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Museu do Sporting, um museu de emoções

Isabel Victor, Museu Sporting, Estádio de Alvalade, 24 de Maio de 2018. Foto de Ana Carvalho

Isabel Victor é desde Abril de 2017 directora do Museu Sporting, em Lisboa. Alia o profissionalismo com a paixão pelo trabalho em museus, o gosto por aprender, fazer e discutir, e a inquietude da curiosidade. Há pouco mais de um ano na direcção do museu, fomos até ao Estádio de Alvalade, onde está instalado o museu, para conhecer melhor o percurso de Isabel Victor, as suas motivações e as ideias que traz para o Museu Sporting e para este novo ciclo profissional. Por Ana Carvalho [1]

Entro no Museu Sporting antes da hora marcada e começo por deambular pela exposição permanente sem pressa, perscrutando essa montra incandescente e reluzente, pululante de troféus − um hino à vitória e às conquistas de um clube desportivo com história secular. A música de fundo faz jus ao tom celebratório do ambiente, que em loop insiste e persiste. Já no gabinete de Isabel Victor, é a mesma música que ainda se consegue escutar, ainda que filtrada pelos interstícios das paredes finas

Começamos a conversar. Profissional madura, não tem dúvidas em afirmar-se hoje como museóloga. Nessa perspectiva, o fio condutor tem sido, antes de mais: «um grande interesse pelas pessoas, pela busca permanente de conhecimento, um trabalho persistente e a vontade de inovação». Mas definitivamente, Isabel Victor não cresceu a pensar numa carreira em Museus. Na adolescência, «os museus eram uma coisa muito distante das pessoas», admite. Sobre a aproximação aos museus, que aconteceu na década de 1980, em Setúbal, é um percurso que se foi fazendo, não há uma linearidade, mas sim uma «sucessão de acontecimentos e de escolhas, nem sempre um processo consciente». Com pragmatismo, atira: «fui-me encaminhando para aquilo que me suscitava mais curiosidade». 

Uma trajectória multifacetada: da sociologia à militância pela acção cultural

Recuamos então nesse percurso e nessa genealogia de interesses vários marcados pela curiosidade e pela descoberta do mundo. No liceu vinha da área das ciências. Tinha especial fascínio pela Física, «pela compreensão dos fenómenos», sublinha. Ao mesmo tempo, crescia-lhe o interesse pela Geografia: «como e porque se movimentam as pessoas, como se organizam as cidades, a forma de ocupar o espaço e de o viver» − eram questões que a interrogavam. Além disso, a História, «sempre de forma latente», e a Psicologia. As provas de aptidão para a entrada na universidade ainda foram na área da Geografia e da Matemática. Mas estávamos no pós 25 de Abril e as universidades estavam fechadas. Fala com emoção do serviço cívico estudantil, no qual participou: «veio mostrar um país diferente. Costumo dizer, foi o nosso Maio de 1968. Um tempo de descoberta, de liberdade e de discussão, a ideia de que podíamos mudar o curso das coisas, e mostrou-me outras possibilidades.» Na mesma época, fez o ano zero no ISCTE para a entrada na universidade, participando em seminários diversos com figuras ligadas ao jornalismo, à Geografia, à História e ao pensamento contemporâneo. «Foi um ano que não contou para nada, mas contou para tudo», sublinha. Isabel Victor tinha então 17 anos. Foi uma espécie de «rampa de lançamento», «deu-me estrutura de pensamento». É por essa altura que se tornou evidente que o curso de Sociologia no ISCTE era o caminho a perseguir, até então considerada pelo antigo regime como uma «área subversiva». «Era todo um conhecimento que se abriu. Comecei a entender que na Sociologia eu podia chegar a esse campo multidisciplinar que afinal eu tanto gostava.»

Ainda no segundo ano da licenciatura em Sociologia começou a estudar à noite e a fazer formação profissional na área da animação sócio-cultural. Este é outro traço que a caracteriza: «sempre gostei de fazer várias coisas» e, por outro lado, o desejo de «aplicação prática das coisas». Esta via profissionalizante mostrou-lhe a importância da acção cultural enquanto militância «para a liberdade, a democracia e para o desenvolvimento das pessoas», uma noção que já vinha de trás, de forma mais empírica, quando aos 15 anos, além de estudar, ajudava na organização de actividades de animação dos tempos livres nas escolas.

