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Que desafios para a integração das tecnologias e do mundo digital nos museus?

Alexandre Matos é especialista na área da documentação de colecções. Doutorou-se em Museologia com a tese SPECTRUM: Uma Norma de Gestão de Colecções Para os Museus Portugueses (2012). Na empresa Sistemas do Futuro coordena o departamento de formação e investigação, e é professor afiliado na Universidade do Porto. Faz parte da direcção do CIDOC (Comité Internacional do Conselho Internacional de Museus para a Documentação). A entrevista toma como fio condutor os desafios da aplicação das tecnologias e do mundo digital nos museus. Abandonado que está o debate que opõe meio físico vs meio digital, que desafios e oportunidades são hoje centrais para os museus? Da ausência de uma política e estratégia museológica a nível nacional comprometida com estas matérias, ao papel das tutelas, das lideranças, das estratégias de comunicação, à obsolescência tecnológica, à actualização de competências digitais e à necessidade formação… os tópicos em análise são múltiplos e transversais para a actividade dos museus.

Ana Carvalho (AC) − Vivemos numa sociedade cada vez mais tecnológica e digital. Como é que observas a relação dos museus com as novas tecnologias? Que diagnóstico podes traçar?

Alexandre Matos (AM) − Vivemos numa época de transformação em diversos sentidos, com impactos ainda pouco estudados, em diferentes áreas. E, como reflexo, sentimos essa transformação nos museus enquanto instituições. Na relação dos museus com as tecnologias (já não as chamaria de novas) consigo ver um lado extremamente positivo e um lado também muito negativo que é o da exclusão e da impreparação das instituições para esta realidade.
Pela positiva verifico com agrado a quantidade impressionante de bons projectos que aliam o que melhor existe nos museus com as tecnologias mais recentes, colocando à disposição dos públicos uma quantidade enorme de recursos para fins educativos, de investigação, de entretenimento, entre outros. Há alguns casos que poderia apontar como exemplo, mas acho que todos estão um pouco atrás do que já é disponibilizado pelo Cooper Hewitt, em Nova Iorque. Bem sei que é um museu da Smithsonian e tem recursos para o fazer. Mas se consultarem o website do museu, explorarem as colecções ou se o visitarem, e acederem à nova experiência desenhada pela equipa do museu – integrando as tecnologias sem as tornar o foco da visita, mantendo em primeiro lugar as colecções – perceberão que poucos museus nos dão a informação tão bem tratada e organizada.

Pela negativa destaco, antes de mais, a falta de estratégia para o universo digital. É comum ouvirmos que as tecnologias são algo que, mais cedo ou mais tarde, têm que ser tidas em conta nos diversos sectores dos museus. Mas avaliando o caso dos museus em Portugal, que conheço melhor, são poucos os que definem uma estratégia para a área digital, e depois agem de acordo com o que planeiam a curto ou médio prazo. Não quero com isto dizer que as tecnologias sejam um fim, antes pelo contrário, são um instrumento para cumprir a missão dos museus, mas sem estratégia definida andamos constantemente a navegar à vista, sem objectivos claros, sem propósito.

Um outro aspecto negativo, que não tem directamente relação com as tecnologias, mas está a montante, é o que observo sobre a falta de formação existente na área da cultura digital de grande parte dos profissionais de museus e do escasso tratamento que o digital tem nos cursos de formação na área. Esta falta de formação, combinada com os escassos recursos humanos nos museus, nomeadamente os municipais, é a tempestade perfeita para desperdiçarmos a oportunidade para utilizar as tecnologias em benefício dos museus, das colecções e, acima de tudo, dos visitantes.

AC − Tem havido algum investimento na gestão de colecções, nomeadamente a criação de catálogos digitais. Como tem sido esta evolução e que passos são necessários dar ainda?

