por cerca de quarenta intelectuais, como Alain Caillé, Chantal Mouffe, Edgar Morin, Gabriel Cohn, Barbara Cassin, Serge Latouche, Paulo Henrique Martins, Yann Moulier-Boutang, entre outros – é o de formular “o que se pode considerar como algo próximo do maior denominador comum dos pensamentos alternativos”, ou seja, encontrar os princípios comuns que permeiam as diversas correntes de pensamento crítico contemporâneo e mostrar que, apesar de sua multiplicidade e heterogeneidade, todas elas seriam marcadas pela presença de algumas características que as põe de acordo umas com as outras.

Ressaltar essas convergências, e formular os princípios comuns que as norteiam sem eliminar, com isso, as divergências entre elas, seria o primeiro passo em direção à elaboração de uma ideologia capaz de fazer frente à ideologia dominante em nossa época, marcada pela onipresença e onipotência do homo oeconomicus, pela subordinação de todos os nossos atos a uma lógica de avaliação quantificada, pela privatização generalizada, pela extensão do modelo mercantil a esferas que antes estavam fora da lógica mercantil. Pôr em relevo o que as correntes de pensamento crítico e os diversos movimentos sociais contemporâneos têm em comum, pois, ajudaria a aproveitar melhor as suas energias, a potencializá-los e, com isso, se contrapor com força suficiente às “dinâmicas mortíferas de nosso tempo”, de modo que essas energias “não sejam confinadas a um papel paliativo ou de simples contestação”. Mas o que essas correntes de pensamento crítico e movimentos sociais têm em comum?

Antes de responder a essa pergunta, os autores do Manifesto procuram identificar as ameaças presentes (aquecimento global, fragilização dos ecossistemas, escassez de recursos energéticos, crescimento do desemprego, aumento da desigualdade de riqueza, colapso dos agrupamentos políticos, desenvolvimento do terrorismo, peso crescente da alta finança rentista e especulativa em todas as decisões políticas, etc.) e as promessas do presente (as potencialidades de desenvolvimento individual e coletivo que emergem se todas as ameaças estiverem afastadas) para, a partir daí, formular aquele que seria o desafio central da nossa civilização na atualidade:

A humanidade soube realizar progressos técnicos e científicos fulminantes, mas ela permanece ainda incapaz de resolver seu problema essencial: como gerir a rivalidade e a violência entre os seres humanos? Como incitá-los a cooperar para que se desenvolvam e deem o melhor de si, permitindo-lhes ao mesmo tempo se opor sem se massacrar? Como criar obstáculos à acumulação de poder, a partir de agora ilimitada e potencialmente autodestrutiva, sobre os homens e sobre a natureza? Se não souber rapidamente responder a essas questões, a humanidade desaparecerá, muito embora todas as condições materiais estejam reunidas para que ela prospere, contanto que tomemos definitivamente consciência de suas finitudes.

Quais as respostas existentes a esse desafio? O Manifesto procura coligir algumas tentativas de resposta, cujos elementos estão dispersos nas diversas iniciativas concretas de milhares de organizações, associações e movimentos espalhados pelo mundo, que se apresentam sob diversos nomes e em escalas variadas: a defesa dos direitos do cidadão, do trabalhador, do desempregado, da mulher ou das crianças; a economia social e solidária; as cooperativas de produção ou de consumo, o comércio equitativo, as moedas paralelas, os sistemas de troca; a economia da contribuição digital (Linux, Wikipedia, etc.); o decrescimento e o pós-desenvolvimento; os movimentos slow food, slow town, slow science; o altermundialismo, a ecologia política e a democracia radical; os indignados, Occupy Wall Street; os movimentos de transformação pessoal, de simplicidade voluntária, de abundância frugal; os novos pensamentos dos communs; a busca por indicadores alternativos de riqueza etc.

Mas o que essas diversas repostas têm em comum? Qual o elemento comum que as norteia? A busca por um convivialismo, por uma arte de viver juntos, segundo os autores, “que valorize a relação e a cooperação e permita se opor sem se massacrar, cuidando do outro e da Natureza e favorecendo a abertura cooperativa com eles”.

Após o liberalismo, o comunismo, o socialismo (e o anarquismo), terá chegado o tempo do convivialismo?

Abaixo uma síntese do Manifesto.

MANIFESTO CONVIVIALISTA: Declaração de Interdependência*

Jamais a Humanidade teve à sua disposição tantos recursos materiais e competências técnicas e científicas para assegurar seu bem-estar como agora. Considerada em sua globalidade, ela é rica e poderosa, como ninguém nos séculos anteriores poderia imaginar. Nada prova, no entanto, que ela esteja mais feliz. Porém, nenhuma pessoa deseja voltar atrás, pois todos percebem que, cada vez mais, novas possibilidades de realização pessoal e coletiva se abrem todos os dias.

