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Que formação em Museologia, hoje? Entrevista com Paula Menino Homem

Paula Menino Homem é directora do curso de mestrado em Museologia da Universidade do Porto desde 2014, e professora auxiliar no Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da mesma Universidade. É especialista na área da conservação preventiva. Doutorou-se em Museologia com a tese Corrosão Atmosférica da Prata: Monitorização e Perspectivas de Conservação Preventiva (2013). Na Universidade do Porto participa nos projectos Mu.SA − Museum Sector Alliance (2016-2019) e EU-LAC − Museums and Community: Concepts, Experiences, and Sustainability in Europe, Latin America and the Caribbean (2016-2020), coordenando algumas actividades. Esta entrevista toma como fio condutor o papel da formação em Museologia, não só em jeito de diagnóstico mas também de forma prospectiva, a partir da experiência da formação pós-graduada em Museologia da Universidade do Porto.

Ana Carvalho (AC) − O curso de Museologia na Universidade do Porto fará 25 anos em 2019. Que balanço é possível fazer?

Paula Menino Homem (PMH) − O mais correto será referirmo-nos à formação pós-graduada em Museologia, uma vez que foi assumindo diferentes formatos de cursos e, sim, em 2019, mais concretamente a 3 de Janeiro, terão passado 25 anos desde o primeiro dia de aulas, em 1994, do curso de pós-graduação em Museologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Activando memórias, foi um curso iniciado pela mão dos Professores Armando Coelho, Rui Centeno e Jaime Ferreira-Alves (Diário da República, II Série, N.º 96, de 24 de Abril de 1992). Embora fosse uma pós-graduação, tinha a duração de dois anos, abria para candidaturas apenas bianualmente, incluía um estágio de um ano e, para melhor articulação com os museus, funcionava de forma concentrada às segundas e terças-feiras. Pelo Decreto-Lei n.º 55/2001, de 15 de Fevereiro, que definia o regime da carreira dos profissionais da área funcional da Museologia, isto é, a carreira de conservador, foi considerado requisito de habilitação para recrutamento, a par com o curso de Conservador de Museu e dos mestrados em Museologia que existiam. Tempos idos, pois actualmente a realidade das carreiras é bem diferente, considerando a sua extinção e transição para a carreira geral de técnico superior, a partir do Decreto-Lei n.º 121/2008, de 11 de Julho, e da reforma da Administração Pública. Mas foi, na verdade, a oportunidade de actualização para muitos e o começo de um projecto de vida para tantos outros.

Apesar do percurso não ter sido fácil, muito especialmente no que diz respeito à equipa de docentes, que gostaríamos de ver aumentada e reforçada com elementos mais jovens, o balanço é muito positivo. Se assim não fosse, já teríamos assumido outras estratégias. 

De facto, embora nem sempre como desejaríamos, temos consciência da efectiva contribuição que temos vindo a dar ao sector dos museus/sociedade, a vários níveis, e sentimos muito orgulho por isso. Tem sido gratificante constatar como a nossa dedicação e a forma de perspectivar a formação dos profissionais de museus ou aspirantes a, estimulando a inclusão, a diversidade, a humildade e a generosidade científica, o trabalho colaborativo, interdisciplinar e em rede, o espírito crítico e criativo, a curiosidade, a investigação, o rigor, a experimentação e a actividade prática, a resolução de problemas concretos, o vivenciar de experiências à escala (inter)nacional, a partilha, a resiliência, a busca pela felicidade, enfim, como temos conseguido potenciar e gerar conhecimento e ser agentes de transformação de pessoas e, através delas, de políticas e práticas de instituições pelo país, estimulando e alavancando desenvolvimento.

Foi ainda muito gratificante, após um processo de avaliação externa pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), em 2013, conseguir a acreditação, sem condições, do actual curso de mestrado em Museologia.

De facto, com o tempo, as relações à escala (inter)nacional entre universidades/áreas científicas/cursos/investigadores/docentes/estudantes e instituições culturais/museus/profissionais foram crescendo, diversificando-se, fortalecendo-se e aprimorando uma comunidade de prática, cujo consolidado desenvolvimento continuamos a fomentar. 

AC − A formação em Museologia não tem sido estática ao longo dos anos. Que aspectos têm mudado mais?