Foi como animadora sócio-cultural que teve o seu primeiro emprego em Setúbal no antigo polo do FAOJ (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis), hoje Instituto Português do Desporto e Juventude. Em 1982 termina a licenciatura em Sociologia e nesse mesmo ano entra para a Câmara Municipal de Setúbal como chefe de serviço de acção sócio-cultural. Sobre estes tempos recorda, o serviço funcionava como uma espécie de «saneamento básico da cultura, porque na altura era preciso fazer tudo».

E então, os museus e a Museologia

É com a colecção etnográfica de Michel Giacometti (1929-1990) que se aproxima de forma mais assertiva do mundo dos museus. Pela mão de Fernando António Baptista Pereira, à época conservador do Museu de Setúbal − Convento de Jesus, surge a possibilidade de Isabel Victor trabalhar com a colecção, então propriedade do município de Setúbal (antes a colecção era do INATEL), com vista à sua organização e criação de um futuro museu. Estávamos em 1987, e a colecção depositada numa ala do antigo hospital do Convento foi o início de vários processos, nomeadamente a organização de exposições itinerantes e uma diversidade de actividades, de onde se destaca o trabalho com públicos muito diversificados − «essa foi uma grande experiência», reconhece. Desse processo culminou em 1995 a instalação do Museu do Trabalho Michel Giacometti numa antiga fábrica de conservas da cidade. Nesse contexto, «procurámos criar uma relação com os Setubalenses, trabalhar a noção de pertença, abrindo o museu». E acrescenta: «trabalhámos as cidades dentro da cidade e a interculturalidade», «uma cidade com mais de 2000 anos de história, porto de mar, que sempre foi uma cidade de culturas». «Outro grande desígnio do museu foi ajudar as pessoas a viver umas com as outras para bem desse reconhecimento e diversidade, trabalhando em rede, com o território, em parceria com as associações, com os artistas…, e como costumo dizer, com os Setubalenses-caboverdianos, com os Setubalenses-moçambicanos, com os Setubalenses-angolanos… e com toda a diversidade de Setúbal.» Esteve à frente do Museu do Trabalho Michel Giacometti até 2010, até então na qualidade de chefe de divisão de museus da Câmara Municipal de Setúbal. Dessa experiência de terreno e de gestão (de equipas e de meios), destaca as equipas: «com quem aprendi muito». Do período em Setúbal, ressalta, ainda, a «consciência da importância decisiva da educação patrimonial e o papel pioneiro dos museus de Setúbal neste campo, iniciado há 30 anos pela mão de Ana Duarte».

A par com a experiência de terreno nos museus veio também a procura pelas ferramentas teóricas que melhor estruturassem as práticas. Neste balanço, esse é também um traço que lhe é característico, tal como faz gosto em realçar: «sempre gostei muito de estudar e aprender toda a vida». No campo da Museologia, isso é perceptível desde cedo, com a pós-graduação em Museologia Social da Universidade Autónoma de Lisboa Luís de Camões (1992) e, mais tarde, com o mestrado em Museologia na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (2005), com uma tese sobre as ferramentas da qualidade aplicadas em museus, tema-chave, aliás, ao longo da conversa com Isabel Victor.

Sobre pessoas e experiências que orientaram e influenciaram o seu pensamento (e acção), «revolucionando a forma de entender o papel dos museus, a pirâmide de valores, a sua relevância e papel social», Isabel Victor destaca Per-Uno Ägren (1930-2008) e a Museologia nórdica, nomeadamente o caso da Suécia, e o movimento da Nova Museologia, o ensino da Sociomuseologia, com Mário Moutinho, e a rede internacional de investigadores e museólogos, com ênfase para o Canadá, com Pierre Mayrand (1934-2011), e para o Brasil, com Mário Chagas.