Mas, por outro lado, ninguém pode mais acreditar que essa acumulação de poder possa prosseguir indefinidamente, tal qual em uma lógica de progresso técnico inalterada, sem se voltar contra ela mesma e sem ameaçar a sobrevivência física e moral da humanidade. As primeiras ameaças que nos assaltam são de ordem material, técnica, ecológica e econômica. Ameaças entrópicas. Somos muito mais incapazes de sequer imaginar respostas para o segundo tipo de ameaças. Ameaças essas de ordem moral e política. Ameaças que podemos qualificar como antrópicas.

O problema primordial

A constatação está aí: a humanidade soube realizar progressos técnicos e científicos fulgurantes, mas ela permanece ainda incapaz de resolver seu problema essencial: como gerir a rivalidade e a violência entre os seres humanos? Como incitá-los a cooperar, permitindo-lhes ao mesmo tempo se opor sem se massacrar? Como criar obstáculos à acumulação de poder, de agora em diante ilimitada e potencialmente auto-destrutiva, sobre os homens e sobre a natureza? Se a humanidade não souber rapidamente responder a essa questão, ela desaparecerá. Muito embora todas as condições materiais estejam reunidas para que ela prospere, contato que tomemos definitivamente consciência de suas finitudes.

Dispomos de múltiplos elementos para resposta: aqueles que sustentaram ao longo de séculos as religiões, as morais, as doutrinas políticas, a filosofia e as ciências humanas e sociais. E as iniciativas que seguem no sentido de uma alternativa à organização atual do mundo são inumeráveis, produzidas por dezenas de milhares de organizações ou associações e por dezenas ou centenas de milhões de pessoas. Essas iniciativas se apresentam sob nomes, sob formas ou em escalas infinitamente variadas: a defesa dos direitos do homem, do cidadão, do trabalhador, do desempregado, da mulher ou das crianças; a economia social e solidária com todas suas componentes: as cooperativas de produção ou de consumo, o mutualismo, o comércio justo, as moedas paralelas ou complementares, os sistemas de troca local, as diversas associações de apoio mútuo; a economia da contribuição digital (Linux, Wikipedia etc.); o decrescimento e o pós-desenvolvimento; os movimentos slow food, slow town, slow science; a reivindicação do buen vivir, a afirmação dos direitos da natureza e o elogio à pachamama; o altermundialismo, a ecologia política e a democracia radical, os indignados, Occupy Wall Street; a busca por indicadores de riqueza alternativos, os movimentos de transformação pessoal, de simplicidade voluntária, de abundância frugal, de diálogo de civilizações, as teorias do care, os novos pensamentos dos communs etc.

Para que essas iniciativas tão ricas possam se contrapor, com força suficiente, às dinâmicas mortíferas de nosso tempo e para que elas não sejam confinadas a um papel de simples contestação ou de atenuação, torna-se crucial reunir suas forças e suas energias, daí a importância de destacar e nomear o que elas têm em comum.

Do convivialismo

Elas têm em comum a busca por um convivialismo, por uma arte de viver juntos (con-vivere) que habilita os humanos a cuidar um dos outros e da Natureza, sem negar a legitimidade do conflito, mas fazendo dele um fator de dinamismo e de criatividade. Um meio de evitar a violência e as pulsões de morte. Para encontrar esse meio, precisamos, a partir de agora, e com toda urgência, de uma base doutrinal mínima partilhável que permita responder simultaneamente e em escala planetária, ao menos, a quatro questões essenciais (mais uma):

- A questão moral: o que é permitido aos indivíduos esperar e o que devem eles se proibir?

- A questão política: quais são as comunidades políticas legítimas?

- A questão ecológica: o que nos é permitido retirar da natureza e o que devemos lhe restituir?

- A questão econômica: qual quantidade de riqueza material nos é permitido produzir, e como devemos produzir, de modo a sermos coerentes com as respostas dadas às questões moral, política e ecológica?

Cada um é livre para adicionar ou não a essas quatro questões aquela concernente ao sobrenatural ou ao invisível: a questão religiosa ou espiritual. Ou ainda: a questão do sentido.

Considerações gerais: A única ordem social legítima universalizável é aquela que se inspira em um princípio de Comum Humanidade, de Comum Socialidade, de individuação e de oposição ordenada e criadora.

Princípio de comum humanidade: acima das diferenças de cor de pele, de nacionalidade, de língua, de cultura, de religião ou de riqueza, de sexo ou de orientação sexual, há somente uma humanidade, que deve ser respeitada na pessoa de cada um de seus membros.

