Get Even More Visitors To Your Blog, Upgrade To A Business Listing >>

Claude Farrére - Fumaças de Ópio - Fou-Tcheou-Road

Tags: oacutepio

<
FOU-TCHEOU-ROAD


Esse agora tornou-se meu hábito mais querido. Toda noite eu fumo o ópio.
Não na minha casa. Eu não quero ter uma fumaria em minha casa. Estou morando sobre o Bound, na Concessão Francesa. Muitas pessoas me visitam e prefiro que elas não saibam: ensina-se cada absurdo sobre os fumantes!
Não, ninguém sabe. Ao cair da tarde, na hora em que os europeus sonolentos vão ao club ou flertam nos salões, eu finjo voltar para casa, enfastiado da vida mundana. E o meu Djin-rickshaw, que me atende à porta, me leva imediatamente, nas grandes passadas de suas sólidas pernas amarelas, ao longo das ruas desertas que conduzem ao centro da Concessão Internacional. É lá que eu fumo, na Fou-Tchéou-Road, a rua alegre de Xangai. Eu não tenho uma fumaria preferida. Na Fou-Tchéou as fumarias abundam, todas acolhedoras. Xangai é a cidade das festas, o lugar dos encontros voluptuosos de todo o Yang-Tsé, — Deauville, Biarritz e Monte Carlo ao mesmo tempo. E a fou-tchéou-road é o coração chinês de Xangai. A noite chega, e a rua inteira se ilumina e avermelha-se. Cada porta é uma boca mais ou menos estranha, mais ou menos sedutora, mais generosa de ópio. Entro ao acaso da minha fantasia, me estendo junto de uma lâmpada desocupada, e imediatamente um boy, — um mostardo de face enrugada e velha, — se aproxima e prepara o cachimbo. Eu não me canso de o contemplar.
Não importa onde, esse é sempre o mesmo ser silencioso e pronto que jamais sorri e jamais olha. No pequeno pote cheio do ópio viscoso, ele mergulha a agulha. Depois, sobre a chama da lâmpada ele cozinha a gota perolada. A gota se infla, amarelada e gomosa. Ele a amassa e a achata contra o fornilho do cachimbo; ele a rola, a estira, a amacia, e finalmente a gruda com uma pressão brusca ao centro do fornilho, contra o orifício delgado do tubo. E eu, eu não tenho mais que sugar, de um longo fôlego, a fumaça insulsa e teimosa, enquanto que ele mantém sobre a chama a pílula negra que enruga, diminui e se evapora.
O primeiro cachimbo me aterra e me esmaga. Eu me estendo sobre o dorso, incapaz de um bater de cílios. E isso dura um, dois, três minutos. O boy, paciente, me oferece a segunda dose negra. Mas eu continuo a saborear minuciosamente o princípio de minha embriaguês, eu saboreio com gulodice os turbilhões enlouquecidos do meu cérebro que ainda não sabe suportar com frieza o primeiro ataque da poção divina. E é somente quando se dissipa essa voluptuosa vertigem, que eu ergo a nuca, e já tenho em meus lábios a segunda dose.
Ao redor há outros fumantes. Eu mal os vejo, pois parece que a fumaria esta quase às escuras, mas sei que todos nós estamos deitados sobre as esteiras marrons. Mal, ainda, vejo luzir as lâmpadas entre a fumaça negra, e ouço o crepitar harmonioso dos cachimbos, e sinto seu odor indescritível. Sei também que outras inteligências vizinhas se aprofundam simultaneamente nessa embriagues, e isso me enche a alma de satisfação fraternal e de afetuosa confiança. O ópio, realmente, é uma pátria, uma religião, um laço forte e cioso que estreita os homens. Eu me sinto mais irmão dos asiáticos que fumam na fou-tchéou-road que dos franceses inferiores que vegetam em Paris, onde nasci.
Antigamente, eu tinha esses asiáticos separados de minha raça por um abismo. E de fato, que precipício insondável entre nós? Nós somos as crianças e eles os anciões. O menino que pula corda é muito diferente do centenário que se precipita para a sua tumba escavada. Mas hoje eu sei que o ópio pode maravilhosamente cobrir esse precipício. O ópio é o mago das transformações e das metamorfoses. Os europeus, o asiático, são semelhantes, — nivelados — frente seu sortilégio todo-poderoso. Raças, fisiologias, psicologias, tudo se desfaz; e outros seres vêm ao mundo, incomuns e novos, — os fumadores, que mais propriamente, cessaram de serem homens.
É isso mesmo. Cada noite na fou-tchéou-road, eu despojo minha humanidade grosseira, e me liberto, a jogo na rua como a um farrapo. Eu, e todos os outros fumadores como eu. Desde então, com nossos cérebros renovados, filhos do ópio, somos irmãos entre nós, que se compreendem imediatamente, se apreciam e se ligam nessa amizade. Maravilhosamente, a embriagues é muito breve, e de manhã, quando dolorosamente, eu volto a minha casa e ao meu leito, e abdico essa minha superioridade, e reendosso o andrajo humano, os homens amarelos da outra raça tornam a ser para mim, indecifráveis e fechados.
