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“A minha arte pode viajar para a Inglaterra, mas eu não posso”

Projecto Museu da Migração, exposição “Call me by my Name: Stories from Calais and Beyond”, instalação “The Dignity of Life” © branding by Garden

[«A minha arte pode viajar para a Inglaterra, mas eu não posso», entrevista com Sophie Henderson conduzida por Ana Carvalho. Publicado em: A Inclusão de Migrantes e Refugiados: O Papel das Organizações Culturais (coord. Maria Vlachou, Acesso Cultura, 2017, pp. 65-71)]

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A migração não é um fenómeno novo, mas é um tópico de renovado interesse na actualidade, que não só é complexo como urgente. O Migration Museum Project (Reino Unido) tem vindo a trabalhar desde 2013, organizando exposições temporárias, programas e eventos sobre a emigração e imigração por todo o Reino Unido.

Sophie Henderson é directora do Museum Migration Project desde 2012, supervisionando a transição de organização voluntária para uma organização financiada. Antes disso, era advogada no Tooks Court, Chambers of Michael Mansfield QC, onde se especializou em imigração, asilo e direitos humanos. Foi também juíza do Asylum and Immigration Tribunal e defendeu recursos no Social Security and Child Support Tribunal. Email: [email protected]

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Ana Carvalho (AC) – A migração não é um fenómeno novo, mas é um tópico de renovado interesse na actualidade, que não só é complexo como urgente. Na sua opinião, como pode um museu fazer a diferença nestas discussões?

Sophie Henderson (SH) – Pode fazer a diferença porque podemos levar a discussão sobre migração para fora do debate aceso no contexto da política e da comunicação social, onde os argumentos tendem a ser apresentados em termos muito extremados e polarizados, e onde, por vezes, há uma escassez de informações mais realistas. Se levarmos o debate para um espaço cultural mais calmo – e o mundo cultural é onde as Pessoas estão habituadas a testar o que pensam sobre as coisas –, então, este é um benefício. Quando as pessoas vêem filmes, lêem livros ou visitam museus, fazem-no para ver o mundo através dos olhos de outras pessoas. Isso automaticamente faz com que questionemos as nossas próprias atitudes e a relação com as outras pessoas. Eu penso que é através do mundo da cultura que, muitas vezes, processamos as nossas respostas emocionais. Por vezes, as pessoas têm sentimentos complicados ou internamente inconsistentes sobre a migração. É o assunto de que todos falam hoje em dia – na verdade é um tema que se discute há décadas, mas agora o foco é particularmente intenso. Se pudermos ajudar a levar este debate para um espaço cultural bem informado, então penso que podemos dar um verdadeiro contributo para um debate público mais calmo e mais razoável sobre a migração.

AC – O Migration Museum Project tem vindo a trabalhar desde 2013, organizando exposições temporárias, programas e eventos sobre a emigração e imigração por todo o Reino Unido. Qual é a missão do museu?

SH – Temos agora uma sede permanente em Londres, mas a nossa aspiração é deixar uma marca a nível nacional, através de uma rede de parceiros ligados ao património e empenhados em dar visibilidade às histórias de migração que as suas colecções contêm. No passado, discutimos potenciais modelos para o Migration Museum Project, por exemplo, a possibilidade de ser uma entidade itinerante, percorrendo todo o país em contentores, ou como um centro de coordenação, a trabalhar em cooperação com outros museus para contar histórias de migração em contexto local e por todo o país. Mas, no final, sentimos que o tema da migração é tão importante e que a história do movimento de pessoas dentro e fora do país ao longo de centenas de anos é tão central para a nossa narrativa nacional que nada menos que um museu permanente dedicado à migração daria a dignidade e a proeminência que esta questão merece. Sendo Londres um dos lugares mais diversos da Grã-Bretanha, pensamos que seria a escolha mais natural para albergar o Migration Museum. Mas, reconhecendo que a história da migração na Grã-Bretanha tem sido – e ainda é – uma história de contornos nacionais e não apenas restrita a Londres, o nosso objectivo é trabalhar por todo o país, através do desenvolvimento de uma sólida rede de parcerias.

