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UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Amigos de infância
                                                      
No meio da praça a folha de jornal acenava com manchetes improfícuas. A distância, o casario pobre; na esquina, o bar imundo.
− Nome?
A mesa fora limpa com toalha encardida.
− Raimundo.
− Nome completo, seu RAIMUNDO-UNDo-UNdo-Undo-undo.
− Como é?
Ao lado, Afrânio interpreta.
− Ele precisa do teu nome completo, Raimundo. A ficha vai pro banco.
− Banco?!
− Lógico. O banco precisa aprovar a ficha do avalista também.
− Ahn...
Quando eles chegaram, não havia tanto movimento no bar. Fim de tarde quente, o olhar vago de Raimundo à deriva na densa espuma da cerveja. Sol a um palmo da geometria irregular do horizonte. O bairro começava a inundar-se em fim de expediente. Quando eles chegaram, chegou junto o vento, e a folha rota de jornal abraçada a
um tronco raquítico de manacá abanava um gesto inútil. O vento sibilava rasteiro no saibro da praça.
− Dando entrada nas fichas amanhã, o moço aqui disse que antes do Natal o carro está na minha mão.
Talvez até chovesse. Dos lados de Santo Amaro, subiam algumas nuvens escuras onde um relâmpago mergulhou silenciosamente.
− Veja se eu não sou um perfeito idiota. Passamos o dia inteiro, debaixo deste sol, correndo atrás de um avalista. E só agora que eu me lembrei de você.
Rua, bairro, cidade. Quanto tempo? Os números: provas de existência, fixação, contribuição, consumo, produção.
− Profissão?
Um esgar abismado, um pigarro.
− Um servicinho aqui, outro ali, a gente se vira, não é? Então quando aparece casa pra levantar, eu trabalho de pedreiro.
Caneta singrando pelas linhas pontilhadas do papel.
− Salário?
Procurava socorro nos olhos do amigo. Dissera mais, muito mais do que estava habituado a dizer. Dissera mais, provavelmente, do que supunha saber. Já não atinava com o falso e o verdadeiro de sua vida, nem sabia até que ponto estava comprometido.
− Bem, ele não tem salário, propriamente dito. Trabalha por conta própria...
Com gesto impaciente o vendedor desgrudou a camisa das costas. Não tinha mais fim, aquele dia? Em meia hora a gente arranja algum. Uma voltinha por aí. Muitos amigos por esta cidade a fora. Meia hora!
− Tudo bem, mas vocês não acham que alguma coisa eu preciso escrever aqui?
Enquanto discutiam entre si, Raimundo sorvia a trégua aliviado.
− Se ele tivesse salário fixo, aí sim.
− Não, não precisa de um fixo. A gente pode botar a média que ele tira por mês.
Afrânio sorriu satisfeito com a engenhosidade do vendedor. Sozinho não conseguiria vencer tantos obstáculos, e via a todo instante o carro fugindo e voltando. Foi até o balcão, pediu mais uma cerveja.
− Nem sei direito. Um mês vai bem, outro vai mal. Agora já pro fim, o serviço anda mas é muito fracassado.
O vendedor esvaziou o copo de uma só vez. Quase instantaneamente o suor escorreu-lhe testa a baixo. Um dos jogadores de dominó, que assistiam interessados ao interrogatório enquanto esperavam pela mesa, tentou ajudar. Afrânio pediu silêncio.
Quantos filhos, quantos pais, quanto dinheiro. Quantos quantos! Atônitas e a custo, emergiam as revelações. Não fossem amigos desde a infância – mesma cidade, mesma escola, mesmos domingos na matiné, mesmo banho pelados no açude da cerâmica, mesma viagem para tentar a vida – não teria consentido em tal assunto.
− Cônjuge?
− É, eu preciso dos dados da sua esposa.
− Da minha mulher?
− Sim.
− Mas a Irene também?
O olhar de Raimundo encolheu-se fulgurando uma resolução.
− Escute, Afrânio...
− Nome?
Raimundo levantou-se ofegando. Sem coragem, não encarava ninguém.
− Desculpe, hem, Afrânio.
− O nome-OME-OMe-ome.
Os telhados distantes acabavam de esconder o Sol. Um pouco para a esquerda, as nuvens continuavam agrupando-se desordenadas.
No lado oposto da praça, Afrânio parou o carro cortando o caminho de Raimundo.
− Me desculpe, Afrânio, mas eu não posso. A Irene não ia concordar. Uma vez eu já paguei...
− Veja se não fala mais comigo, seu cafajeste. Amigo bebum não me serve, fica sabendo.
  − Mas Afrânio...
− Cafajeste!
A folha de jornal desprendeu-se do tronco e foi arrojada para rumo incerto.


  
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