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Voltar a colocar no mapa o Museu do Chiado

Emília Ferreira, 16 de Fevereiro de 2018, Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, Lisboa. Foto de Ana Carvalho

Emília Ferreira é desde 1 de Dezembro de 2017 directora do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, em Lisboa. Alia o profissionalismo com a paixão de fazer as coisas, e a inquietude de quem tem sempre perguntas para fazer. Há pouco mais de um mês na direcção do museu, fomos até ao Chiado para conhecer melhor o percurso de Emília Ferreira, as suas motivações e as ideias que traz para este museu. Por Ana Carvalho

Estamos numa das principais áreas nevrálgicas da vida cultural da cidade de Lisboa. Entro no Museu do Chiado, uma instituição centenária ao serviço da representação da arte portuguesa do séc. XIX à contemporaneidade. Percorro o museu labiríntico, onde ainda se perscruta os vestígios do antigo Convento de São Francisco onde foi instalado, apesar da roupagem contemporânea. O passo não é demorado. À hora marcada sou recebida por Emília Ferreira, no seu gabinete, com um sorriso aberto, e sob a luz quente do final de tarde.

A pergunta sai de chofre, sem grandes preâmbulos: como se descreve? Se num primeiro instante a interrogação oferece surpresa, a resposta é segura e reflectida. A curiosidade é uma das características definidoras de Emília Ferreira, como pessoa e profissional, e o fio condutor do seu percurso. «Não vejo lógica na definição de um percurso linear e muito dirigido a um horizonte exclusivo». Sempre gostou de várias coisas diferentes. Na adolescência, por exemplo, era o desenho, a escrita e a dança: «precisava de cada uma dessas coisas para que cada uma funcionasse», sublinha. É um traço que prevalece até hoje: «tenho uma curiosidade em leque» e assume vários interesses – não no sentido do homem dos sete instrumentos – «mas preciso de relacionar muitos assuntos» para chegar à compreensão do mundo. Aos 15 anos apaixona-se pela filosofia, «precisamente porque não era uma área linear: atraiu-me o aspecto da curiosidade que enforma o exercício da filosofia». Termina a licenciatura em Filosofia (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) em 1990, mas ainda no terceiro ano do curso ingressa no mundo profissional, aos 22 anos, para dar aulas de português como língua estrangeira, descobrindo para si própria o prazer de «passar a outros o conhecimento que se tem».

Uma trajectória multifacetada

A escrita é um dos elementos estruturantes do seu percurso, em diferentes formatos e géneros – do romance aos contos, à crónica, à crítica literária, à literatura infantil e à escrita científica – tendo, aliás, recebido vários prémios literários no âmbito da sua obra ficcional.

«O espaço museu sempre me atraiu muito», admite, mas é em 1992 que aflora o mundo dos museus de forma mais específica. Isso acontece no âmbito da colecção Grandes Museus de Portugal do jornal Público, onde colaborou como redactora e investigadora. Essa experiência de contacto com a história dos museus, dos seus edifícios e colecções teve influência no momento de escolher o tema para a sua dissertação no mestrado em História da Arte Contemporânea, que concluiu em 2001, na Universidade Nova de Lisboa. A escolha recaiu sobre a história dos museus de arte no séc. XIX, com a dissertação História dos Museus Públicos de Arte no Portugal de Oitocentos: 1833-1884. Este percurso de investigação acabaria por ser aprofundado com uma tese de doutoramento em História da Arte Contemporânea na mesma Universidade (2010) sobre a Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola (Palácio Alvor, 1882), exposição da qual viria a nascer o Museu Nacional de Bellas Artes e Archeologia (actual Museu Nacional de Arte Antiga). O tema mereceu maior aprofundamento pela necessidade de preencher lacunas sobre o conhecimento existente até então e pelos vários mitos que recaíam sobre a exposição. Esta tese visou, assim, compreender os contextos em que se realizou a exposição, o que foi feito, como e com que conhecimentos, contribuindo globalmente para um maior entendimento da história dos museus em Portugal. Em 2017, a tese foi publicada em livro – Lisboa em Festa: A Exposição Retrospetiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola, 1882. Antecedentes de um Museu, integrando o oitavo volume da colecção Estudos de Museus (Direção-Geral do Património Cultural e Caleidoscópio).

O atributo de investigadora é porventura o “chapéu” mais abrangente da actividade de Emília Ferreira. Para além do seu perfil multifacetado na qualidade de escritora, assume-se como curadora e educadora. Enquanto curadora independente (a par com funções na área educativa e na investigação) desenvolveu uma extensa actividade, inicialmente para o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (a partir de 1997), mas também na Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, em Almada, onde colaborou entre 2000 e 2017, sendo que em 2010 passou a ter vínculo à função pública. De um modo geral, ao longo dos últimos 20 anos, organizou várias exposições de arte contemporânea para diferentes organizações como curadora independente, onde se destacam a retrospectiva Dominguez Alvarez, 770, Rua da Vigorosa, Porto (2006) – com Ana Vasconcelos e Melo –, a exposição itinerante Rui Sanches. As Margens da Linha (2006 e 2007) e Mily Possoz, uma Gramática Modernista (2010), entre outras.