O Migration Museum Project pode contribuir para afirmar publicamente que a migração é uma parte suficientemente importante da narrativa nacional da Grã-Bretanha que merece ser apresentada numa instituição cultural própria. Na minha opinião, a temática da migração não merece nada menos do que isso. Esta é uma maneira de mostrar o que é culturalmente valorizado pela nação e de proporcionar um lugar onde as pessoas possam ser desafiadas a reflectir sobre o que realmente pensam sobre o tema da migração, porque este é um problema que realmente importa. Ao dar destaque à história da migração na Grã-Bretanha e convidando as pessoas a encontrar o seu próprio posicionamento sobre o tema – porque todos nós temos alguma ligação a histórias de migração no nosso passado, seja de imigração ou emigração -, estamos a convidar as pessoas a olhar para a história partilhada da Grã-Bretanha e para aspectos que temos em comum, ao invés de coisas que nos dividem.

Uma outra coisa importante que podemos fazer é envolver as pessoas contando histórias no museu, através da criação de conteúdos co-produzidos com as comunidades que estão representadas. Desta forma, penso que podemos juntar as pessoas e traçar temas comuns para ajudar a um melhor entendimento entre grupos e indivíduos.

AC – Em relação à exposição temporária, Call me by my Name: Stories from Calais and Beyondque esteve patente em Londres em Junho de 2016, como surgiu a ideia? Quais foram as motivações e os objectivos?

SH – Quisemos testar-nos a nós próprios abordando um tema contemporâneo particularmente premente, que era a actual “crise” dos migrantes e refugiados, com especial incidência para o campo de refugiados conhecido como a “Selva”, em Calais. A nossa curadora, Sue McAlpine, foi uma das pessoas particularmente interessadas nesse tema e esse foi também um estímulo importante. Enquanto a exposição estava patente ao público, a “Selva” estava sob constante ameaça de demolição, e era uma notícia de primeira página dos jornais. Foi um grande desafio comissariar e apresentar uma exposição sobre uma história que estava a mudar tão rapidamente.

Ao montarmos a exposição, quisemos abordar uma série de questões prementes que preocupavam as pessoas. Penso que muitas pessoas se interrogavam sobre o porquê de um campo de refugiados em Calais. E por que razão estavam lá seis mil pessoas – mais perto de Londres do que de Birmingham -, todas a tentar chegar à Grã-Bretanha, sendo que algumas delas morriam durante essa tentativa? Queríamos que as pessoas pensassem em como responder a estas questões e que considerassem quais poderiam ser as suas responsabilidades. Queríamos ir para além das manchetes dos jornais e do anonimato, e aprofundar a humanidade das histórias individuais das pessoas. Além disso, mostrar que este é um tema complicado, onde não há soluções simples, e que há uma série de opiniões legítimas. Queríamos reflectir essa variedade de vozes e não apresentar quaisquer respostas – simplesmente pedir às pessoas que reflectissem sobre quais poderiam ser as suas próprias respostas.

AC – Esta exposição utilizou diferentes meios de representação (arte, filmes, áudio, fotografia, instalações, recreações, etc.), apresentando obras de artistas emergentes e de artistas já reconhecidos, mas também a arte e os testemunhos de refugiados. Daí resultou um conjunto muito diverso em termos de recursos e de vozes.

SH – Todos os tipos de materiais foram utilizados e sentimos que foi isso que funcionou bem. Estamos muito habituados a ver imagens de refugiados em barcos sobrelotados no Mediterrâneo e agora talvez haja uma certa familiaridade ou até mesmo fadiga em relação a essas imagens. Pensámos que ao usar diferentes meios de representação seria uma maneira de apresentar as histórias e as questões de uma forma mais viva, no sentido de provocar e captar a atenção dos nossos públicos.