AM − O investimento em gestão de colecções que tem existido ao longo das últimas décadas é, na minha opinião, manifestamente escasso para as necessidades que existem nesta área. A determinada altura, durante o período do anterior quadro de financiamento europeu e no âmbito do POC (Programa Operacional da Cultura), tivemos um conjunto de iniciativas nesta área com resultados significativos. Está, aliás, por fazer um estudo mais aprofundado sobre o impacto do POC nesta matéria e noutras. No entanto, segundo o que observamos nos dados mais recentes sobre a digitalização do património cultural e o que vou constatando nos diversos museus que visito a nível profissional, há um enorme “oceano” de objectos, de colecções, que estão nas sombras, sem registos acessíveis, sem estudo, sem informação básica recolhida, porque a maioria dos museus mantém as portas abertas com um esforço sobre-humano e não tem a capacidade de manter uma equipa dedicada ao registo, estudo, catalogação e divulgação das colecções. É este, provavelmente, o maior entrave face às potencialidades que as tecnologias permitem actualmente. Mas poderia elencar outros factores de bloqueio, como a ausência da normalização dos conteúdos, o desconhecimento das normas, a preocupação constante com ferramentas em vez de uma preocupação em solidificar conceitos a médio e longo prazo, a ausência de planificação, já para não falar da estratégia ou da partilha de recursos e resultados.

Se nos centrarmos nos catálogos digitais existentes, veremos que reflectem um esforço dos museus num determinado momento. Mas quantos desses catálogos têm tido actualizações de conteúdos e de tecnologia? Há, para além do exemplo que citei na anterior questão, inúmeras soluções tecnológicas interessantes, com custos de implementação não muito elevados, mas a sensação que tenho é que as tutelas (uma parte delas pelo menos) pensam na publicação de um catálogo digital da mesma forma que pensavam num em papel. Ou seja, publica-se num website e está resolvido o problema – e já somos digitais! A publicação de um instrumento desta natureza implica um compromisso com os públicos online dos museus que deve ser entendido pelos que têm a responsabilidade de gerir os museus.

Julgo que um dos primeiros passos a dar sobre os catálogos digitais seria fazer um estudo mais profundo sobre o ponto de situação actual em Portugal, incluindo a participação dos museus portugueses na Europeana ou em projectos como a Wikipedia ou a Wikimedia, por exemplo. Seria interessante recolher essa informação e propor passos a seguir com base em informação mais sólida.

AC − Existem vários projectos a decorrer em museus nacionais portugueses, nomeadamente com o Google Art. Que desafios estão implícitos e qual pode ser o impacto destes projectos?

AM − O Google Art, ao contrário do que acontece com a Europeana, é um serviço prestado pela Google que tem méritos e benefícios para os museus e colecções em termos de visibilidade, no entanto, julgo que os museus deverão percorrer o seu caminho preparando-se previamente para este tipo de parcerias e definindo por si próprios as plataformas onde pretendem estar. Para dar um exemplo, que nos foi mostrado por Merete Sanderhoff (Danish National Gallery) na última conferência anual da Acesso Cultura, há imagens de objectos das colecções nacionais disponíveis com marca de água nos catálogos digitais dos museus da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) que estão disponíveis em alta resolução e sem qualquer restrição no Google Art. Não parece um contra-senso? Em todo o caso, soubemos também na mesma altura, pela voz de David Santos que essa situação estava identificada e seria em breve modificada. Sabendo que a relação com marcas de grande impacto como a Google, a Microsoft ou a Apple é sempre tentadora (e pode ser muito proveitosa se bem pensada pelos museus), julgo que os museus, nomeadamente os nacionais, terão que pensar previamente a sua relação com o mundo digital.

Se pensarmos em casos de sucesso a nível internacional, sabemos que isso não acontece do dia para a noite! Não acordamos a pensar que seria bom ter uma digitalização de todas as colecções dos museus portugueses e no dia seguinte acordamos com tudo digitalizado e publicado na Internet. Desde o momento em que se define uma política de colecções que contemple uma estratégia digital e um plano de documentação, e digitalização, até ao momento da sua concretização podem decorrer anos, aliás, decorrem vários anos. Num trabalho que não é visível e é extenuante em termos de recursos humanos, técnicos e financeiros e que não tem, maioritariamente o suporte institucional que merece. Recomendo a leitura do artigo de David Santos «O Museu Inimaginado. Mediação e Coleções Online: o Caso do Rijksmuseum» (2016) ou, de forma mais aprofundada, o caso de estudo «Democratising the Rijksmuseum» de Joris Pekel da Europeana Foundation. Aí temos a noção do trabalho efectuado durante o período em que este museu esteve fechado para poder agora apresentar estes resultados no seu catálogo digital.

Respondendo de forma mais directa à parte final da pergunta, diria que os maiores desafios, são pensar onde queremos estar daqui a 10 ou 20 anos e definir uma política de colecções e uma estratégia digital que nos possam levar a esse ponto.

