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Manifesto pelo Escotismo para todos.

A primeira parte de uma série de artigos sobre as competências – o sistema recém-escolhido como norteador dos Escoteiros do Brasil – está terminada. Mas existem questões mais urgentes que precisam ser tratadas neste blog. Uma outra vez, o que já se torna cotidiano, existem páginas no Escotismo que investem dinheiro em publicações para desinformar e confundir.

A página O Escotismo que Queremos, novamente mudando sua linha editorial (o que nunca ocorre para melhor), escreveu um “Manifesto pelo Escotismo Familiar”, seguido de diversos textos. Neles, mistura conceitos, retorce regulamentos e legislação, valendo-se de ironias e lugares comuns para logo tentar agradar a camada nostálgica e ruidosa do escotismo: aqueles cuja linha é a censura e a anulação de posicionamentos por considerá-los “políticos” e “ideológicos”. O autor afirma que conseguiu bastante apoio ao seu posicionamento. E, de fato, conseguiu:

– Continuem senhores! A família precisa ser o âmago dessas discussões de cunho íntimo do jovem.
Estejamos atentos à doutrinação ideológica!

– O grande problema são as pautas e agendas de militância ideológica e de gênero que não estão no mAAPa, mas são aplicados sem a autorização dos responsáveis preconizada pelo ECA

– O plano metodológico Escoteiro e muito rico com muitas frentes de atividades. O ruim é o método ficar em segundo plano, vi diversas lives da UEB e vi somente foco em ativismo político e ideológico.

– Movimento de apoio a família, exatamente isso, em que pese correntes deturpadoras dentro do movimento

– Quem deve procurar outra atividade é esta ralé progressista que distorce um movimento centenário

Sobre as ironias tratadas na página, nunca houve na pauta uma generalização tão torpe como o “Escotismo que Queremos” faz em relação aos escotistas – esta importante base do movimento que parece que sempre terá a culpa por todos os problemas, ainda por aqueles que não existem. O manifesto começa assim:

Parece que estamos gerando desconforto com nosso posicionamento e criando um incomodo em adultos que se julgam absolutamente livres para uma atuação autônoma no oferecimento de conteúdos não previstos no programa educativo, mas politicamente corretos. Nesse ponto cabe um destaque importantíssimo: precisamos COMPLEMENTAR o que já é ofertado, mas nunca sermos CONTRADITÓRIOS!

O desconforto criado não incomoda os “adultos que se julgam absolutamente livres”, mas toda a comunidade escoteira, a própria instituição e principalmente jovens que batalham para que os escoteiros sejam um pouco mais receptivos com o próximo (como reivindicado na Carta de Natal). Além disso, causa incômodo até mesmo na adesão do escotismo aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), cuja agenda contempla a igualdade de gênero e a erradicação das desigualdades, no posicionamento oficial sobre a homoafetividade e sobre a redução da maioridade penal.

O que faz a página, nos artigos seguintes, é confundir ainda mais. Ela tenta relacionar a tolerância como uma posição “político/partidária” e “ativista”, e a partir daqui diz que isso deve ser de incumbência da família. Insinua, ainda que de forma sutil e mudando a opinião que antes tinha, que assuntos como diversidade, homossexualidade, racismo, fascismo, tolerância e intolerância são invariavelmente partidários e que o escotismo tem que se omitir destes assuntos, deixando-os ao seio familiar:

“Logo, somos favoráveis que na condição de chefes escoteiros tenhamos nosso foco nos itens previstos no programa educativo oferecido, nos abstendo de acréscimos desalinhados ao entendimento das famílias, principalmente orientados para fins ideológicos, partidários e eleitorais.”

Toda esta história começou, nesta página, quando seu autor afirmou que os escoteiros não deveriam se envolver solidariamente ao que aconteceu com o George Floyd (leia aqui), nem nos pronunciarmos como “antirracistas” porque isto seria “político” e não estava entre nossos valores. Oras, desde quando solidariedade e empatia não estão entre nossos valores? Desde quando a proposta internacional dos escoteiros para a irmandade, quebrada por grupos que perseguem e marginalizam, não está nos nossos valores? Ainda bem que a própria WOSM, a associação britânica e a própria juventude não pensam assim. As instituições lançaram notas firmes, afirmando que não basta ser contra o racismo, mas antirracistas.