Por exemplo, tivemos uma instalação de coletes salva-vida (The Dignity of Life de Sarah Savage) que foram recolhidos numa praia em Kos (Grécia) e que foram deixados para trás por migrantes. Eram coletes salva-vida falsificados, cheios de material barato de embalagem, que na água arrastariam para baixo uma pessoa em vez de boiar, um tipo de coletes que é distribuído frequentemente por contrabandistas.

Também tínhamos fotografias, filmes e áudio. Havia um espaço onde se podia ouvir uma variedade de vozes, desde Nigel Farage a condutores de camiões em Calais, até aos próprios refugiados e pessoas que com eles trabalhavam. Tivemos uma fantástica exposição de arte feita no próprio campo de refugiados, incluindo pinturas e esculturas, e objectos extraordinários feitos a partir de objectos encontrados. Foram ainda expostas peças maravilhosas, muito inventivas, feitas de garrafas de plástico e copos, obras de arte inspiradoras. Também queríamos transmitir na exposição a pura energia criativa e o espírito das pessoas que se encontram no campo de refugiados. O que vemos na televisão é a lama, o frio e os incêndios, mas para além disso há música, livros e arte. Há uma vida cultural muito rica a acontecer e nós quisemos trazer esta dimensão para a exposição.

Um outro retrato muito pungente foi o de um artista refugiado de Mauritânia, chamado Alpha Diagne (posteriormente foi-lhe concedido estatuto de refugiado em França), cuja obra de arte apresentava uma legenda que dizia: “A minha arte pode viajar para a Inglaterra, mas eu não posso”. Uma outra pintura muito comovente foi a do filho de um refugiado sírio, que desenhou o seu pai a afogar-se.

Uma outra peça marcante, logo à entrada da exposição, era uma instalação escultórica, Wanderers, pelo artista Nikolaj Bendix Skyum Larsen. A instalação era constituída por cerca de 300 figuras anónimas apresentadas num plinto e representando as “hordas” de migrantes que são tantas vezes citadas na imprensa. À medida que o visitante percorria a exposição, emergia a humanidade destas pessoas e, no final, havia uma verdadeira recreação de parte de um acampamento de refugiados, com barracas e abrigos. Era esta a trajectória da exposição.

Projecto Museu da Migração, exposição “Call me by my Name: Stories from Calais and Beyond”, instalação “Wanderers” © Nikolaj Bendix Skyum Larsen

AC – O que aprenderam com esta exposição?

SH – A exposição foi muito visitada, atraindo mais de quatro mil visitantes em apenas três semanas. Por isso, percebemos que há um real interesse das pessoas em conhecerem e envolverem-se mais com temas provocadores e complicados como este, temas que podem causar eventualmente algum desconforto. Eu penso que isso acontece porque as pessoas querem realmente tentar entender as questões que envolvem a migração e quais são as suas próprias visões acerca do assunto. A maioria das pessoas não é simplesmente “pro” ou “anti” migração, mas ao invés disso tem perspectivas bastante complicadas; podem sentir que há demasiada migração, mas ao mesmo tempo sentem que a migração é, em muitos aspectos, benéfica para eles e para o país. As visões anti-migração não tornam as pessoas necessariamente fanáticas ou racistas. Por vezes, têm opiniões contraditórias dentro de si e têm dificuldade em reconciliá-las.

Uma outra coisa que aprendemos é que numa exposição como esta podemos envolver os visitantes de uma forma interactiva. Uma outra iniciativa muito apreciada foi a dos professores pop-up da Universidade de Oxford e da Open University, que estavam disponíveis na exposição para responder às perguntas dos visitantes em determinados momentos. Percebemos que há um grande potencial para colaborações académicas como esta, que podem ajudar a esclarecer aspectos da exposição por via de um conhecimento especializado, permitindo que se leve esse mesmo conhecimento para além das universidades, a públicos de arte não académicos.

Eu gostaria que pudéssemos ter prolongado a exposição por mais de três semanas! Tendo agora um espaço mais permanente, estamos a planear repor parte da exposição Call me by my Name: Stories from Calais and Beyond entre Abril e Julho 2017 e, posteriormente, montar uma nova exposição sobre momentos cruciais da história da Grã-Bretanha na perspectiva da migração.