AC − Os museus, assim como outras organizações de serviço público, terão de se actualizar para melhor responder a cidadãos mais proficientes no mundo digital, em termos da adequação de meios (tecnológicos, humanos e financeiros). No caso da política museológica nacional, até que ponto estão incorporadas estas preocupações?

AM − Respondo de forma provocatória: a que política museológica nacional te referes? Onde é que ela está nos últimos tempos? Eu sou da geração de profissionais de museus que começou a trabalhar nos anos 1990, ainda esta área digital era uma miragem em Portugal, mas que viveu com entusiasmo a criação de instrumentos como a Rede Portuguesa de Museus (RPM) e a aprovação de uma Lei-Quadro de Museus Portugueses (2004) que, em muitos pontos, foi inovadora. Vivi a criação do Instituto Português de Museus e confesso que na altura imaginei que teríamos os instrumentos, do ponto de vista formal, para colocar os museus no lugar onde deviam estar – como lugares de referência para o debate, educação e inovação. Mas, ao contrário do que pensava na altura, hoje temos uma DGPC que cuida de uma diversidade enorme de assuntos com menos meios, uma RPM que é um departamento dessa Direcção-Geral, numa visão absolutamente centralizadora sobre os museus e a museologia nacional, e uma Lei-Quadro que é muito facilmente esquecida pelo poder político (às diversas escalas) que faz o que bem entende no que diz respeito à criação ou apoio a museus das mais variadas tutelas. Se voltámos atrás em todas estas matérias, como podemos pensar o futuro e a integração de recursos tecnológicos, humanos e financeiros que possam lidar com as expectativas dos nossos públicos relativamente ao que é digital? É complicado. Ainda mantemos, em grande medida, os mesmos programas de formação na oferta da RPM, por exemplo. Os profissionais de museus são confrontados com estes desafios, mas não têm os instrumentos que os ajudem a enfrentar as novas questões e áreas.

Eu espero que a breve trecho haja uma tomada de consciência relativamente à política museológica nacional e que o governo, as diferentes tutelas e os diversos responsáveis do sector se sintam pressionados a dar atenção aos problemas que sentimos desde que se instalou este “esquecimento”! Também sei que o ICOM Portugal tem tomado posição e alertado para algumas situações que mencionei, mas julgo que nos cabe a todos, enquanto profissionais, ou melhor, enquanto cidadãos, pensar o que pretendemos para os museus e agir em conformidade, exigindo aos responsáveis políticos os recursos necessários para um desenvolvimento sustentável e consolidado dos museus portugueses.

Se consolidarmos estes recursos será mais simples pensar, em termos nacionais, em incorporar na política museológica nacional os instrumentos que permitirão aos museus dar uma resposta cabal aos desafios do mundo digital. Seria mais simples, por exemplo, pensar numa efectiva partilha de recursos técnicos e humanos pelos museus que integram a RPM para a digitalização das colecções, seria mais fácil desenhar programas de formação informados sobre os objectivos definidos, permitiria o desenho de projectos com um portal de pesquisa global para as colecções, arquivos e bibliotecas de museus, entre outros exemplos. No entanto, julgo que teremos que esperar mais algum tempo para merecer a atenção de quem decide!

AC − Para além da limitação de recursos que outros desafios enfrentam os museus portugueses na aplicação das tecnologias?

AM − Eu identifico à partida dois grandes desafios que estão interconectados: a análise das tendências e da obsolescência tecnológicas. Uma e outras estão interligadas e são muito importantes na análise que os especialistas precisam de fazer antes de adoptar determinada tecnologia. Vou tentar explicar com exemplos mais práticos. Imaginemos que optamos por incluir, em determinada exposição, uma mesa digital que nos permite, através de um software específico, interagir com determinados conteúdos relacionados com uma exposição. Este hardware, e muitas vezes o software, tem um período de vida curto, fruto das constantes actualizações dos sistemas operativos que os suportam, ou da inexistência de peças compatíveis para substituir alguma usada, entre outras situações. O software também necessita de actualizações e de correcções ao longo dos anos. Um e outro podem ter custos de operação elevados e uma manutenção tão específica que se torna incomportável para os museus em Portugal (imagino que muitos já terão visto exposições em que este tipo de hardware estava desligado, não?). No entanto, não vejo a preocupação com este tipo de situações reflectida em muitos dos cadernos de encargos que vou consultando.

