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CARNAVAL LITERÁRIO 1


Hoje é dia de CONTOS CORRENTES, mas excepcionalmente entraremos com outra coluna: CARNAVAL LITERÁRIO. A partir de hoje até quarta-feira de cinzas, postaremos contos de Menalton Braff para os que não vão cair na folia e também para os carnavalescos que tiverem um tempinho entre uma farra e outra. 

O conto escolhido para hoje é do livro
 À SOMBRA DO CIPRESTE - livro do ano do Jabuti 2.000.


Crispação

Farelos de pão, duas xícaras sujas de café, as flores verdes da toalha branca. Pela porta aberta da cozinha, penetrava o cheiro furtivo e fresco de um mundo encharcado, a débil e obsedante melopeia do céu em final debulha no chuvisqueiro nascido com o princípio dos tempos. O relógio, o elefante azul de gesso, o guardanapo, a pilha de pratos por trás da vidraça. Há mais de duas horas a vã procura do que se dizerem. A vida comum em descomunhão. Em dez anos atingiram a solidão, feriram de morte o sortilégio dos desvendamentos.

Cacilda foi quem primeiro percebeu os sentidos opostos, a distância aumentando na proporção das mútuas descobertas. E em seu desentendimento foi gerada a angústia das sendas irreversíveis. Rodolfo era contemplativo: devia ter vida interior suficiente para suportar longas jornadas sem um gesto, sem mover os lábios. Como admitir uma existência a não ser através de suas atividades, suas realizações?

Amaram-se, outrora, com ardor bastante para que ela julgasse o futuro um tranquilo desfiar do tempo. Projetavam ainda, exaltavam-se com pequenas satisfações, gastavam as horas conversando. Um dia
surpreendeu-se a monologar ao lado de um homem ausente. Companhia de corpo apenas. Há quanto
tempo acontecera a transformação?

Irritava-se, no início, com a inatividade tamanha e com os monólogos incomunicantes. Sofria os minutos vazios, as horas de compacto silencia. Então brigava, cortava com violência os liames de Rodolfo com sua interioridade inacessível, arrastava-o para a superfície do acontecer, tudo na esperança de que aquilo não passasse de algum contratempo. Tentou alterar-lhe os hábitos, vestiu-se como se vestiam as meninas na idade da conquista, leu, informou-se, consultou conselheiros de revistas mensais, invocou, voltou a brigar sem outro resultado que o distanciamento cada vez
maior. Percebeu a tempo que a prática de provocar Rodolfo desencaminhava suas relações para o impasse. Por isso, e depois de muito exercício, atingiu também aquela espécie de nirvana. Tornava-se melancólica, impacientava-se com o transcorrer dos dias perdidos.

Há mais de duas horas Rodolfo olhava para as mãos espalmadas sobre a mesa. De repente levantou a cabeça e olhou-a nos olhos.

− Sabe – disse ele simplesmente – estou doido pra tomar um cafezinho.

Cacilda estremeceu. Estava justamente a pensar que dali a pouco teria de sair sob o chuvisqueiro para comprar alguns gêneros que lhe estavam faltando. A voz de Rodolfo em clara concreção soara-lhe como punção aguda penetrando por fissuras de seu pensamento.

− Mas ...

O que era mesmo que precisava dizer? As mãos soltas no regaço reagiram à momentânea crispação e quedaram-se novamente a descansar, esquecidas dos tempos em que eram hábeis e capazes de mil realizações. Mas teria, então, em verdade, alguma coisa a dizer? Rodolfo continuava de olhos fixos nos seus, e eram dois olhos azuis que aguardavam, e era-lhe difícil agora saber exatamente o que, num reduzido instante, parecera-lhe forçoso dizer.

− É que me deu vontade de fumar um cigarro, sabe.

De nítido, apenas o desconforto da ideia inconclusa e da inutilidade das palavras.

− Pois é, mas não tem pó de café em casa.

O sorriso de Rodolfo transpareceu tão-somente no brilho dos olhos, que se tornaram mais claros.

− Não faz mal. Eu posso muito bem deixar o cigarro para outra hora.

Encolheu os braços, recolheu as mãos.

− Se você quiser...

− Não, não, nem pense mais nisso.

Rodolfo fixou-se então nas flores verdes da toalha branca, enquanto, pelo vão da porta, Cacilda podia ver os pintos do chuvisqueiro que encrespavam o cimento do quintal. E o chuvisqueiro por certo não passaria antes que se acabasse o mundo.


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