PMH Ao nível do formato, têm-se registado mudanças, sempre no sentido evolutivo da tentativa de adaptação a novas realidades, tendencialmente em maior harmonia com contextos de mais justa e ágil mobilidade, quer ao nível académico, quer profissional. A pós-graduação, como tal, teve cinco edições até 2004, a par com o desenvolvimento da área da Museologia ao nível do doutoramento, em regime tutorial. De 2005 a 2009, o formato assumido foi o de curso integrado de estudos pós-graduados em Museologia, com uma especialização (um ano), um mestrado (dois anos) e um doutoramento (cinco anos). Foi a partir de 2009 que o mestrado (Deliberação 2978/2009; Diário da República, II Série, N.º 210, de 29 de Outubro de 2009) e o doutoramento (Deliberação 3242/2009; Diário da República – II Série, N.º 235, de 4 de Dezembro de 2009) se autonomizaram. Este último, em parceria com a Faculdade de Belas-Artes, também da Universidade do Porto. 

Em 2016 foi criado o doutoramento em Estudos do Património (Despacho Reitoral N.º 4723; Diário da República, II Série, N.º 67, de 6 de Abril de 2016), que se estrutura a partir dos doutoramentos em Arqueologia, História da Arte Portuguesa e Museologia, descontinuando-os e assumindo as áreas como de especialidade.

No que diz respeito ao mestrado, actualmente, o período de formação é de dois anos (total de ciclo), o regime de abertura para candidaturas ao primeiro ano é bianual e o funcionamento é diurno e intensivo (mantém-se às segundas e terças-feiras). Em 2013, no âmbito do processo de avaliação externa, que já referi, a equipa considerou oportuno evoluir não para um novo formato, mas para uma outra estrutura de curso, que foi aprovada e é a que está em vigor. Passado o tempo regulamentado, estamos novamente em fase de avaliação externa e de exercício de reflexão quanto à oportunidade e à melhor forma de introduzir alterações, não deixando de atender às nossas dificuldades no que diz respeito a contratações.

Esta evolução foi sendo sempre acompanhada de uma perspectiva de identificar, o mais cedo e claramente possível, as necessidades da sociedade, do sector, dos profissionais, isto é, de antecipar, estimular e de fazer face a diferentes desafios. Identificámos áreas-âncora, como as relacionadas com a epistemologia da própria Museologia, colecções, conservação (preventiva), comunicação, arquitectura, educação e gestão, nunca deixando de considerar as tecnologias digitais, de abordagem transversal. A ideia da oferta de diversas unidades curriculares de opção acabou por definhar um pouco, sendo o seu número substancialmente menor em relação ao pretendido, devido aos constrangimentos de contratação de pessoal docente. Actualmente, para além dos estudantes serem livres de escolher qualquer unidade curricular da Universidade do Porto, as oferecidas pela equipa limitam-se a identidades e representações, e a museus e centros de arte contemporânea.

Apesar da relativa estabilidade das designações das unidades curriculares, as abordagens e metodologias educativas foram, naturalmente, actualizando-se, quer do ponto de vista da evolução dos conceitos e do conhecimento, quer das dinâmicas dos contextos museológicos e características dos estudantes.

AC − Quais são hoje as principais expectativas dos alunos quando chegam ao curso de Museologia? Identificas diferenças em relação ao que esperavam os alunos dos primeiros cursos?

PMH Os objectivos gerais do curso estão bem definidos e centram-se na promoção e desenvolvimento de competências para investigar e desenvolver uma actividade profissional no contexto dos museus, de forma global. Por isso, quando nos chegam, os candidatos sabem o que procuram e o que o curso potencialmente lhes pode proporcionar. Relativamente às primeiras turmas, os estudantes de hoje são bem mais jovens, na sua maioria acabados de sair de um primeiro ciclo e, por isso, ainda com hábitos de trabalho académico. Para eles é mais fácil apre(e)nder algumas metodologias, mas são muito, quando não totalmente, inexperientes quanto à actividade em contexto museal. Por vezes trazem referências de colegas mais velhos que lhes passam a experiência no curso e o seu carácter esforçadamente teórico-prático. Chegam já com a perspectiva de desenvolver um estágio, no segundo ano, e não tanto uma dissertação, por exemplo. Consideram-no como uma via para alcançar um campo em que gostariam de ganhar experiência, trabalhar e onde seriam felizes. Noutros casos, tipicamente de mais velhos, surgem-lhes oportunidades de trabalho em contextos museológicos, até de responsabilidade, e buscam uma forma de se equiparem de competências, no sentido de garantirem um melhor desempenho.