Que a única página que pense diferente seja a “Escotismo que Queremos” não é o problema. O problema é que ela aparece, por muitas vezes, com postagens monetariamente impulsionadas que atingem um público amplo, e me preocupa profundamente que discursos frágeis e miseravelmente contrários ao que se propõe no escotismo cheguem àqueles que não nos conhecem (neste momento, a maioria).

Depois disso, e em tom um pouco mais conciliador, houve uma live promovida pelo Grupo Escoteiro La Salle para tratar sobre o escotismo familiar. E sobre esta live, há considerações.

A família.

Antes, é importante parabenizar o outro participante da live, Fernando Borges, pelas intervenções amenas e explicativas, ainda que não concorde integralmente com elas.

Não vou aborrecer vocês sobre a origem da família, da propriedade privada, ou com as etimologias que correlacionam o vocábulo à escravidão. Vou, também, pelo discurso da cartilha.

É largamente importante que a família esteja no escotismo para que ela mesma seja uma absorvedora e propagadora das nossas ideias.O escotismo e o que defendemos também é para adultos (pais e mães). O movimento escoteiro incentiva (e o P.O.R. também, e já se falará nisso) que nós devemos estar em constante contato com os pais e incluí-los no meio escoteiro, não só para que acompanhem o desenvolvimento da criança, mas para que sejam eles mesmos nossos apoiadores e divulgadores. Esta é a parte bonita do escotismo. A parte da realidade concreta é outra.

As condições sociais impostas pela manutenção e aumento da desigualdade afetam principalmente as famílias: monetariamente e estruturalmente. Porque “família” não é formada apenas por aquelas que aparecem nas propagandas de Doriana. Nossas famílias, com os pés na terra, numerosas, sofrem com a explosão de desemprego entre adultos; sofrem com a profunda deterioração das relações laborais, com a falta de perspectiva, com as 12 ou 14 horas trabalhadas quando ainda se tem trabalho. Sobretudo, estas famílias não são apenas aquelas que têm seus filhos dentro escotismo, mas ainda aquelas que estão na base do movimento (os escotistas). Como pedimos para que, diante deste cenário, participem do escotismo? Como pedimos para que deem atenção ao desenvolvimento dos seus filhos? É sobre isso que devemos – juntos – discutir. E sabe qual vai ser a surpresa? Que invariavelmente teremos que assumir uma postura ideológica e política, muito longe da neutralidade e do afastamento das questões da sociedade pregados por estas páginas.

Sobre ativismo.

Em vários artigos da página “O Escotismo que queremos”, o autor afirma que o escotismo não é ativista e nem é lugar para ativismos. Não sei o que o autor entende pela palavra, mas historicamente, politicamente e ideologicamente, “ativismo” é tudo aquilo que, de forma organizativa ou não, tenta transformar sua realidade. Sabendo disso, desde quando “a construção de um mundo melhor” não é uma proposta ativa e internacionalista desta transformação? Desde quando organizar-se para fazer que este espaço que compartilhamos seja um pouco mais solidário não é ativismo e ideológico?

O que acontece (e que parece que sempre há que pisar em ovos para afirmar isso), é que “ativismo” é mais um bordão, assim como “politicamente correto” (que a página usa sem moderação), cunhado e apropriado pela atual ala minoritária governista de forma conspiratória e eleitoreira contra quem ousa questionar as políticas públicas federais. Se num primeiro momento o autor afirma em seu manifesto que é contra os “acréscimos para fins ideológicos, partidários e eleitorais”, é exatamente o que ele faz em seus últimos escritos.

É, também, de uma imensa falta de profundidade insinuar que “ideologia” (o conjunto de ideias) é algo que devemos evitar no seio de um movimento formado com base nela. É igualmente alarmante, em pleno 2020, crer que a juventude se deixa “doutrinar” por qualquer coisa que apareça.

Sobre o ECA e o P.O.R.

