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Encarava o Papel em branco, encarava-o a meses.

Sentado no coreto da praça, integrando Seu Corpo às colunas e ao chão de madeira, raios íngremes de sol penetravam sua pele. Olhos semiabertos, suor escorrendo pela testa, unhas gastas, um grande pesar na respiração…o velho constante aperto no peito. Sua barba beirando o colo, roupas encardidas, aspecto totalmente desasseado. Transeuntes circulavam sem notar um mínimo de resquício de vida naquele local; de vez em quando ele se arrastava para um banco ou outro, em busca do frescor e como já era de praxe, ninguém percebia o corpo frágil e rastejante locomovendo-se vagarosamente pelo cimento. Gritava para si com certa frequência “Acorda! Acorda! Acorda!”, assim como os adultos quando se encontram perdidos no caos da vida, assim como as crianças no meio de um pesadelo, gritava para si, para recordar, para reviver. “Loucura” murmuravam todos os equinos ‘cabrestuosos’ ao notarem os berros alarmantes num lapso consciente de percepção do outro.

Sim, o papel em branco! Vários outros rabiscados, Nada de concreto ou com algum senso comum, sempre se sentira um vadio das palavras, o puto Das Frases, o prostituto das orações, submisso das sentenças, servo das frases. Suas pequenas mãos de texugo não conseguiam mais povoar uma linha qualquer daquele papel, estava enfim como uma aeromoça com 35 anos: fim de carreira. Nem seu odor grudava na paz do branco papel. Não mendigava dinheiro, não mendigava amor, atenção ou uma valsa: mendigava apenas às palavras. Tossia um bocado, pulmões falhos…culpa do cigarro, ou da possível pneumonia que nunca tratara. Seus olhos carregavam o brilho da idade e os pés-de-galinha da sobrevivência. Batucava seus dedos na caneta, um hábito, um toque, um tique, que seja! Existia incomodamente.

Estava ficando impaciente, desajustado, desconcertado, atordoado, azoado…fincava a caneta no papel e nada, trocou a caneta…injetou no papel: nada, novamente. Quis rasgar aquele pedaço de merda albina inútil, aquela folha que lhe impedia de ser. Queria engolir todos os rabiscos e rascunhos, alinhá-los em seu corpo, absorvendo-os e excretando para as cruéis linhas. Começou a correr ao redor do coreto, gritava por ajuda, chorava por sua essência…mesmo sem proferir uma palavra e sem soltar uma lágrima sequer. Por fim, exausto, ajoelhou-se diante do sol e, semelhante à uma injeção de adrenalina, enfiou a caneta no peito. Sentiu então. Bombeou letras, nas veias correram as sílabas, suas mãos trêmulas perceberam aos poucos as palavras sendo cravadas por todo o seu corpo, uma a uma, dolorosamente. Era agora, como sempre fora sem perceber, o próprio pedaço maldito de folha em branco e, pela primeira vez, deixou-se escrever.




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