O elemento em comum entre todos os estudantes será a paixão pelos museus. A grande diferença é que os dos primeiros cursos eram já, na esmagadora maioria, profissionais de museus, bem mais velhos e experientes. Vinham com grande conhecimento quanto ao contexto museológico de proveniência e com problemas a resolver, normalmente, bem identificados. Com o seu ritmo de actividade prática buscavam, preferencialmente, soluções práticas para tais problemas. O interessante é que, com a formação, passavam a tomar consciência de muitos outros, que nem imaginavam. De início, alguns estranhavam algumas perspectivas, mas depois entranhavam-nas. O esforço pelo alargar de horizontes sempre foi e continua a ser grande. 

AC − Que competências procuram hoje estimular nos alunos? Há necessidade de explorar novas competências?

PMH Desde o início que, para além do desenvolvimento de competências científicas e técnicas inerentes às diferentes actividades, procuramos estimular também as mais relacionadas com a inteligência emocional, social e comportamental, como ética e deontologia, motivação e pro-acção, pensamento crítico e criativo, trabalho em equipa e em rede, capacidade para tomar, suportar e comunicar decisões, e investigar e resolver problemas, autónoma ou integradamente, organizando e liderando equipas. As competências associadas à literacia digital e informacional são, claro, muito importantes para nós, no sentido de preparar para uma mais fácil aprendizagem ao longo da vida e penso que será necessário explorá-las de forma mais profunda e sistemática.

AC − A necessidade de qualificar ou actualizar os profissionais de museus/estudantes no âmbito das competências digitais para melhor responder aos desafios do mundo digital e das tecnologias pode ser considerado um desafio também para a formação formal. Até que ponto estão incorporadas estas preocupações na formação da Universidade do Porto? Há outros passos a dar nesta matéria?

PMH Sem dúvida. Essas preocupações acompanham-nos desde o início, em 1992, numa perspectiva interdisciplinar. Na altura, a disciplina chamava-se “Informática Aplicada”, mas logo a partir da segunda edição (1996-1998) assumiu a designação de “Tecnologias da Informação”, evoluindo para “Novas Tecnologias”, a partir de 2004, e para a actual “Tecnologias da Informação e Comunicação em Museus”, a partir de 2009.

A evolução nesta área é grande e muito rápida e temos consciência da necessidade de reforçar a formação dos profissionais sob pena de não conseguirem lidar com os desafios da era digital. Temos também consciência da importância e necessidade de se facultar o acesso à formação, suprindo distâncias com o menor esforço possível, fomentando as competências individuais de gestão de tempo e a formação ao longo da vida. As plataformas digitais, a formação online e a formação não-formal e informal validada encaixam no perfil de infraestruturas que poderão permitir atingir tais objectivos. Nesse sentido abraçámos com grande motivação e expectativa o projecto Mu.SA − Museum Sector Alliance (2016-2019) financiado no âmbito do programa Erasmus + e coordenado pela Hellenic Open University (Grécia). O foco incide mais detalhadamente em alguns perfis profissionais que antecipamos e vemos emergir e suas competências essenciais. Para ir ao encontro dos diferentes interesses, a formação considera um curso de oito semanas em formato MOOC, isto é, online, aberto e massivo, para introdução às competências básicas, digitais e transferíveis, e, em sequência, um curso de especialização de seis meses, em que se integram as componentes do ensino à distância, presencial e em contexto de trabalho.

AC − Que tensões verificas hoje no modelo profissional dos “conservadores”. Outras designações têm vindo a ser apropriadas, como “curador” ou “museólogo”. Que perfil imaginas hoje para o profissional de museu?

PMH É uma questão que daria para uma abordagem bastante extensa. De forma breve, penso que não havendo cursos de conservador de museus, não fará muito sentido continuar a assumir a designação. Se a formação que evoluiu é em Museologia, então, quem a possuir, é museólogo. A designação para o profissional que assume as mesmas funções nucleares deverá também evoluir, em conformidade com a formação. 

