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Deus está vendo

Tags: padre isso
Padre Albuquerque e Padre Azevedo chegaram ao hospital. Fazia uma tarde de céu azul e calor ameno da primavera. Ainda dentro do carro, acertaram uma última coisa:
- Padre Azevedo, te chamei aqui porque eu preciso de outra pessoa para fazer Isso.
- Puxa padre, se soubesse que era para isso, eu já teria recusado...
- Por isso mesmo que eu não avisei. Não tem ninguém na minha igreja que possa fazer isso, e eu já estou acima do meu limite...
- Então, eu também não posso ajudar...
- Por favor, eu já estou em trezentos e cinquenta de média da semana...
- ... e eu estou com quatrocentos e vinte, Padre Albuquerque.
- O quê? Mas como você pode estar com uma média tão alta?
- É que tiveram jogos interescolares na minha sede, e eu fui o juiz da natação...
- Ué, mas era para você estar em retiro agora. O que aconteceu?
- Estou esperando a minha vez. Um outro padre teve que resgatar um rapaz que passou mal no vestiário...
- Tá, não precisa contar o resto, essas coisas acontecem... Vou lá fazer a função e você fica com os familiares então...
- Está bem. Quem são os familiares?
- São poucas pessoas: é a mulher e duas filhas.
- Ah... eu faço esse sacrifício. Procure fazer rápido e boa sorte, Padre Albuquerque.
- Para você também, Padre Azevedo