Aliás, como a tecnologia é ubíqua, estes desafios das tendências e da obsolescência tecnológica aplicam-se a qualquer área relevante para o trabalho nos museus. Na documentação, por exemplo, sendo a área que mais domino, percebemos há muitos anos atrás que a melhor forma de combater o entusiasmo por uma nova tendência ou o perigo de falência de um sistema de informação por estar completamente ultrapassado, é através da “arma” da normalização. Ou seja, normalizamos processos, estruturas de informação, procedimentos, terminologia, recursos técnicos, etc., tendo em mente que dessa forma podemos mudar para um novo sistema de informação, substituindo um que se tornará obsoleto a breve prazo, sem correr um risco demasiado elevado.

Julgo que o mesmo poderá acontecer, certamente com outras “armas”, nas áreas da conservação, educação e divulgação nos museus. As ferramentas que utilizam devem considerar o carácter permanente deste tipo de organizações, sem deixar de considerar que os museus são, ou devem ser, lugares de discussão permanente com uma função social cada vez mais relevante, que criam produtos (visitas, exposições, metodologias de conservação, entre outros) que não devem ficar reféns de determinada tecnologia.

A partir daqui poderíamos falar em LOD (Linked Open Data) ou acesso aberto, por exemplo, como outros desafios importantes que os museus têm pela frente. Mas isso daria um dia inteiro de conversa…

AC − Meio físico vs meio digital? Parte-se do princípio que um não exclui o outro… Como se alcança esse equilíbrio?

AM − Alcança-se o equilíbrio sem perder muito tempo com a discussão sobre uma suposta aniquilação do primeiro pelo segundo que é, desde os primeiros temores sobre os museus virtuais, completamente vazia. Por muito que os desenvolvimentos tecnológicos possam alterar a nossa vida de forma significativa, como o têm feito nas últimas décadas, não me parece que os museus vejam o seu fim com a digitalização dos seus espaços e das suas colecções. É uma falácia. Aliás, sobre esta matéria e de uma forma mais geral, relacionada com o futuro da Humanidade, vários autores afirmam que é a cultura, as artes, a literatura, a filosofia, a linguística, ou seja, áreas com lugar privilegiado nos museus que nos permitirão contrabalançar a omnipresença das tecnologias nas nossas vidas. Ainda recentemente ouvi o cientista António Damásio e outros especialistas falar sobre este ponto no documentário 2077 – 10 Segundos para o Futuro, produzido de forma brilhante pela RTP.

No entanto, devemos ter o cuidado de desmistificar esta relação entre o meio físico e o meio virtual com alguns dados científicos que nos mostram a interligação entre o aumento das visitas físicas aos museus e a disponibilização da informação sobre as colecções e o museu online de determinados museus. E poderíamos levantar aqui algumas outras vantagens do virtual sobre o físico. Em termos de educação e acesso, em termos de segurança, com a criação de sistemas de informação sobre património cultural em risco e/ou roubado, ou ainda, no que diz respeito às indústrias criativas e à utilização das colecções como ponto de partida para novas criações e produtos. Há inúmeras situações onde essa vantagem é observável facilmente. Eu costumo dizer que não podemos ter todos uma primeira edição dos Lusíadas, uma carta escrita pela mão do Fernando Pessoa, uma pintura do Amadeo de Souza-Cardoso, mas se pudermos ter no ecrã uma boa digitalização dessas obras que permita a sua apreciação, que nos provoque a necessidade de ver o original, que nos emocione, teremos, como o código postal, meio caminho andado, não é? Eu vi pela primeira vez a informação sobre as exposições que a Gulbenkian e o Museu Nacional Soares dos Reis organizaram (em Lisboa e agora no Porto) sobre o Almada Negreiros na Internet, mas não deixei de ir a ambas e devo dizer que ganhei muito com isso.

AC − Repensar os museus na sua relação com o mundo digital pressupõe também lideranças mais informadas e capacitadas de modo a integrar a transformação digital na missão e estratégia de cada museu. Como observas esta questão? Que passos podem ser dados?

