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As bestas que nos cercam.

A cada retorno que me aproximo sinto meu corpo inclinar-se em sua direção. Quero voltar, esquecer a epifania que tive na beira do precipício e tocar minha vida. Mas é fácil pensar assim quando a Lua cheia está distante, quando me sinto humano o suficiente para tomar atitudes covardes.
“Quem segue pela Rodovia Federal S-346 pode encarar congestionamento na entrada de Carpadinha”.
O locutor da estação de notícias parece sempre tão alegre. Isso me irrita. São oito horas da manhã. Como ele pode estar tão animado?
Não vou pra Carpadinha, mas acabo de me lembrar que as pessoas comemoram o fim do outono nessas cidades do sul. Por que? Dizem que essas cidades têm um “certo glamour”, um “charme”, essas idiotices… Desculpa pra servir comida cara.
“É, parece que o festival de inverno esse ano…” Desligo o rádio antes que a alegria entorpecente do narrador me enlouqueça.
Na caçamba da caminhonete tenho quilos de enlatados, conservas, água e carne seca. Sinto vontade de voltar no tempo e falar pra mim mesmo quando criança que um dia eu poderia passar semanas comendo só as porcarias que eu gosto, mas não é como se eu tivesse uma escolha. Pra lá das Montanhas do Pecado não existe comércio e não quero me ver obrigado a plantar e caçar na neve. Essa ideia romântica que as pessoas têm sobre caçar… Se soubessem o trabalho que dá não diriam “se tivesse que caçar pra sobreviver eu caçaria” como se fosse uma escolha do tipo “só tem desse então vai desse mesmo”. Voltar com fome e de mãos abanando para a cabana é algo que tive que aprender a lidar mesmo sob a pele dele.
Finalmente avisto um posto na beira da estrada e meu estômago reage com um profundo ronco de fome. Talvez seja o último posto do caminho, pelo menos até onde me lembro. Ainda longe noto que o estacionamento da loja de conveniência está cheio. E pensar que antigamente por aqui só chegavam caminhões.
Na entrada do estacionamento uma moça vestida de esquilo me entrega um panfleto, o cardápio do… “Restaurante?” Minha mente se mantém relutante. Desde quando restaurantes de beira de estrada recebem tantos turistas?
A fumacenta caminhonete branca se esgueira dentre o mar de carros de segunda mão enquanto procuro uma vaga. São carros de adolescentes no fim do colegial ou começo da faculdade, provavelmente casais de namorados que vieram comemorar a chegada do inverno. Um pequeno trailer sai e logo entro na vaga vazia.
Observo meus olhos no retrovisor com olheiras grandes como as de um morto vivo, pego a carteira no porta luvas e abro a porta. Não é nem o começo da viagem, mas já estou na bendita da estrada a mais de três horas, tempo que eu passei me odiando por ter concebido uma ideia tão brilhante quanto viajar pro sul em pleno festival do inverno. Me espreguiço sentindo cada centímetro do corpo estralar e fecho a porta da caminhonete.
O restaurante cresce a cada passo que dou em sua direção, então um pensamento me arremete : Não é só a época do ano, é o desenvolvimento, o “progresso” chegou por essas bandas e por isso o lugar é tão grande. Temo que as Montanhas do Pecado não sejam mais tão distantes de tudo como imaginava.
Entro pela porta de vidro e noto que estão servindo apenas café da manhã. O cheiro de café me faz brotar um desajeitado sorriso e assim desajeitado vou até o balcão. O lugar está cheio.
Casais tão jovens. Rostos lisos, sorrisos fáceis. Adolescentes falam alto, não respeitam porra nenhuma, mas quando formam casais tentam de toda forma parecer imaculadamente perfeitos, seja lá qual for a definição de “perfeito” deles.
Costumava achar que o povo pra esses lados de Carpadinha era caipira, mas em meio a tantos jovens turistas percebo que o caipira aqui sou eu. Eu poderia pelo menos não vestir xadrez, mas a caminhonete branca, o jeans e as botas não eram clichê o suficiente.