Da administração local para a administração central

Entre 2010 e 2012 coordenou a Rede Portuguesa de Museus (RPM) ao assumir o cargo de directora do Departamento de Museus do então Instituto dos Museus e da Conservação. Sobre a primeira década de existência da RPM destaca a influência política e o papel de negociação que esta teve junto dos municípios: «os museus não teriam crescido com a organização, ordenamento e qualificação que tiveram se não fosse a Rede». E mais: «a Rede empoderou os profissionais e contribuiu para a normalização». Em jeito de balanço sobre o trabalho que desenvolveu, sublinha: «candidatei-me com elevada expectativa de poder fazer uma segunda década aproveitando o alicerce, manter o fundamental, aprofundar a questão política, mas estávamos já numa década de desconstrução». No plano da formação procurou, para além da formação de perfil mais técnico «adaptar a uma outra realidade, que partia mais da reflexão sobre boas práticas com os profissionais de museus». Essa metodologia de trabalho, em parte assente na ideia de «museu visita museu», que chegou a colocar em prática, visava «criar redes interpessoais para alimentar a criatividade e a mudança». Nesse sentido, defende: «o museu é um campo multidisciplinar, é importante exercitar essa reflexão: o que fazemos, porque fazemos e a inovação que se vai gerando, que de uma maneira geral é mal conhecida». É nessa perspectiva que afirma: «o principal da Rede é trabalhar em rede», «trabalhar de forma horizontal e de baixo para cima». Sobre a sua saída da Rede não esconde que foi um processo traumático, sobretudo pelo fim de uma equipa que levou anos a constituir-se, e que “desapareceu” de um dia para o outro. Sobre esse lastro, admite: «tenho uma profunda admiração pela equipa da Rede».

Pergunto sobre a revitalização da RPM e qual pode ser o caminho. Isabel Victor aponta, desde logo, para a necessidade de cumprimento da Lei‐Quadro dos Museus Portugueses. «A lei existe, é preciso que se consolide, que funcione», e «rever a cadeia de prioridades e o modelo de rede − de piramidal para horizontal e rizomática − com várias derivações (redes regionais, redes temáticas, etc.)». Insiste igualmente na importância de uma acção baseada em diagnósticos: «conhecer os museus, os profissionais» e «apostar na negociação política». Por outro lado, o investimento «na formação e qualificação, e pensar na credenciação como o final da linha», ou seja, «implementar um sistema de qualidade em museus, a partir do qual os museus e os profissionais possam usar essas ferramentas na gestão, nos processos, na transparência, na qualificação e na formação.»

Depois da RPM, voltou à casa-mãe, à Câmara Municipal de Setúbal, onde passou a colaborar com o Museu de Setúbal − Convento de Jesus. Nesse contexto, chegou a preparar um projecto que visava a cartografia do património (numa perspectiva participada) da cidade, entendido como ante-projecto que servisse de base para um futuro museu de cidade. Sem apoio político, a ideia não foi avante. Em 2014, acabou por sair da função pública e abraçar o trabalho independente como consultora. Começava então um novo ciclo.

Um novo ciclo, o Museu Sporting

Coordenar o Museu Sporting não foi um projecto antecipado ou planeado por Isabel Victor, mas aconteceu. Houve uma primeira aproximação informal em 2016 como consultora para fazer pareceres técnicos e, em 2017, surgiu o convite para efectivamente dirigir o museu. Encara este novo ciclo como um «extraordinário desafio». 

Sobre o perfil destes museus, é peremptória: «são museus profundamente emotivos. Aqui a emoção está no topo». E sublinha: «o Museu Sporting é um museu que faz tributo a grandes atletas e a extraordinárias histórias de vida e de superação». «Se noutros museus eu já sentia que o mais importante era o edifício humano, nestes museus ainda é mais evidente». «E onde o património imaterial é uma [dimensão] fortíssima», acrescenta. O Museu Sporting «retrata a identidade e a memória do Sporting Clube de Portugal, desde a sua fundação em 1906 até aos dias de hoje», pode ler-se na sua página institucional. Sobre a missão deste museu, Isabel Victor destaca: «é sobretudo este sentido de celebração, de congregação, é um tributo constante à história, aos atletas, à superação, ao excepcional, mas também ao sacrifício, às derrotas. Tudo isso faz parte». Reconhece que «não são museus nada neutros, mas os outros também não». Um outro aspecto inerente à missão do museu é «contribuir para uma cultura desportiva, para os valores fundamentais do desporto e do respeito pelos atletas», sublinha, em clara alusão aos últimos acontecimentos da cena desportiva.

A sorte dá muito trabalho

No trabalho mais visível do Museu Sporting somam-se já duas exposições temporárias realizadas com esta nova direcção. A primeira, Leoas, Boas de Bola (2017) correspondeu a uma necessidade evidenciada pela limitada representação de género na exposição permanente. Nesse sentido, Leoas, Boas de Bola é entendida como uma exposição disruptiva. Por um lado, «as mulheres estão cada vez mais presentes, individualmente e como equipa (ex. râguebi, futebol), mas, por outro lado, «a sua representação é muito menos expressiva do que a masculina, mesmo dentro das mesmas modalidades». Como destaca a directora, esta exposição «permitiu colocar em diálogo a geração dos anos 1990, ou seja as primeiras mulheres do futebol feminino e as actuais, o que foi uma verdadeira descoberta para estas que não sabiam que tinham existido outras». 