O autor da página levanta todas estas hipóteses de “ativismo”, “escotismo familiar”, “neutralidade”, segundo ele, baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em um dos documentos da associação nacional, o Princípios, Organização e Regras (POR).

Vamos ver o que dizem estes documentos?

Na live, foi afirmado que esta parceria entre a família e o escotismo está contemplada no artigo 79 do ECA. Este artigo diz o seguinte:

Art. 79. As revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.

O artigo se refere estritamente a publicações e fala tanto da pessoa como da família. E se levarmos em conta seu inteiro teor, principalmente no que se refere a armas e munições, teremos muitas e muitas coisas para conversar no escotismo.

O P.O.R. (citado na live em sua regra 142), de forma parcialmente acertada diz que o escotista deve manter os pais informados na seguinte ordem:

Relação com a família: o escotista deverá sempre manter contato com os pais do membro juvenil para que as orientações repassadas aos mesmos sejam de conhecimento de sua família;

Digo “parcialmente acertada” porque o escotista carrega, sozinho, a responsabilidade de avisar não somente as orientações passadas a membros juvenis como a ele próprio através das instâncias superiores. E podemos estar de acordo que aqui nos falta mais material informativo. Na medida em que assuntos como redução das desigualdades e igualdade de gênero podem ser explicados com as cartilhas fornecidas pelos ODS, não é fácil explicar, sem um material adequado, um posicionamento contrário à redução da maioridade penal (vigente no escotismo brasileiro); não é fácil explicar um posicionamento de respeito à diversidade (vigente no escotismo brasileiro); não é fácil explicar que permitimos que o Brasil participe em eventos em países em que agem contra os direitos das mulheres (infelizmente, também vigente no escotismo brasileiro e apoiado pelo “Escotismo que Queremos”).

Mas por que não temos todos os materiais referentes a estas políticas? Justamente porque a direção nacional comprou a absurda ideia de setores barulhentos e de páginas como estas de que não devemos abordar estes assuntos em nossa formação porque são “políticos” e “ideológicos”.

Uma outra questão do P.O.R., na qual se sustenta por vezes o autor e que foi mencionada na live, é essa:

REGRA 011 – POSIÇÃO DO ESCOTISMO. I – O Escotismo como força educativa, se propõe a complementar a formação que cada criança, adolescente ou jovem recebe de sua família, de sua escola e de sua orientação religiosa, e de nenhum modo substituirá essas instituições.

Aqui temos questões de consenso. O escotismo não deve substituir algumas instituições que têm papéis técnicos definidos. Neste blog mesmo há diversos casos onde se relatam que pioneiros foram mandados a pintar escolas públicas, quando é dever do Estado fazê-lo. Porém, existem questões que o POR deixa em aberto, que podem levar a algumas interpretações.

Na página “Escotismo que Queremos”, há afirmação de que devemos complementar e não contrariar o que diz a família. Percebam que esta forma como se complementa não é definida no P.O.R. Além disso, a proposta de que devemos consultar cada uma das famílias e perguntá-las sobre nossos próprios valores já assumidos é uma ideia inocente. Logo, a página vale-se de um exemplo torto sobre aborto, narrando que uma garota quer abortar e o chefe a apoia por suas convicções morais. Esta é uma das interpretações. Se for por exemplos, eu também tenho alguns.

Vamos imaginar que uma inteira família, o que não seria raro, é contra a vinda de imigrantes haitianos ao Brasil porque “não gostam de pretos” e “não coadunam com a miscigenação”. O escotismo não deve, repito, não deve se adaptar a este discurso para não “contrariar a família”. O papel do movimento escoteiro é justamente “complementar” esta formação de origem, oferecer uma outra visão, uma outra fonte, tal qual um texto jornalístico o faz.

A partir daqui, se a crença formada pela família insiste em anular a condição humana, negligencia ou marginaliza, o escotismo não é lugar para ela. E não cabem, neste momento, relativizações sobre o paradoxo da intolerância nem racismos reversos, sofismas que apenas distorcem conceitos para justificar agressões.