Me sento ao balcão, sem alimentar ilusões de ser atendido. Pra falar a verdade esse desprendimento me alivia. Imerso a tantos prazos e compromissos inacabáveis nem notei que estava de saco cheio do meu trabalho.
Alguém aumenta o volume da TV.
“Parece que o maníaco de Carlumina continua fazendo vítimas, não é mesmo Giovana?”
Não é possível. Essa maldita história de novo…
“É, dessa vez a vítima é uma jovem de 17 anos que desapareceu na última terça-feira.” Olho para o relógio. Meu punho treme como uma gelatina mesmo sabendo que terça-feira não foi noite de Lua cheia. Olho em volta pra ver quem tem o controle. Preciso mudar de canal!
“Assim como as outras vítimas, foram encontrados apenas os ossos como se tivessem sido limpos por um lobo. Há evidências claras de que se trata do mesmo assassino serial que matou Armando de 23 anos há cinco meses.”
Sinto o formigamento subindo pelo meu braço, os pelos arrepiando e o mundo a minha volta querendo me engolir. Os sintomas das minhas crises se parecem bastante com os primeiros minutos da transformação, o que definitivamente não ajuda. E é claro que deixei o frasco do remédio pra crise em cima da mesa da sala, separado para que eu não o esquecesse, mas esqueci.
Algum idiota se empolgou com o meu “estilo” e vem replicando esses ataques. Faz anos que o desgraçado do lobo não mata ninguém, pois me certifico religiosamente de vestir uma coleira de prata em toda lua cheia.
Não bastasse me sentir culpado pelo que eu mesmo fiz ainda servi de “inspiração” pra alguém que, ao contrário de mim, escolheu ser um monstro.
-Só desgraça. A essa hora da manhã ainda.- Olho para o lado e percebo que quem fala comigo é uma mulher jovem, bonita, de cabelos castanhos lisos e sardas no rosto. -Esses caras parecem gostar de quando essas merdas acontecem só pela audiência.- Seu sotaque é típico da região.
O piercing no septo e a pulseira de corda de palha trançada no punho direito não deixa dúvida de que a moça é uma totemista.
-É por isso que eu não assisto TV, sabe? Até tenho, mas só uso pra assistir o videocassete.
Seus olhos âmbar me encaram brilhantes e apreensivos, mas não sei o que dizer, estou no meio de uma crise. Ela quer puxar conversa, mas francamente nem estou me esforçando em dar qualquer resposta. -Meu nome é Ana.- Ela estende a mão para me cumprimentar e instintivamente faço o mesmo. -Erique.- Respondo tentando disfarçar o desespero em minha voz.
-Você não é daqui, Erique.- Ela sorri com o canto da boca. -E você também não veio curtir o clima romântico das cidadezinhas do sul.
Não preparei nenhuma resposta pra quem me perguntasse o que eu ia fazer e me dei conta do quanto isso soaria loucura para um desavisado. Mesmo assim a urgência de responder me deu como única opção falar a verdade. -Vou passar um tempo lá pelo Vale das Marmotas, pra lá das Montanhas do Pecado.
Ela arregala os grandes olhos castanhos claros e mantém o sorriso no canto da boca. -Sério? E você tá indo sozinho?
-Sozinho.- É incrível como essa palavra soa tão negativa pro resto do mundo.
-Sempre quis fazer isso, quer dizer, não exatamente pra esses lados que você disse mas… É a primeira vez que você vai?
-Não, eu costumava ir com o meu pai quando eu era pequeno.- “E isso faz bem mais tempo do que parece”. Minha mente rebate.
-Ah, que legal. Eu costumava ir pescar com o meu pai. Não gostava da pescaria, sabe? Mas passava tempo com ele.
Ouço o motor de um ônibus ou caminhão estacionando lá fora. Minha crise que aos poucos se esvaia com a conversa me surpreende de novo.
O atendente de olhos esbugalhados, boné com orelhas de esquilo e uma caneta atrás da orelha parece vir do nada. -Vocês já foram atendidos?
Ana levanta um copo de isopor com alguma bebida quente e esfumaçante.
