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Pavana


Keith Roberts (1991). Pavana. Lisboa: Clássica Editora.

Partimos de um grande e se. Roberts imagina um futuro alternativo onde a rainha Isabel I é assassinada, o que abre caminho para os católicos, apoiados por uma armada espanhola,  dominarem o trono inglês. E, com essa alteração, o domínio de Roma impõe-se, a Europa, e por extensão o Mundo das colónias, torna-se um reduto de catolicismo puro e obediência dogmática aos papas. Aceleramos para o século XX, e a Inglaterra (tal como o resto da Europa), é essencialmente um país feudal, com um rei nominal mas dominado por grandes famílias, todos obedientes à inabalável autoridade papal. 

As tecnologias são severamente restritas, o Progresso científico do iluminismo não aconteceu, mas apesar de tudo a ciência avança, rigidamente controlada por uma Igreja que utiliza bulas papais e ameaças de heresia para restringir o progresso. O mundo das pessoas comuns é pouco diferente do medievo, isolados em comunidades pequenas, com pouco contacto com um mundo exterior reservado às classes mais elevadas, sem educação ou cuidados médicos essenciais. As doutrinas da igreja tudo dominam. E, no entanto, as sementes da revolta começam a crescer.

Pavana leva-nos para este mundo através de histórias aparentemente desconexas. Um jovem condutor de locomotivas (num mundo de Pavana, as locomotivas a vapor seguem por estrada normal, porque a Igreja restringe o uso de motores de combustão interna) herda a empresa do seu pai, mas sofre um desgosto de amor. Um rapaz de curiosidade aguçada atrai a atenção de um elemento da guilda dos sinaleiros, uma corporação independente (e mais capaz de usar a tecnologia do que mostra) que assegura as comunicações por semáforo em todos os territórios obedientes ao papa. O rapaz tornar-se-á aprendiz de sinaleiro, mas no final da sua aprendizagem, colocado num posto remoto, sofrerá uma tragédia mortal que o coloca em contacto com vestígios dos antigos deuses pré-cristãos. Um frade talentoso, dedicado à gravura no seu mosteiro, é convocado para documentar sessões de interrogatório da Inquisição com a sua capacidade para o desenho realista. O que vê deixa-o tão transtornado, que ao regressar ao mosteiro acaba por se tornar monge vagueante, acometido por visões, e catalista de um movimento de revolta anti-Roma, que é severamente esmagado.

A filha de um nobre do sul de Inglaterra cruza em si a linhagem nobiliárquica do pai, mas também o sangue popular da mãe, herdeira da empresa de transportes por locomotiva que, entretanto, cresceu para se tornar a maior de Inglaterra. Perante a morte do pai, a jovem abala o mundo feudal assumindo o título nobiliárquico, e fazendo frente às exigências romanas, recusando-se a pagar impostos excessivos e assumindo que deve obediência ao rei do seu país, e não à autoridade papal. A revolta tem consequências, acabando debelada, mas o abalo ao poder papal é inevitável. Décadas depois, o filho desta mulher regressa das Américas independentes para visitar as ruínas do antigo castelo da família, agora num reino unido independente, e modernizado. A queda do poderio papal foi consumada, e o mundo fervilha de progresso. Mas, como irá descobrir numa carta que lhe foi legada pelo pai, o fiel senescal da condessa revoltosa, talvez o obscurantismo imposto pela igreja tenha tido uma razão de ser. Talvez os papas tenham tido conhecimento de um futuro alternativo, o das guerras mundiais, do Holocausto e da ameaça da aniquilação nuclear (ou seja, o nosso). Talvez a repressão ao conhecimento e aos modos de vida tivessem sido mais do que meros exercícios de poder, talvez visassem atrasar conscientemente o progresso humano, para assegurar que uma humanidade mais madura pudesse, finalmente, colher os frutos da tecnologia. Talvez a Igreja tivesse assumido esse papel, porque tinha conhecimento de que noutros passados, com outros deuses, o ciclo de inovação e progresso tinha condenado as antigas humanidades à extinção, outros tempos cuja memória persistiu nos mitos e ritos das religiões que antecederam a cristandade.

Um belíssimo exercício de ficção especulativa, Pavana segue um tipo de narrativa algo querido aos ingleses, imaginando o que aconteceria se a predominância do poder tivesse ficado com a igreja romana e não com os países europeus (recordo o romance The Alteration de Kingsley Amis como outro ponto alto deste tipo de ficções). Exploramos um mundo que cruza arcaísmos e pré-modernidade através de personagens que apesar de sólidas e emocionais, são também símbolos da necessidade de transformação do mundo ficcional. 

Como nota final, devo dizer que já muitas vezes ouvi o grande João Barreiros falar-nos dos tempos áureos em que dirigiu uma coleção  de ficção científica para uma editora portuguesa. Uma história que acaba mal (bem, as melhores histórias do Barreiros nunca terminam bem), com poucas vendas e a falência da editora, se não estou em erro. Nunca imaginei que uma destas edições me viesse parar às mãos, encontrada por acaso num alfarrabista.



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