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A vegetariana, de Han Kang

Não há explicação para a perturbação que aflige Yeonghye. Depois de ter um sonho cheio de sangue e morte, essa pacata sul-coreana decide parar de comer carne. Ela sempre foi boa cozinheira e nunca antes demonstrou sinais de que gostaria de ser vegetariana. Sua transição para uma vida sem carne não foi gradual, não foi planejada. O sonho que tanto a perturbou a fez tomar essa decisão brusca, e no dia seguinte já aboliu qualquer alimento de origem animal da sua dieta. Mas a decisão de Yeonghye não a afetou apenas individualmente. Toda a sua família sentiu os efeitos de sua nova vida vegetariana.  

A vegetariana, de Han Kang (Todavia, tradução de Jae Hyung Woo) foi o vencedor do Man Booker International Prize de 2016. Han Kang é sul-coreana, nascida em 1970, e foi este romance que a tornou conhecida no mundo todo. Dividido em três partes, o romance não é narrado pelo ponto de vista de Yeonghye – com exceção da descrição de seus sonhos. O livro começa com o relato de seu marido, primeira pessoa diretamente atingida pelo vegetarianismo da protagonista. Para ele, Yeonghye era a garantia de uma vida normal: uma mulher comum, nem feia nem bonita, sem muitos talentos e sem se destacar em qualquer coisa – uma mulher simples que não faz com que ele se sinta inferior.  

Ler as palavras do marido é perceber o quanto ele é um homem medíocre. Por também não se considerar nem bonito nem feio, nem burro nem inteligente, ele confessa que sempre se sentiu desconfortável perto de pessoas bonitas e inteligentes, principalmente mulheres. O clássico homem que pensa ter o direito de ser sempre superior ao sexo feminino. Yeonghye é a garantia de uma vida confortável, pois não apresenta nada de especial em sua personalidade, uma mulher tão insossa quanto o seu marido. Mas a partir do momento em que decide parar de comer carne, ela se transforma em um ser fora do comum – e qualquer coisa fora do comum é uma ameaça à vida sem graça de seu marido. Ela se torna especial.  

O marido tenta de todas as formas tentar controlar a esposa e fazê-la voltar “ao normal”. Mas a repulsa que Yeonghye sente por carne a afasta ainda mais do que ele considera ser normal. Logo ela se sente fraca e cansada, e os pedidos dele para que ela coma pelo menos um pouco ganham respostas perturbadoras da esposa: ela já nem tolera a sua presença porque ele mesmo cheira a carne. E aos poucos ela adquire comportamentos que ele considera indecentes, como não usar sutiã ou ficar a maior parte do tempo nua pela casa, sem motivo aparente. Então, conforme seu comportamento se torna mais absurdo aos olhos do marido – e conforme ele vê perder totalmente o controle sobre ela –, só resta apelar para a sua família.  

Yeonghye tem uma irmã mais velha, casada com um artista visual, e outro irmão também casado. Seus pais são igualmente comuns e tradicionais coreanos que prezam pela normalidade. O estado da filha é diferente de tudo o que esperavam para ela, mas suas súplicas para que volte ao normal não surtem efeito algum. As respostas de Yeonghye são calmas, decididas, num tom definitivo que mostra o quanto ela se desligou de tudo o que eles consideram correto. Em uma reunião de família em que o foco é tentar fazê-la comer, as coisas escalam para a violência, e um ato de Yeonghye mostra a todos o quanto ela não é mais a mesma. O quanto sua repulsa por carne é real.  

A segunda parte de A vegetariana é narrada pelo marido de sua irmã mais velha, o artista. Ele certamente não é o genro preferido de seus sogros – não é ele quem provê para a casa, mas sim sua esposa, já que a arte não é rentável. Ele é o que está menos próximo do conceito de família tradicional coreana, e a estranheza do comportamento de Yeonghye acaba se transformando em uma obsessão para ele. Obsessão que surge por causa de uma mancha de nascença que sua esposa diz que a irmã possui, e que nunca saiu de seu corpo. Apesar de toda a magreza de Yeonghye pela alimentação defasada – cada vez ela come menos e menos –, ele acaba desenvolvendo uma atração física pela cunhada tão difícil de controlar quanto a repulsa dela por carne.  