O facto de um arqueólogo, ou um biólogo ou outro profissional investigar colecções num museu, por exemplo, e contribuir para a ciência não fará dele um museólogo. Não tem a formação especializada, que, em meu entender, deve exigir-se, nem pode exercer as mesmas funções, embora haja áreas de convergência e crucial articulação, e possa ser considerado um profissional de museu. Mas continuará a ser um arqueólogo, biólogo ou…

Portanto, quanto ao perfil do profissional de museu, e considerando o carácter inclusivo do contexto, temos mesmo de falar no plural. Tenho pena de não ter assistido ao encontro Qu’est-ce qu’être, Aujourd’hui, un «Professionnel de Musée» en Europe? (Paris, 5 de Junho 2018) organizado pelo ICOM Europa, ICOM França e com o apoio do ICTOP (Comité Internacional do ICOM para a Formação de Pessoal) sobre esta questão. A reflexão conjunta faz-nos falta e há que actualizar e rever, considerando os perfis que vão emergindo, muito alavancados pelas tecnologias digitais, e perspectivando, o mais possível, os que o futuro suscitará. Embora considere que a discussão não se terá esgotado na reunião de Paris, estou ansiosa por saber a que conclusões terão chegado os colegas. Talvez o ICTOP possa abrir um fórum de discussão e ter as perspectivas dos que se interessam.

AC − Entre a formação e a investigação sobre Museologia nas universidades e o mundo da prática ainda identificas distanciamentos? De que forma poderiam esses distanciamentos ser ultrapassados?

PMH Sim, ainda identifico, embora reconheça também substanciais melhorias, com resultados mais equilibrados entre ambas as componentes. É neste equilíbrio que acredito e pelo qual me tenho debatido.

Considero que os distanciamentos que subsistem podem ir sendo ultrapassados através de metodologias e dinâmicas educativas direccionadas e comprometidas. É claro que estas só podem ser delineadas e implementadas se as políticas educativas e as políticas culturais se articularem e suportarem a existência de recursos. A vontade e o empenhamento existem. Tem de haver investimento em recursos, tanto humanos como materiais, da parte quer das universidades, quer dos museus. No global, uma sólida aposta em infraestruturas de investigação/experimentação/validação/implementação, no desenvolvimento de protocolos de colaboração e em projectos integradores. 

AC − No âmbito da formação, como têm superado a separação que muitas vezes se sente no terreno entre a teoria e a prática?

PMH Desde o início que tentamos essa superação. Adoptámos um modelo que implica que os estudantes desenvolvam os seus trabalhos em contexto real de museu. Logo desde as primeiras aulas, os estudantes são convidados/auxiliados a escolher uma instituição onde gostariam de trabalhar, articulando os objectivos definidos para cada unidade curricular, numa lógica de integração de perspectivas e de evitar a construção de falsas e redutoras compartimentações. Uma vez no museu, a opção por determinada colecção/objecto estimula a investigação, que extravasa o espaço do museu para territórios de diferente escala, e as múltiplas e transversais abordagens, devidamente articuladas mas, em simultâneo, autonomizadas no sentido de se constituírem os diferentes elementos de avaliação requeridos às unidades. Esta lógica, para além da visão de conjunto de acções/interacções/sobreposições, fomenta ainda a gestão de tempo e de esforços, evitando/minimizando perdas com dispersão e pulverização dos estudantes por contextos e assuntos desconexos. No caso dos estudantes que são já profissionais em museus, é esse o contexto que, logicamente, é potenciado. Em qualquer dos casos, sempre objectivando-se contribuir para a resolução de problemas.

Os museus são assumidos, o mais possível, como contexto de desenvolvimento de aulas de diferente tipologia, com aulas teórico-práticas, trabalho de campo e práticas laboratoriais, na medida em que são também vistos como laboratórios em si mesmos. Não obstante esta perspectiva, a FLUP equipou-se de infraestrutura laboratorial apetrechada de equipamento científico, onde outro tipo de aulas teórico-práticas e práticas laboratoriais são desenvolvidas, especialmente as relacionadas com a área da gestão de risco/conservação preventiva. É uma infraestrutura que mantém relações de sinergia com outras, complementares, dentro e fora da Universidade do Porto. 