Não importa. Entre esses homens, a embriagues me há dado amigos.
Muitas noites, um adolescente de olhos agudos se estendia junto a mim, na mais dourada das fumarias de fou-tchéou-road, — uma fumaria de teto muito baixo, toda guarnecida de esculturas bizarras cuidadosamente vestidas de ouro polido. — Um rapaz, num robe de seda malva e cujos dedos magros despelotavam o ópio com uma destreza maravilhosa. Ele se chamava Tcheng-Ta. Seu pai é um negociante rico e ele vive à sua maneira, ao gosto chinês, na arte e na opulência.
Tcheng-Ta me conduziu à sua fumaria, na sobreloja de uma das casas mais inextrincáveis de fou-tchéou-road. Entra-se por uma rua perpendicular bastante obscura; sobe-se em seguida dois andares, para depois descer um, — tudo isso entrecortado de corredores sinuosos e de pátios estreitos por onde se expõem somente coisas singulares… E bem ao fundo se acha a fumaria de Tcheng-Ta. Essa é uma peça bem simples, branca de cal, com muitas esteiras e almofadas por terra. Enquanto se fuma, a ama de Tcheng-Ta prepara o chá verde, ou canta se acompanhando de uma guitarra, melodias que se parecem a miados assaz doces.
Nós não fazemos curas entre nós, pois nossos pensamentos não são desses que se trocam facilmente como em um longo mal familiar; pois o ópio nos poupa as palavras ociosas. Nossos olhares se penetram, benevolentes. E eu sei, e ele sabe, que nós estamos agora em comunhão perfeita.
Outro dia, ele apanhou um olhar, rapidamente contido que eu havia deixado sobre Ot-Chen, sua amante. Ontem, ele me apresentou a Tcheng-Hoa, a irmã de Ot-Chen. Todas as duas são iguais, rosas e brancas como de porcelanas pintadas. Suas mãos âmbar são adoravelmente finas e seus pés vestidos em faixas, descansam em sapatos de cetim do tamanho de duas nozes.
Os cabelos são de ébano curiosamente esculpidos. Dos quais não se pode mais que vislumbrar, porque estão cacheados com perolas o mais estreitamente agarradas. Tcheng-Hoa e Ot-Chen não gostam do mundo que as cobriu de jóias. A cada braço, elas trazem dezesseis braceletes e em cada dedo, sete anéis. Somente para o amor é que elas consentem em despojar essa couraça preciosa, e então se oferecem nuas como as menininhas pobres; mas ao abraço desatado, elas se precipitam aos seus adornos antes mesmo de se preocuparem com suas roupas espalhadas.
Elas fumam o ópio junto a nós. Os dedos apanham o cachimbo com um bonito gesto afetado, e suas bocas são dois biquinhos sutis frente ao bambu que se umedece nos seus lábios. Elas vestem blusas de mangas  largas, em seda clara guarnecida de cetim, e por baixo, outra camisa sem mangas. Suas calças descem retas até o tornozelo e  são do mesmo tecido pesado e rijo, suntuoso; e todas as costuras se escondem sob bordados da mesma cor do tecido: — verde anil, malva pálido ou cinza prateado.
Quando o ópio me tem apanhado em suas garras e me arrebata ao vôo de suas asas, Ot-Chen e Tcheng-Hoa transformam-se por minha fantasia em duas princesas de lendas, e eu me delicio com esses sonhos antigos e maravilhosos. A fumaria de Tcheng-Ta é um palácio de mármore onde abrigo minha soberana indolência, e eu sei que ao redor se estende: não mais o tumulto da fou-tchéou-road, mas o silêncio temível das florestas históricas onde dormem os yamens imperiais. A fumaça dos cachimbos recaem num fino pó negro, e as paredes, as esteiras, o teto onde dança a enorme lanterna vermelha e amarela, — se encobrem, se esfumaçam, se matizam de cores antigas e misteriosas, se vestem de bronze, de ouro e de marfim, se enfeitam de porcelanas gigantes e se ensombressem de lacas seculares. As rainhas preferidas me oferecem o chá de Yunnam na taça imperial, a taça de jade verde. E muito propriamente, eu sou o Imperador, o Hoang-Ti, o muito-sacro. — Entretanto a memória me falta, e eis que eu não sou mais nada. Qual é esse século? Qual é essa dinastia, minha dinastia? E por que esses gritos inconvenientes penetram minhas muralhas de mármore? Será então que, sem me lembrar, eu transportei minha capital para uma cidade barulhenta? Quê preferirão meus sucessores — à Ho-Nam ou a Tchen-Tou-Fou?…
          Não, não! Tudo está calmo, tão calmo que seguramente eu havia sonhado até agora… E sobre o que eu não sei, também não sei em qual balanço invisível, o ópio irá me embalar agora, me embalar até a náusea…


This post first appeared on Fumaças De Ópio, please read the originial post: here

Share the post

Claude Farrére - Fumaças de Ópio - Fou-Tcheou-Road

×

Subscribe to Fumaças De Ópio

Get updates delivered right to your inbox!

Thank you for your subscription

×