Sobre o caso levantado pelo “Escotismo que Queremos” sobre o aborto, ele é torto porque o escotismo não tem ainda uma posição técnica sobre o assunto (diferente de questões como homoafetividade, gênero e afins), mas pode-se presumir que o direito à vida e à dignidade nos possa guiar na resposta. Como o aborto é uma questão de saúde pública e o chefe acabou se vendo numa situação em que a moça coloca sua própria vida em risco, é dever dele primeiramente informar a família e, logo, advertir sobre as complicações que a clandestinidade desta prática podem trazer. Mas, primeiro, vamos ter que falar abertamente sobre o assunto dentro do movimento, sem prejuízos ou moralismos, para arrancar alguma posição clara quanto a isso.

Sexualidade

O ECA não determina claramente questões de gênero, homossexualidade, vida sexual e afins. Ele não pode ser usado como muleta para impedir que o assunto seja abordado no escotismo. Na verdade, em se tratando de sexualidade, ele concentra seu conteúdo na parte protetiva: prevenção de abusos, exploração sexual, entre outros. Já na educação formal, seja através dos PCNs, cartilhas governamentais ou outras orientações, que também tem no ECA sua fonte, este tema é tratado de forma mais abrangente – o que também nos levaria à interpretação de que o escotismo pode complementar esta formação. E, repito, a interpretação de que se precisa da autorização da família aqui é exótica e forçosa. É o que o jurista Miguel Nagib (propulsor do “Escola sem Partido”) defendia, e não só perdeu na maioria dos casos que defendeu como desistiu da empreitada. Como bem disse o próprio Fernando Borges na live, na medida em que se apresentar claramente o projeto, plano, PCN, PPP ou o que seja, há um ato ao menos tácito de aceitação. O ideal – e aqui poderíamos estar de acordo – é que a construção destes projetos fosse coletiva no escotismo.

– Abrindo um parênteses, com certa graça vi os argumentadores da live recorrerem a Freud para explicar as noções de psique e pertencimento numa live sobre família. Justo Freud, que dividia o desenvolvimento psicossocial infantil entre as fases fálica, oral e anal. Hoje, certamente, estaria preso, linchado ou acusado de “viés ideológico” por páginas na internet.

No mais, a sexualidade é parte fundamental da formação de uma criança, principalmente para que ela conheça os limites, inclusive dentro do núcleo familiar – que é onde mais de 70% dos crimes de abuso acontecem. Os escotistas não apenas devem abordar o tema com naturalidade, mas estarem atentos ao que os próprios jovens manifestam dentro do grupo.

Os Escoteiros do Brasil

Quando a Escoteiro do Brasil se pronunciou favorável às relações homoafetivas (leia aqui), também reforçou que medidas educativas (de informação) seriam aplicadas. E desde lá, não só não foram aplicadas como vemos casos de homofobia e preconceitos generalizados explodindo dentro do escotismo. Por exemplo, vocês saberiam me dizer quais medidas foram aplicadas e quantas destas páginas se pronunciaram contra este áudio abaixo, que circulou por toda a região escoteira de São Paulo? Nenhuma. E sabem quem estava comentando na live sobre “família”, insistindo em conspirações e, presumo eu, ainda ativo no escotismo? Pois é.

Rafael Nunes · Escotista Genérico

NOTA: O escotista Rafael Nunes não é o autor do áudio. Apenas o disponibilizou no SoundCloud.

E, por fim…

Todas as orientações acima são uma maneira segura de passar direcionamentos sem que ninguém ultrapasse sua linha de atuação. Ganhar curtidas à base de impulsionar publicações, onde se levantam teorias conspiratórias da URSS, confunde muito mais do que ajuda no desenvolvimento do escotismo e da juventude.

O meu alento em toda esta situação é que claramente a própria juventude e as famílias, em sua maior parte, já não compram este discurso retrógrado. Tenho residência em uma cidade extremamente conservadora, mas que rechaçou por completo o programa e ONG “Escola sem Partido”, que é o que estas páginas querem para o escotismo. É por isso que deposito minha fé na humanidade, na juventude e nestas famílias que lutam.



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