A comunidade de prática, especialmente por via da organização de visitas de estudo e reuniões científicas de diferente tipologia, é o contexto privilegiado de reflexão conjunta e debate de ideias e experiências, de partilha e questionamento do saber, do saber como e do saber fazer, para (in)validar e fazer progredir o saber, enfim, evoluindo na potenciação e construção de conhecimento. É também grande o esforço pelo garante do acesso à informação e ao conhecimento produzido, e partilhado através de publicações, e há que realçar a biblioteca que tem sido constituída, actualmente exponenciada por via das publicações e das bases de dados digitais.

Uma oportunidade de maior aprofundamento e consolidação da integração no mundo real dos museus ocorre também no segundo ano, principalmente com o desenvolvimento de estágios (de 400 horas) e de projectos. Mesmo que os estudantes optem pela alternativa de uma dissertação, têm de explorar casos de estudo concretos. Também nesta fase do curso, qualquer das três alternativas exige uma abordagem equilibrada entre a componente teórica e a prática.

AC − Como observas a oferta excessiva (será mesmo excessiva?) de cursos de mestrado no país, em confronto com a fraca empregabilidade nesta área (a admissão nos museus por concurso público é praticamente inexistente, deixando de fora novas gerações). Como podemos conjugar estas duas dimensões? 

PMH O número de cursos já foi bem maior e excessivo, sim, se pensarmos que em 2010-2011, no auge da oferta, havia 12 cursos a abrir candidaturas na área, alguns a formar profissionais todos os anos e desde a década de 1990. Actualmente há cerca de metade. 

Embora as universidades não devessem ser condicionadas a modas e a contingências de mercado de trabalho, a realidade é que o são. Do ponto de vista da gestão de expectativas e da sustentabilidade, no seu largo espectro, não tenho hesitações em considerar que é importante conjugar as duas dimensões. Conhecer a realidade e dinâmica do contexto-alvo é crucial e concordo que atender ao número de cursos e de vagas será importante, tal como adequar a oferta formativa. Formar não para a ilusão, mas para o esforço da concretização do sonho. Para isso, tal como houve um abanão no sector da educação, no sentido da contenção da oferta, devia haver um abanão no sector cultural no sentido de uma política de dignificação dos profissionais dos museus, de equilíbrio de recursos humanos e de diminuição da sua precariedade. Infelizmente, o drama da fraca empregabilidade é transversal a várias áreas, com especial incidência no sector público e a que a educação e as universidades não são imunes, mas sabemos todos como a da cultura é sempre uma das mais sacrificadas, especialmente quando em enquadramentos de crise. A cultura não é perspectivada como potencial motor de desenvolvimento transversal. Não é assumida nem incorporada como tal no tecido organizacional da sociedade. É uma questão de (des)educação e muitos passos há a dar para que se venha a resolver.

Portanto, a (re)estruturação da oferta poderá ser factor de diferenciação entre a desilusão/desistência e a resiliência/alcance de objectivos, pela qualidade das competências.

Por isso, também não hesito em sublinhar a importância da formação do desenvolvimento de competências, para além das científicas e técnicas, como as emocionais, sociais e comportamentais, que já fui mencionando. Pensar não apenas para a escala nacional, mas para o mundo. Capacidade e pró-acção e resiliência poderão enraizar, de forma resistente mas flexível, uma dinâmica privada criativa, inclusiva e multifacetada do ponto de vista da gestão, e científica e tecnicamente robusta, mesmo que jovem. Temos alguns exemplos corajosos disso. Mas as políticas sociais e económicas devem estar em harmoniosa articulação, pois o desenvolvimento da actividade privada necessita de incentivos e apoios, especialmente em fase inicial. Não é fácil e, para muitos jovens, é ainda assustadora. Mas acredito que pode ser um órgão de colaboração/prestação de serviços, uma estrutura mais leve e ágil que contribua para a dinâmica e estímulo do sector e evolua com o seu desenvolvimento, numa relação sinérgica de ganho-ganho. Neste contexto, há que articular melhor e potenciar mais a existência de algumas unidades que existem nas universidades ligadas ao empreendedorismo e à incubação de empresas. O problema é que na área das humanidades e ciências sociais não há hábitos de empreendedorismo e de criação do próprio posto de trabalho, e é importante que a formação contribua também para a ajustada alteração dessa perspectiva. 

