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Primeira visão de um exilado no inferno

Tags: meus

  

   O cenário desértico e vermelho traz a mim uma sensação de solidão e medo. A falta de sons conhecidos, de vozes distinguíveis, lembra-me de meu exílio. O contínuo ruído de bolas de magma estourando sobre os turvos rios ferventes remete-me minha nova morada: O primeiro degrau do submundo. Olho para cima e vejo as três luas pálidas e brilhantes que tornam a sensação de luz e calor estranha. Minha pele está queimada e minha língua rachada pela falta de água. O gosto de meu próprio sangue tornou-se rotineiro para minhas papilas gustativas. Estou tão fraco quanto um ser humano.

   Sentei-me para vislumbrar o horizonte mais uma vez. Há três horas, apenas três horas, estou deitado nesse solo de poeira púrpura. Não sei o que farei a seguir. Não sei para onde irei. Não sei se farei algo realmente. Estranho principalmente a falta da ausência de necessidades. A fome me machuca, a sede parece uma maldição, o calor incomoda-me como jamais fizera e a gravidade, pela primeira vez, pesa sobre Meus ombros.

   Abro a boca seca com lentidão. Sinto todas as fibras se locomovendo e os ossos da mandíbula se alinhando perfeitamente. Insuportável perfeição. Sem opção, levanto-me com cuidado e paciência. Meus ossos estralam e as costas reclamam por ter sido apoiadas tanto tempo em um solo tão quente e mal formado. Pego do bolso um artefato dourado e pontiagudo que assemelhava-se a uma pena. Ornado com uma joia vermelha desbotada, cravada em seu meio.

   Ao meu redor, altas paredes de pedra erguem-se sem propósito, formadas por centenas de blocos menores da mesma pedra vermelha empoeirada. No solo, rios de puro magma seguem distantes de mim. Em meu estado atual não aguentaria mais do que cinco minutos ao lado de um. Meus pés mal protegidos latejam enquanto minha pele angelical enegreci e endurece. Dou o primeiro passo e todo meu peso chocasse contra o chão derramando a primeira gota de sangue de meus lábios. Estou esbaforido. Urro com a força que tenho em sinal de desgosto pela vida. Minha garganta arde com o som. Grito mais uma vez aos céus esperando ofender meu criador. Ele que ousou criar-me perfeito e jogar-me nessa perdição, no exílio de minha mente. Nada volta em forma de palavras ou sons, mas a dor que sinto e minha voz rouca parecem ser uma maldição divina.

   Caio novamente, desta vez de cócoras. Levanto meus olhos, mas não ouso abri-los. Minha respiração parece diminuir gradativamente. Em algum momento espero que pare definitivamente. Nunca pensei na morte como real, ela foi criada apenas para mortais. O silêncio decidiu-me fazer companhia. Nem um único som incomodou-me durante aqueles poucos três segundos. Até que um grito estridente chamou-me a atenção. Abri os olhos assustado e esquivei-me por instinto para o lado contrário. Uma espécie camaleão de menos de vinte centímetros de comprimento, de pele branca, maleável e com duas asas presas às costas tentara me atacar. Não me acertou e acabou por lamber a poeira do solo. Minha respiração resolveu fazer o caminho inverso e aumentou sua frequência. O pequeno animal balançou a cabeça com suas asas fechadas junto ao corpo. Virou-se para mim e olhou de forma não agressiva com seus olhos descoordenados. Analisava-me. Procurava ameaças, sinais de que eu poderia mata-lo. Não encontrou nada.

   Aproximou-se de mim com cuidado. Deu alguns poucos passos, observou-me mais uma vez e então chegou perto o suficiente para notar que eu não oferecia-lhe realmente nenhum perigo. Minha respiração começou a se normalizar e então o lagartinho alado montou em minha perna, usando o trapo de minha calça como escada. Eu o observava procurando qualquer sinal de ameaça, mas parecia que só buscava companhia. Era um ser solitário, negado pelas raças. Uma presa fácil para qualquer predador com o mínimo de visão. Assim como eu naquele momento.

   Ele olhou-me de forma ansiosa, esperava que eu acariciasse-o. Estendi minha mão com cuidado e ele se encolheu de leve. Seus olhos verdes e dracônicos não me intimidaram. Nem sua língua cortada que entrava da boca e saia com velocidade. Passei meus dedos secos, ossudos e perversamente perfeitos sobre sua cabeça. Seus grandes olhos foram escondidos pelas pupilas e um som terno saiu de seus lábios banguelas. Abri um breve sorriso e senti meus lábios secos e o gosto de meu sangue mais uma vez. Afaguei a criaturinha mais algumas vezes até que subiu ainda mais em meu corpo, ficando sob meu colo. Quando deitara sobre minha bacia estava tranquilo. Ele descansava de mais um dia solitário, assim como eu desfrutava de meu primeiro.

   Segurei-lhe no tórax, impedindo que abrisse as asas. A força que empreguei incomodou o lagartinho que começou a se debater e reclamar. Conforme eu aumentava a pressão ele urrava mais forte e tentava me morder. Levantei-o e olhei em seus olhos desesperados. Sua boca estava aberta e clamava por liberdade. Gritei junto dele em uma só voz e então abocanhei-o, arrancando-lhe a cabeça em um só golpe de meus afiados e perfeitos dentes. O silêncio voltou a reinar por mais três segundos de um perfeito nada. Abri a boca e deixei a cabeça escamosa cair manchando-me com o sangue púrpuro da criaturinha. A cor branca de sua pele impregnou-se de um vermelho-ódio. Lágrimas e o desespero surgiram em minha face e urrei mais uma vez enquanto derramava o sangue e as entranhas daquele inocente ser dentro de minha garganta, saciando minha sede e minha fome primitivas.

   A aparência vampírica rondou meus lábios cobertos do sangue ainda quente daquele animal incomum. Continuei mordendo sua carne dura e repleta de ossos finos e pontiagudos. Os músculos não estavam completamente crus. Além do calor do próprio animal, o clima ao meu redor cozia o alimento pútrido enquanto eu o devorava. Os espasmos das fibras davam-me nojo, parecia estar alimentando-me de algo ainda vivo. As asas quase foram as últimas. Comi a pele fina e gelatinosa com pressa e de olhos fechados. O gosto era ácido e o cheiro devia ser horrível, mas tranquei minha respiração por todo o ritual. Quando apenas os ossos sobraram atirei a carcaça para longe e virei o rosto.

   Puxei a pena dourada de meu bolso manchando-a. Olhei meu reflexo no metal perfeitamente brilhante. Meus cabelos loiros estavam contaminados pelo escarlate escuro. Os olhos azuis adornados por pingos e manchas da mesma cor. Meu semblante não era de arrependimento e sim de ódio. Minha garganta parara de doer, minhas papilas festejavam a chegada de um novo sabor e a joia vermelha continuava acesa no artefato reflexivo. Limpei-o como pude com minha roupa, apesar de estar quase tomada pelo sangue. Levantei-me apoiando a mão no joelho. Fiquei de pé e senti mais firmeza em minhas pernas. Respirei fundo e soltei o ar com uma lentidão incomodativa. Meus olhos cor de céu viam a mesma paisagem de antes. Paredes vermelhas, mas borrões ao longe chamaram minha atenção e me deram esperança e medo. Vi silhuetas de corpos altos escondidos pela névoa. Dei meu primeiro passo sem perder completamente o equilíbrio e em meu rosto depressivo nasceu um sorriso confiante. Continuei andando esperando encontrar aliados ou mais comida no horizonte denso de nuvens terrenas.

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