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19 de Março, a hegemonia lulista e a esquerda sacerdotal

Para além do teor estético e do simbolismo geográfico, a inauguração popular da transposição do Rio São Francisco no dia 19 de março foi, provavelmente, um dos eventos políticos mais importantes para a Esquerda nos últimos meses. Raros são os momentos de simbiose nos quais o partido sente o povo e extasia-se com ele como se nele em casa estivesse. Não é surpreendente que, em editorial do dia 21, o Estadão tenha afirmado que o demagogo e populista “Lula de sempre” estava de volta ao palanque. Tampouco é que setores da esquerda, receosos com o protagonismo do ex-presidente, tenham recuperado o discurso da impossibilidade do lulismo e da necessidade de reorganização de um autêntico projeto anti-establishment para os próximos anos. Desprovida de suficiente franqueza para admitir que as condições para tal empreitada são mais verdolengas que os sentimentos fascistas que atualmente emergem do povo, esses setores da esquerda revelam sua face mais sacerdotal.

Me refiro à Esquerda Sacerdotal como aquela que se julga depositária de identidades sagradas e que concebe a revolução como um combinado de princípios transcendentes à dialética de vícios e virtudes da vida cotidiana. Na sua versão anticapitalista, essa esquerda abdica de justificar a origem de possíveis impulsos revolucionários dentro de um sistema de expectativas capitalisticamente constituído e não procura adequar suas reivindicações ao quadro social vigente. Contenta-se em argumentar a necessidade de um novo destino sem mostrar a travessia. Desse modo, ao evocar a “voz das ruas” e dar as costas para as empiricamente verificáveis ambições conservadoras da classe trabalhadora, para sua vulnerabilidade ao fascismo e seu crescente desprezo por algumas conquistas civilizatórias, a esquerda sacerdotal, como todo devoto, rebaixa a realidade e se refugia na celestialidade. Só então pode encontrar-se com a consciência de classe, com o desejo revolucionário e, de um modo geral, com a ilusão da grande política em tempos de retrocedência.

Tão distantes os sacerdotes estão do povo que tendem a conceber a hegemonia lulista como o mais chulo populismo ou como uma variação colorida do modelo capitalista neoliberal, mas nunca como uma legítima representação de parcelas historicamente excluídas do percurso capitalista no Brasil. Para manter sua áurea angelical, a esquerda sacerdotal abandona os pobres à contingência a ponto de expor sob os holofotes da esfera pública o conjunto de conquistas sociais operadas pelos governos do Partido dos Trabalhadores como um opioide qualquer cuja analgesia não paga a pena da desmobilização popular e do déficit democrático daí resultante – como se a reorganização institucional promovida em torno dos programas sociais não resultasse, por outro lado, num superávit democrático. Entretanto, como os emissários da sagrada revolução tampouco nos presenteiam com uma alternativa institucional factível transmitem a sensação de que pretendem, como diria Marx, derrubar “as colunas de sustentação da sociedade burguesa a cabeçadas”.

Também por isso, a esquerda sacerdotal só pode sobreviver politicamente como um organismo parasitário, que agarra-se a projetos alheios e dali extrai seu conteúdo vital: discursos críticos, quase poéticos mas sem viabilidade nenhuma. Contribui bastante para essa inviabilidade dois fatores. Primeiro, que suas ideias de transformação radical da ordem social são dependentes de uma fração da classe trabalhadora cuja expectativa é, justamente, a manutenção da ordem; segundo, que quaisquer propostas de transformação institucional depende de um arranjo parlamentar cuja existência só é possível mediante um pacto minimamente conservador. Assim, enquanto promete a oitava benção do Apocalipse, a esquerda sacerdotal se mostra incapaz de encarar humildemente a dureza da realpolitik e a dureza de sua desaprovação popular – de tal modo que, nos raros momentos em que olha para si, prefere reinventar a utopia pela milésima vez em lugar de reinventar-se politicamente. Por isso, tão cedo não será recebida de braços abertos pelo povo como Lula foi na Paraíba.



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