Um outro aspecto que gostaríamos de melhorar é conseguirmos levar esta exposição a públicos diferentes – muitos dos visitantes, embora fossem etnicamente diversos, e abrangendo um grande leque de idades, eram de um modo geral visitantes altamente escolarizados e já bastante envolvidos com o sector cultural. Em contrapartida, os grupos escolares que visitaram a exposição com os seus professores eram tendencialmente de meios mais desfavorecidos e com muito menos envolvimento cultural prévio do que os nossos visitantes adultos. Idealmente, gostaríamos de alargar o nosso alcance de forma a trazer um tipo diferente de público adulto. Não temos os recursos necessários para levar esta exposição para fora de Londres, mas seria realmente interessante testar o seu impacto em diferentes áreas do país, particularmente onde as atitudes em relação aos migrantes são menos compreensivas.

AC – Da sua experiência, que conselhos daria a outros profissionais que pretendam planear actividades que envolvam as questões da migração e dos refugiados nos seus museus?

SH – Eu não pressuporia saber o que outros profissionais deveriam fazer, mas, se eu tivesse algum conselho, seria simplesmente não ter medo de abordar estas questões. Parece-me que a migração é um tema sobre o qual as pessoas têm realmente interesse. Devemos reconhecer que as pessoas têm perspectivas subtis e complicadas sobre a migração e que têm um desejo real de desfazer. Eu diria, olhe para suas próprias colecções e para a sua própria instituição, veja onde existem histórias sobre migração para serem contadas – porque certamente haverão histórias sobre migração – e dê-lhes visibilidade onde seja possível. Suponho que também quererão envolver o mais possível as comunidades para contar essas histórias, de forma a que as pessoas envolvidas realmente tenham um sentimento de pertença e sintam que isto vem – pelo menos em parte – delas próprias.

Algumas das peças da exposição Call me by my Name: Stories from Calais and Beyond foram criadas pelos próprios refugiados do campo de Calais, mas o resto da exposição, em grande parte, não o foi. Se levássemos esta exposição para fora de Londres, seria óptimo poder produzir mais conteúdos em co-criação, porque isso traz vida à narrativa. Por exemplo, poderíamos adicionar uma galeria no final da exposição dedicada à “viagem” pós-chegada, momento em que o migrante chega ao Reino Unido e requer asilo. A nossa exposição cobriu, em certa medida, as “viagens” extraordinárias que muitos refugiados e requerentes de asilo realizaram – por vezes através do Sara, depois através do Mediterrâneo e pela Europa, depois de Calais para a Grã-Bretanha. Mas depois disso, uma outra “viagem” muito longa começa frequentemente com o pedido de regularização do estatuto de requerente de asilo no Reino Unido. Isso pode levar muitos meses ou mesmo anos para ser concluído – essa é uma parte da história que frequentemente não é contada. No futuro, gostaríamos de abordar isso, contando essa parte da história em parceria com os requerentes de asilo que já chegaram ao Reino Unido, através da criação de obras de arte ou de outros meios.

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Ana Carvalho é museóloga. Com um percurso de mestrado e doutoramento na área da Museologia, actualmente é investigadora de pós-doutoramento no Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora. Publicou Os Museus e o Património Cultural Imaterial: Estratégias para o Desenvolvimento de Boas Práticas (Colibri, 2011), Museus e Diversidade Cultural: Da Representação aos Públicos (Caleidoscópio, 2016) e organizou a publicação digital Participação: Partilhando a Responsabilidade (Acesso Cultura, 2016). Autora do blogue No Mundo dos Museus e editora do Boletim do ICOM Portugal. É uma das fundadoras da revista MIDAS – Museus e Estudos Interdisciplinares.
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Aceda à publicação A Inclusão de Migrantes e Refugiados: O Papel das Organizações Culturais em português ou em inglês.


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