-Eu vou querer um café.
-Hoje é por conta da casa, Senhor…
-Erique. E me trás um pão na chapa também.
-É pra já, Seu Erique.
O rapaz se retira enquanto anota o pedido num bloquinho. A casa está tão cheia que até um pedido simples como o meu demora a sair.
-Desculpa te perguntar, Erique. Mas, quantos anos você tem?- Ela se vira para mim apoiando o cotovelo no balcão.
-Vinte e se… Vinte e oito.- Não consigo conceber que já tenho 28 anos, por isso sempre me confundo.
-Fez aniversário recentemente?
-Na verdade faço 29 agora no mês sete.
-Nascido no mês sete, com 28 anos, o seu totem é o…
-Lobo.- Eu completo, mas ela nem parece notar o meu desanimo. Sempre quando lembro dessa ironia agradeço a Deus pelo seu mórbido senso de humor. E ela vai achar que me conhece só porque sabe o ano e o dia em que eu nasci. A simpatia da moça me fez esquecer o que eu acho dos totemistas. Mas ao invés de dizer qualquer coisa, ela só arca as sobrancelhas, sorri com o canto da boca e dá um gole no copo esfumaçante.

Ouço um vidro se quebrando. A porta do restaurante vai ao chão e os cacos deslizam até os meus pés. Alguns se paralisam em silêncio, mas outros gritam com o susto.
-Ah, não…- Ana lamenta olhando para a porta.
Me viro e vejo um homem com capuz branco que brama como um urso. -Ninguém se mexe!- Atrás dele entram quatro outros encapuzados e lá fora um caminhão parado bloqueia a saída do estacionamento.
Um deles abre um saco de lixo. Não vejo se estão armados. Outro gesticula para que fiquemos de joelhos e me prontifico para não contrariá-lo. Ana faz o mesmo junto com os outros clientes.
De joelhos percebo minha vista ficar turva. O controle está fugindo às minhas mãos, escorrendo pelos meus dedos em forma de suor gelado. Mal consigo acreditar que tudo isso está acontecendo.
Uma caneta cai a minha frente, em seguida uma etiqueta de caderno.
Passam-se breves minutos sem que ninguém diga nada, então o primeiro encapuzado rompe o silêncio.
-Escreve o nome do seu carro e a placa na etiqueta, depois cola na chave.- Ele dá uma breve pausa. -Todo mundo!- O rosnado me faz escrever e colar a etiqueta na chave o mais rápido possível.
-Agora a gente vai passar de um em um recolhendo as carteiras e as chaves.- Vejo os pés do bandido passando de cliente em cliente entre soluços e choros abafados.
Finalmente ele vem até mim. Estico o braço e coloco minha carteira e chave no saco.
-Ninguém se mexe agora.- A voz que parecia um trovão agora parece amansar. -A gente vai fazer uma limpa no carro de vocês, numa boa, e vamo devolver as chave e os documento, certo? Isso se todo mundo colaborar.
-Merda!- Eu resmungo.
-Que foi aí, tio?- Ouço um deles falar vindo em minha direção. -Algum problema?
-Não, é que…- O tapa estrala no meu ouvido direito seguido de um zunido como o de um telefone dando linha.
-Tá, então fica na moral aí.
Meu corpo estremece, não consigo segurar a crise, sei que não posso fazer nenhuma besteira, mas estou oficialmente fora de controle. É como se eu soubesse que algo está para acontecer, mas dessa vez a situação perigosa impede a razão de falar qualquer coisa, estou em alerta, nunca tive uma crise como essa. “Espera.” Eu penso. “Essa não é uma crise normal”.
Um deles sai com o saco de lixo e lá fora outros dois homens recolhem as chaves.
-Pega rápido, rápido!- Já posso ouvi-los daqui de dentro. -Deixa as carteiras pra depois!
Eles começam a vasculhar os carros.
Ouço meu coração como se cada batida fosse uma explosão, o suor congelante escorre, meu ouvido esquerdo, o que não levou o tapa, parece poder ouvir a respiração de todos na loja. “Não é possível…” Distante a minha mente se lamenta. “Faltam semanas para a lua cheia.”