Princípio de comum socialidade: os seres humanos são seres sociais para quem a maior riqueza existente é a riqueza de suas relações sociais.

Princípio de individuação: em conformidade com os dois primeiros princípios, a política legítima é aquela que permite a cada um afirmar da melhor maneira sua individualidade singular em devir, desenvolvendo sua potência de ser e de agir sem prejudicar a dos outros.

Princípio de oposição ordenada e criadora: porque todos têm vocação para manifestar sua individualidade singular, é natural que os humanos possam se opor. Mas só é legítimo fazê-lo enquanto isso não coloca em risco o plano da comum socialidade que torna essa rivalidade fecunda e não destrutiva.

Desses princípios gerais decorrem:

Considerações morais

O que é permitido a cada indivíduo esperar é o reconhecimento de sua igual dignidade para com todos os outros seres humanos, é ter acesso a condições materiais suficientes para levar a cabo sua concepção de vida boa, respeitando as concepções dos outros

O que lhe é proibido é cair em desmedida (a hubris dos Gregos), i.e. violar o princípio de comum humanidade e por em perigo a comum socialidade. Concretamente, é dever de cada um lutar contra a corrupção.

Considerações politicas

Na perspectiva convivialista, um Estado, ou um governo, ou uma instituição política nova só podem ser tidos como legítimos se:

- Respeitam os quatro princípios de comum humanidade, de comum socialidade, de individuação e de oposição ordenada, e se facilitam a realização das considerações morais, ecológicas e econômicas que deles decorrem;

Mais especificamente, Estados legítimos garantem a todos seus cidadãos mais pobres um mínimo de recursos, uma renda básica, seja lá qual for sua forma, que os protege da abjeção da miséria, bem como impedem progressivamente aos mais ricos, via instauração de uma renda máxima, de cair na abjeção da extrema riqueza, ultrapassando um nível que tornaria inoperantes os princípios de comum humanidade e de comum socialidade.

Considerações ecológicas

O Homem não pode mais se considerar como dono e senhor da Natureza. Tendo em conta que longe de se opor a ela, ele faz parte dela, ele deve estabelecer com a Natureza, ao menos metaforicamente, uma relação de dom/contra-dom. Para legar às gerações futuras um patrimônio natural preservado, ele deve assim devolver à Natureza tanto ou mais do que dela toma ou recebe.

Considerações econômicas

Não há correlação comprovada entre riqueza monetária ou material, de um lado, e felicidade ou bem-estar, de outro. O estado ecológico do planeta torna necessário buscar todas as formas possíveis de prosperidade sem crescimento. É necessário para isso, em uma perspectiva de economia plural, instaurar um equilíbrio entre Mercado, economia pública e economia de tipo associativo (social e solidária), dependendo se os bens ou os serviços a serem produzidos são individuais, coletivos ou comuns.

Que fazer?

Não podemos negar que, para obtermos êxito, será necessário enfrentar forças consideráveis e terríveis, tanto financeiras quanto materiais, tanto técnicas, científicas ou intelectuais quanto militares ou criminosas. Contra essas forças colossais e frequentemente invisíveis e ilocalizáveis, as três principais armas serão:

- A indignação experimentada em face da desmedida e da corrupção, e a vergonha, sendo necessária ser sentida por aqueles que diretamente ou indiretamente, ativamente ou passivamente, violam os princípios de comum humanidade e de comum socialidade.

- O sentimento de pertencimento a uma comunidade humana mundial.

- Muito além das “escolhas racionais” de uns e de outros, a mobilização dos afetos e das paixões.

Ruptura e transição

Toda política convivialista concreta e aplicada deverá necessariamente levar em consideração:

- O imperativo da justiça e da comum socialidade, que implica a supressão das desigualdades vertiginosas irrompidas no mundo desde os anos 1970 entre os mais ricos e o resto da população

- A preocupação de dar vida aos territórios e às localidades, e assim de reterritorializar e de relocalizar o que a globalização desterritorializou e deslocalizou em demasia.

- A absoluta necessidade de preservar o meio ambiente e os recursos naturais.

- A obrigação imperiosa de fazer o desemprego desaparecer e oferecer a todos uma função e uma atribuição reconhecidas entre as atividades úteis à sociedade.

A tradução do convivialismo em respostas concretas deve articular, na prática, as respostas à urgência de melhorar as condições de vida das camadas populares, e de construir uma alternativa ao modo de existência atual tão carregado de múltiplas ameaças. Uma alternativa que cessará de fazer crer que o crescimento econômico ilimitado ainda poderia ser a solução para todos nossos males.

*Disponível no site: http://www.lesconvivialistes.org/sintese-do-manifesto-convivialista



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