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Meu ano de descanso e relaxamento, de Ottessa Moshfegh

Poucas coisas são tão desejadas pelo adulto moderno quanto horas ininterruptas do sono. Ao dormir, é como se todas as preocupações da vida evaporassem ao fechar dos olhos: trabalho, boletos, relacionamentos que deram errado, carreiras estagnadas. Um sono sem sonhos é o ápice do conforto e bem-estar. Queria eu dormir e acordar daqui a um ano, seja para ver as coisas melhorarem ou para ver o mundo pegar fogo. Mas pelo menos teria um ano inteiro de descanso extremo. Ou, como coloca a protagonista do segundo romance de Ottessa Moshfegh, um ano inteiro de descanso e relaxamento.

Meu ano de descanso e relaxamento (Todavia, tradução de Juliana Cunha) é um livro de apelo forte para qualquer pessoa que se sente cansada e esgotada com o mundo – não está fácil acompanhar as notícias e lidar com a vida privada ao mesmo tempo, tudo está ruim. Mas como a própria autora falou em uma entrevista, é fácil compreender esse desejo agora. As coisas não eram assim no momento em que o livro se passa.

A Narradora, uma jovem de vinte e poucos anos que vive em Nova York, bonita, desejada e invejada, decide que a única forma de sobreviver ao começo dos anos 2000 é passar por ele dormindo o máximo de tempo possível. Ela sabe de seus privilégios, sabe de seus traumas, e quer usar o conforto físico e monetário que tem para buscar o conforto mental que lhe falta.

“[…] No fundo do coração – talvez essa fosse a única coisa que meu coração sabia naquela época – que assim que eu tivesse dormido o suficiente ficaria bem. Eu me renovaria, renasceria. Seria uma pessoa totalmente nova, cada uma das minhas células se regeneraria a tal ponto que as antigas pareceriam memórias distantes encobertas pela névoa. Minha vida passada seria apenas um sonho, eu poderia começar de novo sem arrependimentos, amparada pela felicidade e pela serenidade que teria acumulado em Meu Ano de descanso e relaxamento.”

A narradora – nunca nomeada – é tem formação em arte pela Universidade de Columbia, ficou órfã durante a faculdade e ganhou uma boa soma de herança, o que lhe permite arquitetar e pôr em ação seu plano de hibernação. Por isso digo que ela sabe de seus privilégios. Se fosse sobre uma pessoa sem dinheiro, o protagonista ou morreria logo ou desistiria rápido do plano. Mas ela não. Quando toma a decisão de dormir 20, 22 horas por dia, a narradora já tem pouco contato com o mundo externo. Só sai de casa para pegar café numa lanchonete próxima do prédio onde mora. Passa os dias vendo velhos filmes de Whoopi Goldberg em VHS. Só recebe visitas esporádicas e não solicitadas da melhor amiga, Reva, que a inveja e julga o tempo inteiro. E, para botar a experiência em prática, só sai para visitar a psiquiatra duvidosa que lhe receita os remédios que vão derrubar ela na cama.

Seria a narradora uma garota mimada que não soube lidar com o mundo e preferiu se fechar em um casulo? Não, Ottessa Moshfegh consegue deixar bem claro que a protagonista não está fazendo uma tempestade em copo d’água. A começar com a relação conturbada com os pais. A mãe era uma espécie de socialite que vivia bêbada. O pai, um professor universitário que pouca atenção dava para a família.

Da infância até o início da vida adulta ela conviveu com a ausência do carinho familiar, com poucos momentos de afeto ou suporte por parte dos pais. O pai morreu de câncer, a mãe se foi logo depois por conta de uma mistura de remédios e álcool. Sobrou ela, sozinha, para tocar a vida que sempre foi solitária: “não havia nada que eles pudessem me dar se estivessem vivos”, escreve. “Não eram meus amigos. Não me confortavam nem davam bons conselhos. Não eram pessoas com as quais eu quisesse conversar. Elas mal me conheciam.” E isso não diz respeito apenas aos seus pais.

Os relacionamentos da narradora também se baseavam em dinâmicas pouco afetivas. Trevor, seu caso mais duradouro, é um homem mais velho que pouco liga para ela – o clássico que só reaparece quando está carente. As tentativas de afastamento de Trevor nunca funcionaram, e dormir também era uma forma de evitar tentar entrar em contato com ele. Ela atingiu o limite da humilhação.