Para além dessa vertente, há que formar para a criação/aproveitamento de oportunidades. Considerar os múltiplos museus que pulularam pelo país. O número é avultado e, em muitos casos, a designação é abusiva. Não os reconheço como tal. Mas reconheço-lhes potencial de mudança, de integração de uns profissionais e de valorização de outros. Essas unidades, tendencialmente de pequena escala, dentro e fora do sector público, que nalguns casos não são mais que salas de exposições, podem ser aproveitadas como locais onde/para os quais se desenvolvem projectos, numa lógica de transformação de mentalidades e, em sequência, de materialidades. Não são processos rápidos, mas, muitas vezes, têm resultados evolutivos e felizes, conduzindo à melhoria da estrutura do equipamento cultural e à contratação de profissionais habilitados. Para além disso, esses mesmos contextos podem conduzir à consciência, da parte dos profissionais que já neles trabalham e das suas lideranças, da necessidade de formação específica na área da Museologia, o que poderá ser ainda mais interessante para os cursos.

Formar para a perspectiva de longo prazo, não deixando de planear o médio e de aproveitar o curto. Na pior das hipóteses, não há como não pensar na natureza e nas suas leis implacáveis. Nada dura imutável para sempre, nem os bons nem os maus tempos. As equipas não poderão ser as mesmas para sempre. A renovação de gerações terá forçosamente que acontecer. É uma inevitabilidade, sob pena de encerramento das infraestruturas e do colapso do sistema, em que, muito sinceramente, não acredito.

Não obstante, o facto é que qualquer das gerações em causa, tipicamente em tempos de crise, é penalizada: uma porque não encontra forma de ser feliz ao ver as equipas alargadas e o trabalho melhor distribuído, evitando níveis de exaustão castradores de criatividade e de evolução; a outra, porque não encontra oportunidades de trabalhar com estabilidade e ser feliz. Cabe aos museus debaterem-se por forma a contrariar a sua situação. Cabe às universidades formar para a coragem e a capacidade de enfrentar e superar os desafios e as adversidades. Caberá a ambos aliar esforços, até porque muitos personagens actuam em ambos os cenários.

AC − Com o processo de Bolonha, alguns cursos de Museologia, antes com abertura de dois em dois anos, passaram a estar abertos todos os anos. Como observas este impacto? Poderiam haver neste contexto alternativas?

PMH Com apreensão e receio pela sustentabilidade da formação, na lógica da questão anterior. São muitos os profissionais a sair para o mercado de trabalho e não há política cultural, articulada com as outras, que facilite a sua legítima integração e quando esta acontece, quase sempre não é de forma digna, constituindo-se um completo desrespeito pelo investimento conjunto nacional na formação dos profissionais, um insulto à sua dignidade e uma amputação dos direitos dos cidadãos a ter oferta de serviços culturais com profissionalismo e qualidade.

O curso de mestrado em Museologia da FLUP tem-se posicionado como alternativa, pois funciona em regime de abertura a candidaturas ao primeiro ano apenas de dois em dois anos. O modelo vem desde a pós-graduação que lhe deu origem, conforme já disse. Claro que todas as decisões têm consequências e, do ponto de vista estatístico e de avaliação, os números nem sempre são a favor, pois temos menos alunos a sair com o grau e, em relação directa, menos contributos científicos em termos de trabalhos finais de curso. Para além disso, ainda somos confrontados com o argumento de que não há distribuição de serviço que justifique a contratação de docentes que não apenas em regime de contrato de curta duração, para suprir necessidades em algumas áreas curriculares do primeiro ano. Não se enquadrando na lógica de funcionamento-padrão, há situações em que são necessários ajustes e sistemas de gestão muito rígidos e padronizados, que nem sempre o permitem da forma como gostaríamos. A experiência diz-nos ainda que também perdemos estudantes, pois, no ano em que não abrimos, alguns candidatam-se a outros cursos congéneres. Portanto, a pressão das universidades para a abertura anual é grande, mais directa ou indirectamente. 

Não obstante, temos tido sempre a felicidade de atrair estudantes e, atendendo às dimensões em apreciação, a equipa considera que é um modelo que tende a um maior equilíbrio, privilegiando a qualidade em sacrifício da quantidade. 

AC − Nos últimos anos, a crise no contexto das universidades também levou à reformulação dos cursos e dos seus programas, seja ao nível de mestrado como de doutoramento, muitas vezes visando cortes cegos de cima para baixo. Como tens observado esta questão? Que impacto tem sido este?