A segunda exposição A Sorte dá Muito Trabalho (patente ao público) é evocativa de Mário Moniz Pereira, apelidado carinhosamente de Senhor Atletismo pelo seu papel nesta modalidade e cujo lema por este apregoado dá nome à exposição. Se, por um lado, como é enfatizado, «na exposição permanente a quantidade conta» − «trata-se de mais de um século de troféus» − com as exposições temporárias há um trabalho diferente a fazer: «tentamos trabalhar os objectos, mas sobretudo a memória, o imaterial, que é uma espécie de material incandescente do edifício humano, onde os objectos servem de âncora, mas a essência é a memória e o esquecimento, que é outra face da memória».

Não ignorando o papel das exposições como interfaces fundamentais com os públicos, Isabel Victor releva todo o trabalho de bastidores menos visível que foi preciso colocar em prática, e que em muitos aspectos, confessa, neste museu foi como «começar do zero». Uma das primeiras medidas foi repensar o museu com a elaboração de um plano estratégico, que nasceu de um trabalho de equipa − que faz ponto de honra em sublinhar − no início constituída por cinco pessoas − a quem apelida carinhosamente de «os cinco violinos». Foi preciso «identificar valores, missão, a cadeia de processos e procedimentos do museu. Quem é quem, o que faz e como. Trata-se de criar respeito uns pelos outros na estrutura interna». Por outro lado, é colocar em prática o lema: «o máximo de liberdade e o máximo de responsabilidade», que assume ser eixo clarividente de acção tanto na sua vida pessoal como profissional. Por essa razão considerou fundamental começar por definir um plano estratégico, integrador de princípios da gestão da qualidade, implicando horizontes temporais claros e que garanta o compromisso do museu com a tutela e a necessária autonomia, mas também, por sua vez, a responsabilização pelos resultados. Entre as prioridades deste plano estratégico (pensado até 2022, onde se inclui o plano financeiro) está a consolidação, o fortalecimento e a capacitação da equipa, que entretanto duplicou, e colocar em funcionamento várias valências, competências e áreas de saber do museu. É neste sentido que se tem investido, nomeadamente na área das reservas, na conservação e restauro, na renovação do espólio e na gestão do inventário de coleções, na investigação e na participação em redes de trabalho e cooperação com outros museus, designadamente com os museus vizinhos (ex. Museu de Lisboa, Museu Bordalo Pinheiro). A reformulação pontual da exposição permanente e a melhoria das condições de acessibilidade são aspectos igualmente previstos.

Outro projecto bandeira, e de grande aposta, é o desenvolvimento de um centro de memórias, que tem filiação em experiências anteriores da museóloga. O argumento é claro: «falta dar visibilidade às histórias de vida que estão por trás dos troféus». As sessões de recolha já tiveram início tendo por base a área do atletismo e seus atletas, e o trabalho perspectiva-se de continuidade. 

Está ainda prevista a extensão do Museu Sporting (com abertura prevista para o final de 2018) com um terceiro pólo no pavilhão João Rocha, recorrendo à linguagem do digital e das novas tecnologias.

Museu Sporting

  • Criação: 2004, 2016 (remodelação). Dois pólos: Estádio José Alvalade e Leiria
  • Tutela: privada, Sporting Club de Portugal
  • Colecções: várias (etnografia, fotografia, história, traje, filatelia, numismática) 
  • Colecção total: c. 37 334 objectos; colecção em exposição: c. 4 600 objectos
  • Área total de exposição (incluindo exp. temporárias): 1 000 m2 
  • Equipa: 10 pessoas 
  • Média de visitantes em 2017: Estádio José Alvalade − 18 899, Leiria − 14 930

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[1] Este texto foi originalmente publicado no Boletim do ICOM Portugal na secção “Museus & Pessoas”. Para citação:

Carvalho, Ana. 2018. “Museus & Pessoas: Isabel Victor.” Boletim ICOM Portugal, série III, n.º 12 (Junho): 69-77.


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