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Os tais caquinhos, de Natércia Pontes

Uma das coisas que contribuem para a falta de vontade de viver, para mim, é quando a minha Casa está desarrumada. Não sou a pessoa mais organizada, nem a mais limpinha, mas se eu deixo a casa chegar a um estado de quase abandono, meu humor só piora. A irritação aumenta conforme cresce a poeira em cima dos móveis. Limpar a casa acaba sendo, então, uma forma de terapia. Ver o chão limpo, as coisas no seu lugar, a louça lavada… Isso traz uma paz de espírito. Lendo Os tais caquinhos, de Natércia Pontes (Companhia das Letras), reafirmei isso para mim mesma: minha casa reflete meu (des)equilíbrio mental. 

Abigail é uma adolescente que vive numa casa que não seria a mais ideal para ela e sua irmã mais nova, Berta. No apartamento 402, caixas e mais caixas se empilham pelos corredores. Insetos são colegas de quarto. Falta comida na geladeira, mas sobram revistas velhas e sujeira. Ela descreve como, “do corredor, podíamos vislumbrar a montanha de livros, resmas, apostilas, potes de lápis sem ponta, canetas com tinta ressecada, furadores de papel, grampeadores, caixas de clipes abarrotadas de cartuchos enferrujados, caixas de sapatos repletas de objetos, compassos, réguas de diversos tamanhos e cores, tesouras preservadas em suas embalagens e uma fina camada de poeira e maresia cobrindo tudo de cinza”. 

O caos é reflexo da mente intranquila de Lúcio, Seu Pai, que após ser abandonado por Zuma acumula de tudo dentro do apartamento em Fortaleza. Dentro de si ele também acumula tristeza e depressão. Ele negligencia a casa e as filhas, mas não por ódio ou insensibilidade. Ele apenas não é capaz de lidar com tudo. Ele ama profundamente as meninas, mas de um jeito longe do saudável. Seus conselhos também não são os melhores: exalta a fome, chama a todo momento pela morte. Já que Zuma não está, de que vale o otimismo e o asseio? Numa realidade como essa, Abigail sonha com lençóis limpos, iogurtes na geladeira, roupas novas, cheiros que agradam, diferentes daquele que dão ânsia de vômito e são tão comuns no apartamento.

É na voz de Abigail que sabemos como a loucura de Lúcio rasteja pela casa e atinge a filha mais velha. Além do núcleo familiar e de algumas vizinhas que doam ovos para ela e a irmã comerem, a adolescente tem poucos amigos. Essa solidão e o caos do apartamento abrem um buraco dentro de si que ela precisa preencher com amor, amor esse que ela procura em colegas da escola ou homens mais velhos que encontra na rua. Como se um deles, um dia, pudesse salvá-la. 

“[…]ouvir continuamente, diante de qualquer tipo de frustração ou quebra de expectativa, seu pai urrar eu quero a morte! e perguntar a Deus com insistência e fúria por que a morte não me vem?, ouvir essa sequência de frases repetidas vezes até que se memorize o intervalo de tempo entre uma frase e outra e então se possa repetir junto com seu pai e declamar em uníssono cada sílaba dos bordões, eu que-ro a mor-te!, emudecendo a voz e fingindo ser um ventríloquo insolente, por que a mor-te não me vem?, não passa de uma cena banal que acontece nas melhores famílias e não provoca nenhum tipo de mágoa ou de dor.”

Essa falta de amor faz Abigail se colocar em situações de risco. Mas essas ameaças são pouco perto do abandono que sente. Nem na irmã ela consegue uma companhia, já que Berta tenta, da sua forma, escapar de casa ao ficar com amigas com vidas bem mais confortáveis. Abigail se apaixona, se decepciona, se apaixona novamente, é abandonada, é esquecida, mas não deixa de procurar por alguém que possa salvá-la e amá-la. Ela escreve cartas para os amantes, para o pai — algumas cartas dele também são inseridas na narrativa —, fantasia uma vida em um novo lugar, mas não longe do pai e da irmã. Eles sempre fazem parte dessas fantasias. 

Natércia Pontes é maravilhosa em descrever tudo o que acontece com Abigail, dentro e fora. Ela sente com intensidade, e ela relaciona tudo com os cheiros, os sons, que na maioria das vezes não são os melhores. É o cheiro de leite azedando, o barulho de patinhas de ratos e baratas que vivem no apartamento, o cheiro de bebida de quando o pai volta para casa. É um cenário bem miserável, onde parece impossível viver com tranquilidade. É como se a falta de vontade de viver do pai tivesse passado para o apartamento e, dele, para Abigail. Uma reação em cadeia que só teria fim com a recuperação de todos. Mas no fundo eles nunca desistem um dos outros. 

Os tais caquinhos foi uma leitura que me prendeu muito, das descrições desse lugar até às pequenas loucuras de Abigail e seu pai. E por mais que possa ser tudo nojento, sujo e fedido, lá no fundo está o amor do pai pelas filhas, das filhas pelo pai, e até aquela sensação de familiaridade e conforto em um lugar onde nada disso poderia sobreviver. Mas sobrevive.


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