O cheiro do barro nas botas do bandido que me bateu invadem as minhas narinas e me enchem de ódio. Eles têm todos o mesmo cheiro, são um bando, odeio todos eles.
Aos poucos meu coração se acalma, um péssimo sinal. “Não, agora não! Todos vão saber!” Minha consciência já parece um sussurro. Mesmo que meu corpo ainda se pareça comigo já estou tomado por ele.
Isso jamais aconteceu, nunca me transformei fora de época, muito menos de dia. “Eles tem a placa do meu carro, eles sabem o meu nome…” Ouço o ritmo do coração de cada um no recinto e todos fedem a medo, inclusive Ana.
Ela pula, sobe no balcão e cai sobre o bandido que me bateu. Algo na mão dela penetra o pescoço do homem de capuz branco. O sangue escorre.
O cheiro do sangue tão próximo. É quase como se pudesse saboreá-lo. -Eles tão desarmados!- O grito dela agride meus ouvidos. Todos se levantam e correm em direção aos bandidos. A situação se inverte rapidamente.
O meu corpo se projeta para fora da loja tão rápido que nem me lembro de ter feito o trajeto.

Sinto os músculos na minha mandíbula apertarem os dentes que também se afiam aos poucos.
“Não, aqui não! Agora não!”.
No instante que os bandidos do lado de fora me percebem eles saem correndo, eu adoro quando eles correm de mim.
“Não! Não! Não!”
Minha voz humana passa a gritar cada vez mais alto em meus pensamentos. Mas eles correm tão devagar, não posso deixar que minha caça fuja, uma caça que veio de tão boa vontade até a minha boca.
“NÃO!”
Meu corpo para no meio do caminho.
-Mano, o que ele tem? Que olho é esse?- Um deles diz impressionado enquanto os outros sobem no caminhão. Minhas vistas escurecem. Assisto meu corpo desmoronar sobre o chão.
O mundo se apaga.
“Consegui me conter”. Mesmo prestes a desmaiar me sinto aliviado.

Erique!- Ouço uma voz me chamar. -Erique! Acorda!-
Abro os olhos e percebo uma roda de pessoas a minha volta. Os sons parecem apagados, distantes, mas não é por ter acordado do desmaio, é o contraste entre a minha audição e a do lobo.
Ana está agachada ao meu lado. -Você tá bem? Consegue levantar?- Eu não sei se consigo, então nada respondo. Me esforço e o máximo que consigo é me sentar.
“Ah, ainda bem.” Ouço um garoto dizer. “Graças a Deus!” uma moça suspira.
-Eu nunca vi alguém correr desse jeito.- Ana comenta enquanto me passa uma garrafa d’água. -Se você não tivesse desmaiado teria alcançado fácil aquele caminhão. Por isso você desmaiou, se esforçou de mais.
-Obrigado.- Meus lábios mexem, mas minha voz sai tímida. A água da garrafa desce sem esforço.
-De nada. Você ficou uns quinze minutos apagado. A gente começou a ficar preocupado. Até chamamos a ambulância, mas o posto médico da rodovia é longe. A gente imobilizou os caras… Na verdade eu quase matei aquele ali.
As pessoas em volta riem, mas não consigo entender a piada. Talvez por me dar conta de que o maldito não precisa mais da lua cheia pra dar as caras. Encontro forças pra me levantar. “Ah, ele tá bem pra caramba!” Um dos garotos comenta.
O rapaz de olhos esbugalhados que me atendeu mais cedo vem até mim e me entrega a chave da caminhonete. -Aqui a chave do seu carro. Não parece que levaram muita coisa.
Antes que ele possa dizer qualquer outra coisa corro até o meu carro. Olho para a bagunça que fizeram na caçamba e noto que a espingarda foi levada, eu mal me importo. Mas algo está faltando.
“Levaram a coleira!” Quase digo isso em voz alta. “De tudo que podiam levar escolheram a maldita da coleira!”




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