A dra. Tuttle, sua psiquiatra – encontrada aleatoriamente na lista telefônica e única que retornou prontamente sua ligação – é uma das melhores personagens do livro. É o típico caso da pessoa maluquinha, que mistura ciência com pseudociência, que esquece de qualquer detalhe sobre a vida do paciente (a narradora tem que lembrá-la a cada consulta de que é órfã), que indica remédios e tratamentos com o poder da… intuição, vamos assim dizer. Ela acredita que a narradora não consegue dormir, e por isso lhe receita qualquer coisa que possa ajudá-la a cair no sono. Entre os remédios está o Infermiterol, um medicamento fictício que leva a narradora a sair de seu mundo fechado enquanto está dormindo. Um apagamento da mente, mas não do corpo, que a faz acordar com uma miríade de roupas novas e fotos polaroid de festas que ela nem se lembra de ter ido.

A relação da protagonista com Reva também é fundamental na narrativa. É mais uma prova de que ela nunca teve uma interação social saudável com o mundo. Não que Reva seja uma má pessoa, mas é uma mistura de admiração, desprezo, amizade e inveja que conecta as duas. A narradora sente pena e asco das tentativas da amiga de parecer chique, pertencente ao mundo dos ricos onde quer viver. Ela quer ser magra e esbelta, elegante, e na visão da protagonista, é justamente tentar demais ser essa pessoa que afasta Reva de seu objetivo, a torna nada autêntica. Mas há momentos de apoio, há preocupação de uma com a outra – o velório da mãe de Reva, que milagrosamente contou com a presença da protagonista, evidencia bem a complexidade dessa amizade.

“Eu ficava irritada e ao mesmo tempo aliviada quando Reva aparecia, como a gente fica quando alguém chega bem na hora que estamos nos suicidando. Não que eu tivesse me suicidando. Na verdade era o oposto de um suicídio. Minha hibernação era uma medida de autopreservação. Eu achava que aquilo salvaria minha vida.”

Autenticidade é algo que a protagonista anseia, mas não encontra. O mundo artístico que a rodeia, com as galerias, merchants e promessas das artes plásticas a entedia profundamente. Nada é capaz de empolgar ou surpreender ela. Os dias de tédio – e sono – trabalhando em uma galeria de arte também são combustível para a sua falta de ânimo com tudo. Desprezo é a palavra que melhor descreve sua primeira e até então única experiência como uma funcionária. Essa pretensão desesperada que ela enxerga em Reva se reflete em todo o ambiente em que circula, contribui com sua falta de necessidade de interagir com o mundo. Curiosamente, um dos artistas de que mais debochava em silêncio é quem acaba ajudando na sua jornada pelo sono.

Começando com a infância sem suporte e apoio dos pais, passando pela amizade ora interesseira, ora honesta com Reva, até os relacionamentos vazios e nada recíprocos, não é difícil perceber que a protagonista de Meu ano de descanso e relaxamento está em evidente colapso. Um colapso que, logo mais, vai atingir todo o país – o 11 de setembro. É como se todos estivessem dormindo, anestesiados, se sentindo seguros em suas camas confortáveis. Há pelo menos cinco anos podemos dizer que todos nos sentíamos assim. O sono para a narradora é uma “medida de autopreservação”, ela diz, uma solução passageira para seus problemas, empurrando-os para debaixo do tapete ao invés de enfrentá-los. Eu não sou a pessoa que vai contestar essa medida – se eu pudesse, eu faria o mesmo agora. Dormir para sobreviver à própria mente.

Gostei muito da forma com que Ottessa Moshfegh conseguiu tornar a história de uma personagem que tinha tudo para ser desprezível – riquinha, esnobe – em uma experiência gostável. A narradora tem a configuração padrão de quem vive numa sociedade vazia e mesquinha, e despreza isso ao mesmo tempo em que aproveita de seus privilégios. A vida é feita de contradições. Nós podemos ficar entretidos e maravilhados com personagens que são, na teoria, asquerosos. Toda a experiência de leitura de Meu ano de descanso e relaxamento é bem satisfatória. E fica aquela inveja de não poder pôr esse plano em prática – mas melhor mesmo é procurar um psicólogo (não a dra. Tuttle).


Ficou afim de ler? Encontre aqui Meu ano de descanso e relaxamento, de Ottessa Moshfegh.

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