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Sol poente

Poente. Campeche. Fevereiro de 2023.

Que bom que você gosta, ele Disse

já que talvez seja o último do tipo.

Não havia nada a dizer; 

na verdade, parecia o fim de alguma coisa.

Era um momento solene.

Ficamos um tempo em silêncio, olhando juntos para ele.


Lá fora o sol se punha, 

o tipo de simetria precisa 

que sempre registrei.


Se pelo menos eu soubesse, Ele Disse

o efeito das palavras.

Você está vendo como esta coisa ganhou peso e importância

desde que eu falei?


Eu podia ter feito isto há muito tempo, ele disse, 

em vez de gastar meu tempo começando uma e outra vez.


2.

Meu Professor tinha um pincel na mão 

mas depois eu também tinha um pincel na mão - 

os dois em pé juntos olhando para a tela

pelos cantos da qual 

brotava uma turbulenta escuridão; no centro, 

ostensivamente, o retrato de um cão.

O cão tinha uma certa qualidade forçada; 

agora eu percebia. Nunca 

fui muito boa com coisas vivas.

Com luminosidade e escuridão me viro bastante bem.

Eu era muito jovem. Diversas coisas haviam acontecido 

mas nada havia acontecido

uma e outra vez, o que faz uma diferença.

Meu professor, sem ter dito uma só palavra, começou a se virar 

para os outros alunos. Por mais que eu sentisse pena de mim

                                           [naquele momento,

sentia mais pena ainda do meu professor, que sempre usava

                                           [as mesmas roupas

e não tinha uma vida, pelo menos não uma vida aparente, 

só um sentimento agudo do que estava vivo na tela.

Com a mão livre, toquei seu ombro.

Por que, perguntei, o senhor não fez nenhum comentário

                                     
  [sobre a obra que está diante de nós?

Fui cego durante muitos anos, ele disse, embora tivesse um olho sutil e judicioso quando via, 

qualidades que, acredito, estão fartamente evidenciadas na

                                   [minha própria obra.

É por isso que dou tarefas a vocês, ele disse, 

e por isso sou tão rigoroso nas perguntas que faço.

Quanto a meu dilema atual: quando acho, ao ver o desespero 

e a raiva de um aluno, que ele se tornou um artista, 

nesse caso eu falo. Diga-me, continuou, 

O que você acha do seu próprio trabalho?


Está faltando noite, respondi. Na noite posso ver minha

                                          [própria alma.

É também o que penso, ele disse.

3.

Sou contra

a simetria, ele disse. Segurava com as duas mãos 

um pedaço desequilibrado de madeira que um dia 

já fora bem grande, como um galho de árvore:

isso foi antes da segunda vida que teve na água, 

depois da qual, embora houvesse menos dele 

em termos de massa, havia maior 

densidade espiritual. A madeira flutuante, 

ele disse, confirma meu ponto de vista - é por isso que ela

                                                    [parece

inerentemente dramática. Para sublinhar sua opinião, 

bateu na madeira. Com certa violência, parece, 

porque um pedaço quebrou.

Movimento!, ele exclamou. Aprendam! Olhem essas pinturas, 

ele disse, referindo-se às nossas. Eu trabalho com arte 

há mais tempo do que vocês respiram 

e mesmo assim minhas telas têm vida, se afogam 

em vida - Nesse ponto, calou-se.

Eu estava ao lado do meu trabalho, que agora parecia rígido

                                                [e sem vida.

Hora do intervalo, ele disse.


Saí da sala, por um momento, para o ar da noite.

Era uma noite fria. A cidade ficava numa praia,

perto do local onde antes estava a mata.

Senti que não tinha futuro nenhum.

Havia tentado e fracassado.

Havia tomado meus fracassos por triunfos.

A expressão fumaça e espelhos entrou na minha cabeça.

E de repente o professor estava do meu lado, 

fumando um cigarro. Fazia muitos anos que ele fumava, 

a pele dele era cheia de rugas.

Você estava certa, ele disse, no modo 

como instintivamente se recolheu.

Poucos fazem isso, como vai perceber.

O trabalho virá, disse. Os traços 

vão emergir do pincel. A essa altura fez uma pausa 

para fitar calmamente o mar no qual, agora, 

todos os planetas se refletiam. A madeira flutuante 

é pura cena, disse; distrai as crianças.

Mesmo assim, disse, é bem bonito, eu acho, 

como aquelas árvores deformadas que os chineses cultivam.

Bon-sai, é o nome. E me entregou 

o pedaço de madeira flutuante que havia quebrado.

Comece pequeno, disse. E deu um tapinha no meu ombro.

4

Procurem pensar, disse o professor, 

numa imagem da infância.

Colher, disse um garoto. Ah, disse o professor, 

isso não é uma imagem. É sim, 

disse o garoto. Veja, eu seguro a colher na mão 

e no lado convexo aparece um cômodo

só que distorcido, e é preciso mais tempo para ver o centro 

do que os dois lados. Sim, disse o professor, é o que acontece.

Mas no sentido mais amplo, não é: se você move a mão 

mesmo uns centímetros, já não é isso. Você não estava lá, disse

                                                  [o garoto.

Não sabe como arrumávamos a mesa.

É verdade, disse o professor. Não sei nada 

da sua infância. Mas se você adicionar sua mãe 

ao mobiliário distorcido, terá uma imagem.

Ela será boa, perguntou o garoto, uma imagem forte?

Muito forte, disse o professor.

Muito forte e plena de presságios.


Louise Glück 

. . .

Do livro "Receitas de inverno da comunidade", da ganhadora do Nobel da Literatura de 2020, Louise Glück. Ganhei de meu bem numa de suas vindas de Porto Alegre. Um livro que é uma preciosidade! Cada poema é como uma visita a um lugar quente e acolhedor, quando faz frio lá fora... e não nos sentimos sós... eu nunca tinha sentido isso ao ler poemas, uma sensação de fazer parte da humanidade e de lembrar de meu grupo: mãe, irmãs, professores, amigos,... de infância, juventude... De uma lindeza de jóia bruta: rústica, natural, brilhante... extremamente raro ler algo assim.




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