Conforme abandona a alimentação, Yeonghye também vai abandonando comportamentos padrões de uma vida em sociedade. A nudez em sua casa é constante, ela pouco se importa de ser vista pelos outros como veio ao mundo. Seu cunhado, enquanto isso, alimenta a fantasia de pintar o corpo de Yeonghye inteiramente com flores e folhagens, e fazer disso uma obra de arte visual que culminaria no sexo. A ideia cresce tanto em sua mente que a única forma de tirá-la da cabeça é colocá-la em prática. Já distante do marido e de  sua família, Yeonghye acaba aceitando o convite do cunhado de participar deste projeto. Cada vez mais ela se desconecta do mundo externo e se volta para suas próprias obsessões – o nojo da carne, a alimentação cada vez mais escassa, uma ligação forte com plantas e vegetais.  

A terceira parte, por sua vez, é contada pela sua irmã mais velha, a última pessoa de sua família que se importa e tenta cuidar de Yeonghye conforme seu estado mental fica mais crítico. A irmã mais nova já não se se comunica com o mundo, já não é capaz de pertencer a ele. Apesar de toda a dor e sofrimento que sua condição causou em seu próprio casamento, ela é incapaz de abandonar a irmã. Neste trecho do livro, Yeonghye está internada em uma clínica psiquiátrica e sua irmã está indo visitá-la. Ela age de forma cada vez mais estranha, está recusando qualquer tipo de alimento agora – animal ou vegetal – e diz possuir uma conexão profunda com as plantas e a terra. Não parece haver cura para essa doença misteriosa que atacou Yeonghye.

É incrível como A vegetariana guarda tantas perturbações em uma narrativa tão curta. Han Kang é bem direta em sua escrita, as descrições dos acontecimentos passam rapidamente, mas ainda assim possuem a profundidade necessária para que você se sinta conectado às personagens e atingido pelos seus dramas.  

Há também a questão entre o próprio lugar da mulher na sociedade. A Coreia do Sul – apesar de toda a sua modernidade – é ainda uma sociedade machista. Os homens ainda consideram que eles têm domínio sobre as mulheres, que devem ser obedientes e recatadas. O que Yeonghye promove com sua decisão de ser vegetariana é romper totalmente com isso. Como seu marido diz logo no início, de esposa normal e sem atributos que ele tanto procurou, ela se torna “especial”, diferente e desobediente. Não é tanto a falta de forças para ajudar a esposa que o faz se afastar dela, mas sim a mudança brusca de comportamento que a torna incontrolável – ele perde qualquer tipo de poder sobre ela, e assim ela não é mais desejável.  

O cunhado, por sua vez, possui uma relação diferente com as mulheres. Ele não é possessivo e não se sente inferior com o sucesso de sua esposa nos negócios – mas isso não significa também que ele seja um homem “esclarecido” livre dos padrões machistas. Mas a quebra da relação da cunhada com o comportamento tradicional a torna atraente porque a própria arte, para ele, é uma quebra de paradigmas. Yeonghye é uma obra de arte bela e viciante. Não admira que, após todas as tragédias que recaem sobre a família, o último contato que Yeonghye tem com o mundo real seja através de uma outra mulher, a sua irmã. Não que ela entenda os motivos de Yeonghye ter se tornado o que se tornou, não que ela não se sinta triste e impotente ao ver que não consegue recuperar a irmã a seu estado normal, mas porque ela entende que, em momentos difíceis, as mulheres não se abandonam. Não importa o quão doloroso seja ver Yeonghye enfraquecida e louca, ela ainda faz parte de sua história.  

A vegetariana é um livro sobre controle, desejo, violência e tabus, e por mais que o fim de Yeonghye seja trágico, não acabamos tomados pela melancolia e pela tristeza, mas sim por certo alívio. Alívio porque a protagonista conseguiu ser livre, porque nenhum homem conseguiu ter controle sobre o seu corpo e sua vida. Porque ela tomou uma decisão e, até o fim, foi fiel a ela apesar de todas as pressões. 


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