A colaboração com vários municípios, pessoas e organizações diferentes ao longo destes anos é consistente com um processo de aprendizagem que exigiu acima de tudo flexibilidade, como reconhece: «aprendi a trabalhar em redes distintas e com constrangimentos de vários tipos». Neste sentido, refere-se não apenas aos condicionalismos de ordem financeira (díspares entre as organizações com as quais trabalhou), mas também às limitações dos próprios espaços expositivos, aludindo, por exemplo, ao caso da Casa da Cerca pelas dificuldades de trabalhar em edifícios históricos adaptados, cujas características intrínsecas nem sempre se coadunam com as exigências contemporâneas de um espaço museológico. Esta experiência diversificada de contextos permitiu-lhe, ainda, não só «aprender a trabalhar com os tempos da função pública», mas também lidar com «muitas maneiras de funcionar e abordagens diferentes».

Os museus, uma questão de missão

Falamos de motivação. Pergunto sobre o que a continua a motivar no trabalho em museus. É peremptória: «as pessoas merecem o melhor de nós, é uma questão de missão». Emília Ferreira encara a função pública como algo que tem como objectivo final o público, «que canaliza para o público a devolução de serviços vários que são pagos com os impostos dos cidadãos». E acrescenta: «no caso dos museus estamos aqui para devolver com juros. Há uma responsabilidade por parte das instituições. Quando o grande público não percebe o que nós estamos a fazer, é porque nós não sabemos comunicar o que estamos a fazer – por muito que nos custe admiti-lo. Há uma série de circunstâncias às quais temos de conseguir dar a volta, uma delas é falar de forma mais clara, explicar o que andamos a fazer.»

Comunicar de forma clara é preciso

A clareza da comunicação foi um tópico que surgiu várias vezes ao longo da conversa. Sobre os museus de arte contemporânea, em particular, Emília Ferreira é categórica: «não comunicam bem para um público alargado», salvo raras excepções. Mas explica porquê: «de um modo geral, confunde-se especialização com hermetismo no discurso». Esta é uma lição que retira da sua experiência no jornalismo. Reconhece que a clareza não é uma questão fácil, mas na sua opinião «comunicar é muito mais do que mostrar que se domina o código». Defende que é possível “aprender a ver” nos museus – referindo-se concretamente à arte contemporânea –, pois «eu própria aprendi a ver»; e adianta: «as pessoas percebem se nós quisermos chegar até elas». Cita Einstein, ao afirmar que «se não conseguimos explicar alguma coisa claramente é porque não a entendemos». Neste sentido, compreende a clareza na comunicação também como um exercício de modéstia e humildade. E vai ainda mais longe, referindo o exemplo da biologia: «uma célula que não partilha a sua informação morre». Por outro lado, não concorda que «a comunicação seja um nivelamento por baixo», e defende, por sua vez, que «a clareza não é o mesmo que simplismo».

A reflexão sobre o género nos museus: a arte de perguntar

Além de investigadora do Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa, Emília Ferreira colabora num projecto de investigação internacional liderado pela Universidade de Victoria (Canadá). O projecto pretende estudar as condições de visibilidade de intervenção das mulheres do ponto de vista das colecções, das educadoras nos museus, e como artistas. Trata-se de uma rede (em expansão) que integra investigadoras, mulheres artistas e educadoras de vários países e organizações universitárias (Canadá, Estados Unidos, Inglaterra, Noruega, Itália, Portugal). A rede é constituída essencialmente por mulheres, não de forma propositada, como esclarece Emília Ferreira, mas «porque os homens geralmente não trabalham estas questões».

O desconforto pela «permanência da vontade de exclusão» sobre o papel das mulheres que sentiu durante largos anos na academia, quer no campo da filosofia, quer na história da arte levaram-na a interrogar-se sobre os contributos das mulheres artistas na arte, como foi o caso dos estudos que fez sobre Ofélia Marques (1902-1952) e Mily Possoz (1888-1968), entre outras artistas. Por outro lado, este interesse não está desligado das suas convicções pessoais: «sou feminista, desde que me lembro».