***

Os dois padres chegam até a sala de espera. Três mulheres vão até a dupla. A mais velha, por volta de quarenta anos, entra em diálogo com o Padre Albuquerque.
- Que bom que você veio, padre.
- Como ele está, filha?
- Ele está em coma. Pelo menos não está sofrendo muito...
- Não se preocupe. O câncer pode ser terrível, mas a fé é maior. Isso vai levar algum tempo, mas nós vamos conseguir salvá-lo.
- Graças a Deus, padre!
- Trouxe comigo o padre Azevedo para lhes fazer companhia enquanto administro. O monitor ficará desligado durante esse tempo.
Uma das moças pergunta:
- Mas padre, por que desligar o monitor? A gente quer vê-lo...
- Tudo a seu tempo, prometo que vocês ainda o verão. Fique com elas, Padre Azevedo.
Padre Azevedo acenou com a cabeça, olhar fixo no Padre Albuquerque. Enquanto isso, o Padre Albuquerque é acompanhado por um enfermeiro até a sala onde está o paciente.
- Ele já está desenganado, padre. Só está aqui para esperar a morte - disse o enfermeiro.
- Obrigado por me acompanhar, Israel. Poderia desligar o monitor para mim?
- Sim senhor - respondeu-lhe o enfermeiro. Com um toque de botão, o monitor que mantinha a imagem constante de Israel no sistema de video deixou de funcionar. Padre Albuquerque entrou na sala e fechou a porta.
Dentro da sala, deitado em uma cama, coberto por um lençol branco, estava o paciente, deitado com as mãos cerradas e uma certa rigidez nas feições, aparentemente por conta de tanto tempo sentindo dor. Padre Albuquerque então retira do bolso um tablet enrolado, um clipe parecido com prendedor de cabelos, levanta a cabeça do paciente, coloca o pequeno clipe na parte de trás de seu pescoço, e após sentar-se em uma cadeira ao lado da cama, aperta um botão no seu tablet.
O paciente desperta.
- Ahnn... onde estou?
- Bom dia, Jonas Stuart. - diz o padre - Lembra-se de mim? Sou o Padre Albuquerque, da sua paróquia. Faz tempo que não nos vemos.
- Oi... - Jonas cumprimentou, com uma certa dificuldade.
- Sua mulher me pediu para vir até aqui. Eu estou aqui por um motivo muito sério, Jonas.
- Qua... qual é? - Jonas tentava responder, mas falar estava difícil.
- Jonas, fique calmo, não se esforce muito, deixe que eu te explico a situação. Você não está mais na UTI, agora você está deitado numa cama individual em coma. Seu câncer está em um estado muito avançado e seu corpo está num processo irreversível.
- Mas... mas... não sinto dor alguma... e estou me sentindo bem... que estranho...
- O motivo de você estar se sentindo bem Jonas, é que eu coloquei atrás do seu pescoço um aparelho que estimula sua atividade cerebral ao mesmo tempo em que corta a comunicação com o resto do corpo e te dá uma descarga de serotonina, para manter sua mente lúcida e sem dores.
- Meu braço... não mexe...
- Seu corpo não se mexe porque o aparelho apenas estimula sua cabeça. A única coisa que podemos fazer é nos comunicar um com o outro.
- Eu... eu... vou morrer?
- Sim, você vai morrer, não há o que ser feito. Por isso eu estou aqui, Jonas. Eu não estou aqui para salvar o seu corpo. Estou aqui para salvar... a sua alma.
- Minha alma... alma não existe... saia daqui... - Jonas movia o maxilar de um lado para outro.
- Fique calmo, meu filho. Deixe a serotonina fazer seu efeito, vamos conversar calma e lucidamente. Você não pode fazer nada, seu pescoço não irá se mover. A única coisa que você pode fazer é conversar comigo.
- Covarde... o que é isso?
- Jonas, você ia sempre para a igreja, e sabe que existem sete sacramentos: batismo, crisma, confissão, eucaristia, matrimônio e unção dos enfermos. Todos os sacramentos são bem conhecidos pelos fiéis da igreja católica, mas a unção dos enfermos é o último e o menos conhecido dos sacramentos, pois é administrado para quem está prestes a falecer.
- Eu... me recuso... a receber... sou ateu...
- Eu sei, Jonas, e sua mulher está muito preocupada com isso. Mas existe uma parte em que todos os fiéis não sabem sobre a unção dos enfermos. Veja bem: a unção dos enfermos até muito tempo atrás era chamada de extrema-unção, pois apenas as pessoas à beira da morte a recebiam. Esse sacramento foi mudado porque isso dificulta muito a realização dele. Porém, O último Concílio feito pela igreja há oitenta anos atrás analisou a situação, e graças à tecnologia podemos administrá-la de uma forma muito melhor do que jamais poderíamos ter feito em outra época.
- Como... como assim?
- Antigamente a única coisa que poderia ser feita era preparar a alma para o outro mundo, sem nenhum tipo de ajuda real. Hoje em dia, temos drones de segurança em todos os cantos, cartões de segurança, sensores de calor, telemetria de ondas mentais, e já podemos ter acesso a tudo o que uma pessoa fez em toda sua vida, incluindo seus pensamentos. A maior conquista do último Concílio foi que pudemos desenvolver um sistema, chamado de Onisciente, que capta os sinais dos vários sistemas e drones de segurança para fazer um arquivo vitalício de tudo o que as pessoas fizeram, pensaram e sonharam durante a vida.
- Isso é... nojento... é para... você vai... me julgar?
- Quem julga é Deus. O que nós vamos fazer aqui Jonas, é um levantamento de todos os pecados que você cometeu em sua vida, para assim você poder se arrepender, aceitar Deus como o único salvador e poder enfrentar o julgamento de Deus ciente de tudo que você fez.
- Covarde...
Padre Albuquerque começa a passar o dedo indicador em seu tablet:
- Estou aqui fazendo o levantamento de sua vida agora... ô meu filho, você pecou muito... desde a infância... o seu caso é complicado...
- Todo... mundo... peca... em pensamento...
- E Deus está vendo tudo. Não foram só seus pensamentos, Jonas: você pecou muito nas atitudes também. Aos seis anos você batia em um vizinho que era menor que você...
- Eu era... criança...
- ... e esse vizinho, o Peter, viveu com medo de todo mundo. Depois de conviver com você, ele foi para o serviço militar, pegou gosto por armas e acabou matando a esposa e seus três filhos e se suicidou aos vinte e sete anos.
- Isso é... antigo... eu não... posso... ter causado... isso...
- Você fez isso intencionalmente, Jonas. Você sabia que isso era errado, e fez mesmo assim.
- Como... pode... saber?
- Os sistemas podem ver e interpretar tudo.
- Isso... não prova... Deus...
- Jonas,se eu tenho a sua vida inteira e a de todas as pessoas que você conheceu na minha mão, imagine se Deus não teria.
- Deus... não... existe...
- Você diz isso porque seu pai foi morto quando você era pequeno e sua mãe sofreu para te criar? Ou foi porque a babá que você tinha aos nove anos abusou de você?
Jonas começou a chorar.
- A vida não é fácil para ninguém, Jonas, ela errou, mas nem todo mundo fez as mesmas escolhas que você. Você se casou e teve filhos. Você sente desejo pelas sua filha mais nova, mas nunca abusou dela que nem fez com a mais velha. Você é tão capaz de se arrepender agora quanto se arrependeu no deslize daquela única vez.
- Deus... nunca... me per...doaria...
- Deus conhece a natureza humana e suas falhas, Jonas. Deus se fez homem através de seu único filho para carregar os erros do ser humano e permitir que todos possam ser perdoados e encontrarem a salvação. Seus pensamentos e suas atitudes podem ser perdoados, mas você precisa se perdoar, meu filho.
Jonas falou algo imcompreensível.
- O caminho do pecado é inevitável para todos nós, a única coisa que podemos fazer é reconhecer isso e buscar. Na sua vida, você cometeu muitos pecados, alguns terríveis, outros que você nem se lembra mais, e o seu pensamento sempre esteve tomado pelas idéias mais sórdidas e hereges, mas você também fez o bem. Você ajudou o seu amigo Murilo no momento em que ele mais precisava, e nunca contou isso para ninguém. Você apresentou a Cássia para o João, e eles tiveram uma história feliz juntos. Se não fosse a sua indicação, o Régis não seria contratado pelo laboratório e não teria salvado tantas vidas no mundo com suas descobertas médicas.
- Eu... não... mereço...
- Deus vai decidir. Deixe isso nas mãos dele, e enquanto isso, aproveite seus últimos momentos para tirar esse peso das suas costas e se perdoe, Jonas.