AM − Esta é uma questão para nós que trabalhamos em museus, num museu, e que a determinada altura assumimos ou pensamos em assumir cargos que impliquem pensar e decidir o futuro. Em Portugal, fruto do esvaziamento que observamos, das competências dos cargos de direcção dos museus, ou mesmo com a extinção desses cargos, colocamos este tipo de decisões nas mãos de pessoas que poderão não ter as competências para o fazer. Um vereador da cultura, numa das centenas de câmaras municipais do país, não terá a capacidade, que um museólogo ou um conservador de museu tem, para reflectir sobre o papel que o museu deve ocupar em determinada comunidade ou território. No entanto, se reflectirmos sobre a situação ideal é necessário que quem desenha as políticas e quem as executa, tenha sempre em consideração o tempo em que vive. Se não o fizer, corre o risco de criar um museu que serve apenas uma franja muito curta de públicos, ideia que espero estar ultrapassada. Quero com isto dizer que, por mais resistências que existam – e ainda existem algumas – com o mundo digital, no museu actual a sua inclusão é uma necessidade. Não integrar essa transformação digital na missão e estratégia dos museus é descurar todos os aspectos em que as tecnologias trazem vantagens e, acima de tudo, é deixar de parte uma geração que utiliza as tecnologias diariamente para quase todas as actividades. Desde o turismo, à indústria, passando pelo comércio, pelos serviços, em qualquer escala que possamos imaginar, as tecnologias são um dado adquirido. É assim que julgo que os líderes nos museus devem contemplar a sua inclusão.

Não podemos esperar que todas as pessoas tenham o mesmo tipo de conhecimentos nesta área que lhes permita reflectir sobre esta área de uma forma global, mas há especialistas no mercado, há empresas que trabalham especificamente neste sector, há alguma formação genérica nesta área (infelizmente quase toda fora do país) que podem ajudar os museus a lidar com esta matéria. Um outro caminho a explorar seria incluir esta questão nas competências de uma RPM refundada e mais participativa, transpondo para Portugal o que a American Alliance of Museums e o Arts Council (UK) têm feito.

AC − Um dos argumentos que sustenta a necessidade dos museus abraçarem as tecnologias é a oportunidade de conquistar os públicos mais jovens – os nativos digitais, que no seu quotidiano utilizam já novas formas de aceder à informação. Mas não há também o risco de um museu demasiado tecnológico excluir outros públicos que não são porventura seduzidos pelo aparato tecnológico?

AM − Esse é o equilíbrio que se mencionava atrás e que é fundamental perceber. Como disse, não se trata de uma aniquilação de um lado pelo outro, mas sim uma integração ponderada e não invasiva das tecnologias. Há formas de o fazer e há museus, como é o caso do Cooper Hewitt, que referi anteriormente, que o conseguiram com enorme sucesso. O desenho daquilo a que o museu chamou New Experience é um processo que deveria ser observado por muitos museus, e digo observado e não copiado, para que cada um fosse capaz de pensar nas melhores soluções de integração tecnológica em benefício dos seus públicos e das suas colecções. Um erro comum nestes processos é pensar que uma solução serve para qualquer circunstância e copiar algo que teve sucesso num outro local, para o nosso contexto, no entanto, as circunstâncias num e noutro lado raramente são as mesmas e os alicerces sólidos que sustentaram o sucesso noutro lado, podem não existir quando o importamos.
Aqui o conhecimento sobre os públicos dos museus e o conhecimento sobre as colecções são fundamentais para a escolha do aparato tecnológico que permite a mediação entre ambos. Esquecer um dos lados da equação museu-público-colecção é entregar a estratégia digital do museu ao acaso, ou seja, é o mesmo que não ter um rumo e objectivos definidos.

AC − A necessidade de qualificar ou actualizar os profissionais de museus no domínio das competências digitais é um outro desafio. O que pode ser feito?

AM − O que pode e está a ser feito nesta matéria é criar novas formas de aquisição destas competências pelos profissionais dos museus. O ICOM Portugal tem, aliás, nesta matéria, como noutras, um papel activo com a participação no projecto Mu.SA – Museum Sector Alliance (2016-2019), que tem como objectivo identificar um conjunto de perfis de trabalho nos museus e criar produtos de formação, na forma de MOOC (Massive Open Online Courses), seguido de um curso de especialização, que procurarão dotar os profissionais com as competências digitais necessárias para enfrentar estes desafios. É um projecto que estou a gerir, em representação do ICOM Portugal, no qual está também envolvida a Universidade do Porto e a Mapa das Ideias, que espero possa vir a marcar a diferença no contexto da formação em Portugal para o sector dos museus.