Neste contexto, faz sentido perguntar: como é que os museus portugueses têm abordado a questão do género? Na perspectiva de Emília Ferreira o género «não tem sido tratado, tem sido aflorado. De alguma maneira até se tentou diversificar a discussão em alguns casos. Mas de um modo geral, o que me parece é que estas coisas estão muito camufladas». Referindo-se a um inquérito que distribuiu recentemente em museus, na sua maioria de arte contemporânea, sublinha: «tive essa noção com as não respostas que recebi a questões como – quantas artistas tem na colecção? Quantas exposições fez de mulheres artistas individuais? Quantas mulheres artistas participam nas colectivas? Em termos de museus, penso que tem que haver um olhar sério sobre as suas colecções, tem que haver uma interrogação. Eu gosto de continuar a fazer perguntas: porque é que não há mais mulheres nas colecções? Porque é que as que existem não estão estudadas? Porque é que continuamos a olhar para o que foi escrito sobre determinada artista e não se olha para a sua obra no conjunto?»; e atira: «é preciso começar a olhar paras as obras, os museus têm essa obrigação: olhar para as suas obras e interrogá-las». No entanto, também não ignora que para isso também contribui a existência de recursos humanos e financeiros.

Voltar a colocar o Museu do Chiado no mapa

Pelo Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado têm passado vários directores num curto espaço de tempo. Emília Ferreira sucede a Aida Rechena (directora do museu desde 2016) após a demissão desta, e em regime de substituição. Os problemas são vários e, por sua vez, os desafios são múltiplos. Emília Ferreira reconhece que é um museu que tem tido pouca visibilidade por várias razões, entre estas a falta de verbas. Sublinha a necessidade de imprimir uma nova dinâmica no museu, «voltar a chamar a atenção para a sua existência», «atrair os públicos e os mecenas». Esta é entendida como uma prioridade.

Encontra-se em preparação a programação para 2018 e para os anos seguintes, nomeadamente a definição de uma nova política expositiva. Neste sentido, está a ser repensada a possibilidade de expor as colecções do museu de forma mais “permanente”, situação que não tem sido possível concretizar devido, por um lado, à exiguidade dos espaços e, por outro lado, à necessidade de organizar exposições temporárias. Outras questões correlacionadas prendem-se com a identificação das necessidades prementes do próprio edifício – atendendo a que faz 24 anos desde que foi objecto de renovação pelo arquitecto francês Jean-Michel Wilmotte – e, como sublinha a directora: «começar a pensar na possibilidade de o edifício ter a sua própria revolução». Refere-se neste contexto aos edifícios contíguos ao museu que ficaram disponíveis, entre os quais o do governo civil e o da polícia. «O que me foi pedido é que comece a pensar em gizar um pré-programa para se lançar o museu como uma instituição maior em termos físicos no sentido de vir a acolher uma complementação das suas colecções.» Este aspecto é central para que o museu «volte a ser o que foi a sua missão inicial – a arte contemporânea – ou seja, de modo a que não fique «fechado nos anos de 1970. Temos nas colecções obras depois de 1970, mas a integração dessas obras não tem sido continuada – temos várias lacunas. Há colecções privadas à guarda do Estado que faria todo o sentido que fossem integradas no museu». Por outro lado, a possibilidade de reformular os espaços existentes não só permitiria cumprir os requisitos «de um museu nacional, mas de arte contemporânea, que tem exigências em termos de escala que não se compadecem com áreas diminutas e de grande compartimentação inflexível». Além disso, esta poderá ser a oportunidade de rever as condições de acessibilidade física dos espaços, como realçou.

Falamos na hipótese de se concretizar o crescimento físico do museu, com os olhos postos no horizonte. Nesse sentido, sublinha: «se este museu pudesse vir a crescer para ter um espaço expositivo maior que permitisse, de facto, ter uma exposição semi-permanente que desse a conhecer a arte portuguesa de 1850 até à contemporaneidade, este seria um museu único a vários níveis. Tanto quanto eu sei não há mais nenhum museu de arte contemporânea que inclua a segunda metade do séc. XIX. Esta é uma mais-valia, uma vez que é na segunda metade do séc. XIX que se começam a definir grandes linhas que vão enformar o início do séc. XX. Essa relação que aqui podemos fazer seria preciosa».

Emília Ferreira entende que o «museu não é só um espaço para expor obras, tem que ser também um espaço em que o diálogo em torno das obras possa ser potenciado. E para isso tem que haver também lugar, espaço. Não temos ainda essa estrutura. No momento em que isso acontecer, este museu, neste sítio da cidade vai ser seguramente uma mais-valia para a nossa identidade artística».

Museu Nacional de Arte Contemporânea − Museu do Chiado

  • Fundação: 1911. Tutela: Direção-Geral do Património Cultural
  • Tipologia: arte, de 1850 à contemporaneidade
  • Colecção total: 5321 obras
  • Área total de exposição (incluindo exp. temporárias e recepção): 1101 m2 (edifício Rua Serpa Pinto) + 504 m2 (edifício Rua Capelo)
  • Equipa: c. 33 pessoas
  • Média de visitantes 2017: c. 88 158

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Este texto foi originalmente publicado no Boletim do ICOM Portugal na secção “Museus & Pessoas”. Para citação:

Carvalho, Ana. 2018. “Museus & Pessoas: Emília Ferreira.” Boletim ICOM Portugal, série III, n.º 11 (Fev.): 52-59. http://icom-portugal.org/boletim-icom-pt/


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