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Tira de Mim?



Por Daniel da Silva



Nunca matei um homem. Era o que eu acreditava até esta manhã quando, de repente, esbarrei em um total estranho no beco perto de casa que eu usava de atalho para chegar à escola. Era alto, de pele parda e feições muito tristes, usava uma roupa menor que ele mesmo e andava descalço.


Desculpe! - falei e voltei a correr. Mamãe me mataria caso chegasse atrasado um minuto que fosse.

Em casa era muito exigida a pontualidade e o comprometimento. Papai vivia a criticar a forma como o presidente levava o país à ruína e eu, apenas me limitava aos dez anos que minhas pernas sustentavam. Durante o resto da tarde, após a aula, peguei-me rabiscando em um bloco de velhas folhas amareladas, sem muita certeza do que fazer. Aos poucos, como um lampejo, a imagem triste do estranho me veio ao papel e quanto mais eu olhava para ele, mais forte eu marcava seus traços, tentando talhar no papel seu rosto esboçado infantilmente até que ela caiu: uma gota de sangue do meu nariz avisava que eu havia me excedido e que meu coração gritava para parar.

Mamãe! - eu chamei, mas ela não vinha. Com o nariz apontando para o teto, segui do quarto para a cozinha, onde esperava encontrar minha mãe. A porta dos fundos estava entreaberta.

Tateando entre mesa, cadeiras e armário, cheguei até a porta e saí para o quintal. Procurei por minha mãe mas ela não estava, nem meu pai. Voltei para dentro da casa, mas aquele silêncio me atormentava. Fui até o banheiro. Tanta era a quietude, que eu podia ouvir o vento assobiando contra a parede, a água da torneira aberta que escorria com meu sangue ralo a baixo e o golpe ritmado que meu coração dava dentro da caixa. Resolvi tomar um banho bem quente, talvez me acalmasse. Uma a uma, as gotas me faziam esquecer. O som da água escorrendo enganava e, por engano, eu acreditaria que não havia nada lá fora com que se preocupar, que não havia medo ou solidão. Com isso, eu não ouvira o som de uma faca saindo da gaveta da cozinha, nem os passos na escada e nem ao menos a porta do banheiro, que costumava ranger desconcertantemente. 

Tira de mim? - sussurrou o Homem, já dentro do banheiro. Eu gritei e ninguém mais poderia me ouvir a não ser o estranho daquela manhã. A faca em sua mão apontando para o piso preludiava o que estava por vir e, lentamente, o Homem Triste rastejou seus pés em minha direção. Eu estava nu, molhado e acuado contra o azulejo da parede, até que ele me tocou o braço e eu congelei. Na hora eu quase vomitei de pânico. O homem triste me arrastou para fora do chuveiro e, se ajoelhando na minha frente, novamente sussurrou: "tira de mim?"

Então, estendeu o cabo da faca para mim. Era a primeira vez que pude ver seus olhos tão de perto. Eram negros, obscuros, como se sofresse há anos e sua alma tivesse sido torturada por uma força sobrenatural. Naquele momento, eu desatei a chorar, senti a tristeza daquele homem que poderia tirar minha vida. Eu estendi a mão em direção ao cabo da faca. Quando a toquei, sem soltá-la, com o outro braço, o homem triste me abraçara, enquanto a faca entrava contra o próprio peito.


- Tira de mim?



Hoje, tenho 29 anos de idade, nunca mais sorri nem chorei, na verdade não sinto mais. O meu psicólogo disse que estou reprimindo esta experiência e que isso me consumirá se não tirar esse peso. Eu já sabia, ele também, que apenas parando meu coração e matando minhas emoções eu poderia aprisionar aquilo que tirei do homem triste. Não sei o que é. Não me importa, morrerá comigo. Do fundo de minha mente, posso ouvi-lo chiar "tira de mim?", repetidas vezes, sem parar, até sumir no zumbido escuro e frio.


- Tira de mim?


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