Pergunto-me onde é meu lugar olhando fixamente para um box de DVD's escrito "Nosso Lar" em letras douradas. De fato, eu estou cercado de livros espíritas. Sentado na posição em que estou em minha cama, observo duas estantes com seis prateleiras cada uma, abarrotadas de literatura espírita. Os volumes que mais me agradam é a coleção completa da "Revista Espírita". Compõe-se de doze volumes mais o volume índice. Eu gosto dessa coleção em particular pelo fato de que no topo de cada volume há uma faixa colorida. Quando reúnidos, forma-se uma paleta de cores interessante que vai do azul marinho, passando pelas matizes de verde até terminar em um marrom enfadonho. No mais, é isto o que estes livros são para mim: ornamentos.

O que esta pilha de livros empoeirados e que não tenho a menor intenção de ler faz onde vivo? Eu não tenho especificamente um lugar para viver. Durmo em um quarto Emprestado, e esses livros possuem até mais direito do que eu de estar aqui, uma vez que chegaram décadas antes. Eu também como em uma mesa emprestada, preparo meus (?) alimentos em uma cozinha  e panelas  emprestadaa, com talheres emprestados como. De certa forma, até o ar que eu respiro parece emprestado.

Eu já soube o que era pertencer a um lugar. Por pouco tempo, mas soube. Abrir uma porta, a minha porta com as minhas chaves. Pisar em um chão que era meu. A posse garantida pelo aluguel, mas ainda sim: posse! Respirar fundo e reconhecer o meu cheiro, cheiro do meu sono da noite anterior. Cheiro de cama e quarto amanhecidos. O cheiro e o calor tão familiar da cama desarrumada. Passar o café, o meu café, em meu coador de pano para a caneca que era minha. Sorver aquele aroma antes do primeiro gole quente como um carinho deve ser. O aroma que também era meu. Entrava pelas minhas narinas e o vapor fazia chover nos gramados dos descampados dos meus sonhos, quando eu ainda os tinha em technicolor. As minhas cores, todas elas... Tão... Tão mais vivas do que essa coleção de livros que para mim respondem tantas perguntas como monolitos ou latas de conservas usadas.

Agora tudo parece emprestado. Cada passo parece incerto, todas as coisas parecem ser alugadas por minutos à taxas altas. Até os amigos. Inclusive os amigos. Os amigos para sempre, os melhores que você poderia ter e que se acabam em vinte quatro horas. São como aqueles cavalinhos em que se põe uma moeda e não há o que pague o sorriso da criança. (...) É claro, há o choro subsequente. Tudo o que é feito para fazer brotar um sorriso de covinhas em crianças é mais caro do que se pode pagar sempre. Para algumas, nunca. Quando foi que o preço da felicidade passou a custar tão caro? É por isso que hoje tudo eu tomo emprestado. O que me faz diferente da criança que quer ir sempre e de novo à roda gigante? Talvez o fato das minhas lágrimas não comoverem mais ninguém. Nem a mim mesmo. De resto, somo iguais.

Será que até a alegria é alugada? Meus sorrisos que hoje são pesados como fuligem, autênticos como eletrônicos sem marca feitos em Hong Kong andam tão em suaves prestações. Meus pulmões hipotecados em cada ponteira, minhas memórias... Todas custam caro. Todas tão valiosas e mais do que eu posso pagar. Então tomo tudo emprestado. Nem o meu corpo é mais meu quando o abraço que deveria me libertar se transforma em uma camisa de força.

E esse meu coração que bate à prestação? Artigo de segunda, terceira, vigésima mão. Artigo recauchutado e sem várias peças originais. Coração relíquia mal cuidada que perde todo seu valor em cada porão, de cada amor que não reconhece o valor da história de algo soma à coisa em si. Meu coração vintage, que é tão velho para você, para todo mundo. Esse coração que já foi de alto desempenho no gostar e que hoje é só uma quinquilharia, uma bobagem, uma irrelevância. Um ferro a ser vendido por quilo para alguém necessitado de um peso de papel mas... Quem precisa desse tipo de coisa? Não compre. Pode levar emprestado...