***

Após terem visto o video com a mensagem de Jonas para sua família e de uma oração em grupo, os dois padres se despediram e voltaram para o carro. A luz amarelada do pôr-do-sol adentrava o veículo. Os dois permaneciam calados desde então, até que o Padre Azevedo resolveu romper o silêncio:
- Padre, você não me contou, e eu não perguntei também, mas... por que sua média está tão alta?
- Padre Azevedo, normalmente essas unções costumam aumentar a média, mas é que lá na minha sede eu também convivo e cuido do Padre Massinha.
- Ah sim, ele está com uns cento e seis anos agora, não?
- Cento e cinco. Ele é muito velho, e fica falando dos tempos antigos: sempre reclama que sente saudade do tempo em que os pássaros viviam na cidade, que sente falta do canto dos pássaros, das cigarras no verão, que agora só tem cercas sônicas e zumbido de drones para todo o lado...
- Tá, mas o que que tem?
- É que ele vive falando que é bobagem isso de calcular a média de pecados que a gente comete, de fazer retiro e ficar rezando um rosário inteiro para diminuir a média...
- Você sabe que ele só pode estar provocando.
- É, mas ele me faz pensar numas coisas...
- Não liga para ele, ele deve falar porque ele não vai receber essa unção, por ser de antes da época do Onisciente.
- Tem isso, mas todo pecado é absoluto. Um pecado é um pecado, e pecar menos ou manter média baixa não nos torna melhores do que as outras pessoas.
- É por isso que nós não trabalhamos, Padre Albuquerque: o que nós temos é uma missão. O Padre Massinha não deve estar mais tranqüilo do que a gente por não pensar assim. Ele deve estar mais preocupado do que nós, por não imaginar o que lhe espera no julgamento.
- Mas nem nós sabemos. Por mais que a Igreja tenha chegado tão longe para salvar a todos, eu estou achando que no final das contas é tudo um engodo. Eu não me sinto feliz por salvar uma alma como hoje, isso apenas me deixa incomodado em saber que não posso fazer nada além disso. E se estivermos errados?
- Por favor, não tente me convencer. Se eu ficar com mais pecados... no final das contas, se você estiver certo que podemos fazer?
Padre Albuquerque respirou e disse:
- Só podemos esperar ser capazes de nos arrepender de coração quando nosso dia chegar.
Os dois olham para o horizonte, o céu azul, ouvindo um leve zumbido, mas não há drone visível.


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