Um outro aspecto fundamental, na minha opinião, é uma maior aproximação entre os museus e as universidades para debater as necessidades dos primeiros não cobertas pela oferta das segundas. Mantemos, em muitos casos, cursos de formação na área da museologia sem grandes alterações durante anos, sem qualquer preocupação com as questões levantadas pela cultura digital, inovação e tecnologia. Alteramos quase toda a oferta formativa para cursos de pós-graduação, mestrado e doutoramento, esquecendo que uma parte significativa do trabalho nos museus é relacionada com a prática. Ou seja, precisamos de formação que ensine como limpar um objecto, a documentar uma colecção, a produzir uma exposição, a receber visitantes, a mediar o conteúdo com os públicos, entre muitos outros aspectos práticos. As anteriores pós-graduações de dois anos permitiam esse tipo de ensino mais prático que julgo ser cada vez mais necessário.

Este tipo de formação poderia também lidar com algumas competências digitais de carácter mais técnico que são fundamentais para a integração das tecnologias nos museus. Em Portugal, na área da documentação, digitalização e gestão das colecções há uma escassez enorme de recursos com as competências apropriadas para desempenhar as tarefas aí exigidas, não só pela ausência da formação, mas também porque grande parte das tutelas ainda não percebeu a mais-valia que esse trabalho de bastidores pode representar para os museus em particular e, indirectamente, para outros sectores como o turismo, por exemplo. Talvez este espaço volte a ser ocupado pelas universidades – não sei, mas sei que é o único caminho para que os profissionais, actuais e futuros, possam adquirir as competências necessárias. Neste caso, a formação em contexto de trabalho, que funciona/funcionou durante muito tempo nos museus (uma nota aqui para alertar para o perigo que os museus estão a enfrentar com a quebra deste tipo de formação), com a transmissão do conhecimento dos mais velhos para os mais novos em muitas áreas, não tem como ser efectiva, porque as gerações anteriores não têm, na sua maioria, o conjunto de competências agora necessárias.

AC − Que mudanças são expectáveis para os museus nos próximos anos com relação às tecnologias?

AM − As mudanças que iremos ter que enfrentar prendem-se com diversos tipos de tecnologias. No que diz respeito aos sistemas de informação de museus teremos que enfrentar questões relacionadas com a web semântica, com a definição de melhores normas documentais, com a alteração de modelos sustentados por bases de dados relacionais, para modelos em bases de dados documentais, ou em termos mais técnicos, bases de dados No-SQL e com as novidades tecnológicas trazidas pelo próprio desenvolvimento da Internet, dos sistemas operativos e das linguagens de programação. Mas há outras áreas, como a divulgação, por exemplo, que terão de lidar com um aumento considerável de tecnologias na área da realidade virtual, por exemplo, ou com a entrada da robótica em conjunto com sistemas (ainda muito básicos) de inteligência artificial que terão no sector cultural um meio privilegiado de experimentação e desenvolvimento. Neste sentido, também a indústria dos jogos e do entretenimento terá uma relação cada vez mais próxima com os museus e com o património cultural em geral, mas aí seremos nós os fornecedores e eles os consumidores de conteúdos e de histórias que possam diferenciar os produtos que criam.

De forma mais genérica julgo que o sector dos museus sofrerá em todo o mundo uma mudança significativa na próxima década. Em muitos casos, vemos que os museus estão a abraçar essa onda de mudança, nomeadamente os museus com mais recursos, criando as bases para uma integração com o universo digital numa posição de liderança. Mas julgo que essa mudança terá velocidades distintas, sofrerá inevitavelmente recuos que permitirão alguns avanços posteriormente, mas o universo digital ocupará a breve prazo um lugar significativo, mas não intrusivo, nos museus.

Eu confesso-me curioso pelo futuro, pouco dado a saudosismos, mas atento à qualidade da transformação, para não retrocedermos nas questões realmente importantes. Penso que as tecnologias ajudarão a criar museus mais abertos e com maior significado para os públicos. Se assim for, estaremos no bom caminho!

Referências

Santos, David. 2016. “O Museu Inimaginado. Mediação e Coleções Online − o Caso do Rijksmuseum.” RP − Revista Património 4: 51-55.

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Esta entrevista foi publicada originalmente no 11.º número do Boletim do ICOM Portugal (“Entrevista com Alexandre Matos.” (conduzida por Ana Carvalho) Boletim ICOM Portugal, série III (Fev. 2018.): 22-36.



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