PMH Quando os cortes são racionais e fundamentados em critérios discutidos, acordados e irrefutáveis de qualidade dos resultados globais dos cursos, vejo com alguma naturalidade e sensatez. Quando a decisão assenta apenas numa lógica de redução cega de despesas, especialmente com pessoal, então encaro com preocupação e indignação, embora mantenha espírito positivo e tente perspectivar como contexto de oportunidade para pensar e agir diferente e evoluir. 

Ao nível da área disciplinar, espero que não tenha efeitos na formação especializada dos profissionais de museus. Acredito que não terá. 

Ao nível material, especialmente os mestrados, têm sofrido sérias limitações às despesas e isso tende a situações de potenciação de recursos da casa, à endogamia e perda de visão crítica externa, o que é altamente negativo e há que contrariar o mais possível.

Ao nível dos recursos humanos, o estrangulamento do pessoal docente é grande. Tende a matar-lhes a motivação e a exaurir-lhes a energia, até para se debaterem contra a situação. É facto que a necessidade obriga a aguçar o engenho na busca de soluções que permitam ir dando resposta, na medida da qualidade que se pretende elevada, e há relações virtuosas de sinergia que se estabelecem, sem dúvida. Sou completamente a favor de um modelo de gestão que restringe ao máximo o desperdício, evitando autismo de recursos humanos, pulverização e multiplicação de esforços sem criação de valor. Mas sou contra a falta de visão quanto à necessidade de investimento de retorno seguro na contratação ajustada de pessoal. O equilíbrio entre investigação teórica aplicada e a prática que a estimula, (in)valida e faz progredir é cada vez mais frágil. Sem pessoal docente não há acompanhamento de qualidade de estudantes, nem em contexto de espaço universitário, nem em contexto de espaço museológico. O problema alastra-se ao pessoal não-docente, com consequente sobrecarga administrativa para os docentes. Não defendo contratações cegas, mas as instituições necessitam de pessoas. De pessoas de diferentes gerações, com estabilidade e força anímica que permitam uma visão e plano estratégicos de progresso.

AC − Que mudanças são expectáveis nos próximos anos com relação à formação pós-graduada em Museologia? O que era preciso mudar?

PMH A sua dinâmica não será imune às políticas e dinâmicas culturais. A manter-se uma ausência de política de desenvolvimento, o definhar do sector arrastará o definhar da formação. Mas acredito que tal não acontecerá. Os cursos têm é de ter, também eles, capacidade de adaptação às mudanças. A era da informação ou a era digital obriga a isso e se querem verdadeiramente formar profissionais capazes de incorporar e evoluir com a mudança, têm de formar para o desenvolvimento das competências necessárias. Não quero, com isto, dizer que se formem para se substituírem a profissionais especializados em empresas prestadoras de serviços. Dado o carácter dos cursos, poderá haver estudantes que tenham já uma (pós)graduação prévia especializada e até será muito interessante que isso aconteça, mas serão situações de excepção. O mais importante será desenvolver competências para uma salutar autonomia essencial da instituição/profissional e a capacidade de diálogo com especialistas, com verdadeiro entendimento de todo um léxico complexo, em que haja a capacidade de definição do que se pretende e de discussão quanto às soluções propostas, para uma tomada de decisão fundamentada e consciente dos resultados. Não uma aceitação passiva por falta de conhecimento e de espírito crítico.

Há ainda que melhorar a democratização do acesso à formação. Não se aprende com os erros das decisões históricas e continuamos com políticas de macrocefalia e esvaziamento do interior. É nítida e até escandalosa a concentração dos cursos na linha de costa. O esforço que os estudantes/profissionais do interior e respectivas famílias fazem para deslocações, logística e manutenção longe de casa é mesmo muito grande. Isso é factor de inibição de progressão para uma formação de segundo ciclo ou mesmo de abandono, especialmente quando os pedidos de bolsas não são atendidos. Haveria interesse em modelos de formações de carácter misto, conjugando componentes presenciais, cruciais, e outras mais à distância.

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Esta entrevista foi publicada originalmente no 12.º número do Boletim do ICOM Portugal (“Entrevista com Paula Menino Homem.” (conduzida por Ana Carvalho) Boletim ICOM Portugal, série III (Jun. 2018.): 29-45.



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